quarta-feira, 11 de novembro de 2015

NEUZA MACHADO: O FOGO MÍTICO

NEUZA MACHADO: O FOGO MÍTICO


Esta incomum criação ficcional, distintamente, no instante do impasse narrativo, necessitou do auxílio do elemento fogo, principalmente do fogo mítico em sua forma destrutiva, para que, posteriormente, auxiliada pelo elemento água, pudesse realçar a imagem de uma Amazônia lendária e selvagem (feminina e masculina), ameaçada de extinção por obra e graça do poder do capitalismo selvagem. O fogo que iluminou o cogito reflexivo do segundo narrador não esmoreceu e nem se ateou de mais. Foi contemplado numa hora de ociosidade [ociosidade = repouso ativado] em toda a sua vivacidade e brilho para que o mesmo, a partir da página 48, pudesse revelar aos pósteros os grandiosos, inacreditáveis, e, posteriormente, extintos segredos capitalistas do Manixi.
De qualquer forma, a partir do incêndio transformador, a água será o elemento de condução criadora da narrativa ficcional rogeliana, substância esta já anunciada (no primeiro capítulo) como imprescindível para o desenrolar do relato. Depois do “fogo da labareda da serpente” ─ uma indicação de que o plano mítico se avizinhava/avizinha-se ─, o narrador Ribamar de Sousa [mergulhou] “na invisível água do igarapé de treva fria e rápida, e [foi] levado e [se afastou] dali”. “Uma correnteza negra” [o abraçou, o envolveu, o levou]. O fogo, segundo Paul Valéry (citação de Bachelard), “é um agente essencial”, mas “de precisão temível” cujo “efeito maravilhoso é limitado” . Portanto, referendando a fase de transição para o plano mítico-ficcional, a consciência singular do segundo narrador, conhecedor das limitações ígneas, exige a distinção de uma substância que possa se tornar também propulsora de “surpresas de muitos outros ocorridos” .
Nesse impasse narrativo, há a incomum “aproximação” do fogo com a água, enquanto elementos naturais da extensão geográfica amazonense. Para tanto, para explicitar o repouso ativado (o sonho) e a necessidade de um interregno estimulante (representado pelo arcabouço mítico-ficcional da heroicidade ativada do bugre Paxiúba), a água se tornou/se torna “uma correnteza negra”, indício de que as lembranças dos caudalosos rios amazonenses, no momento, são “um convite à morte” (morte mítica), como explica Gaston Bachelard, em seu livro A Água e os Sonhos . As lembranças não são alentadoras ao narrador, são pesarosas. A “correnteza” aquática, cogitativa, ainda não se desprendeu dos “rolos negros da fumaça” do pensamento interativo, operador de incêndios literários grandiosos. O criador ficcional (tão somente ele, apesar de Roland Barthes, o da primeira fase estruturalista, continuar, fantasmagoricamente, a contaminar-me com a sua assertiva: o narrador é um personagem como outro qualquer, não se deve confundir o autor com o narrador) se encontra às voltas com a “dipsomania (impulso mórbido) da morte” .
Nesse singularmente instante criativo, a substância essencial para o “ócio” dipsomaníaco (repouso fervilhante a impulsionar o criador ficcional para a representação dramática da morte) é a água negra, e, para este tipo de água, “que permite penetrar num dos refúgios materiais elementares” , não existem palavras consoladoras. Por tal razão, percebe-se um veto contra a chamada explicação linear (exemplar), instaurando-se o vazio ficcional (ou espaço em branco), sobre o qual o leitor terá de se debruçar e preenchê-lo com o seu próprio imaginário. Esta forma pós-moderna de narrar, no parágrafo em questão, está perceptível. O ficcionista-narrador, submetido por sua vez ao seu próprio repouso fervilhante, enquanto seu primeiro personagem-narrador se debatia/se debate na milenar água do histórico-ficcional, logo a seguir, desvendou o caminho secreto que o levaria a interagir com o plano mitificado da realidade amazonense. Por esse ângulo interpretativo-reflexivo instaura-se o interregno fabuloso de Paxiúba, pois o primeiro narrador Ribamar de Sousa “não soube de mais nada do que se passou, “não [soube] como [fugiu e mergulhou] “na invisível água do igarapé de treva fria e rápida, e [como foi] levado e [afastado] dali”. Os “parentes” morreram, “mas... [ele] ainda estava vivo e não ferido”.  No caso, a água de “treva fria”, mitificada, não permitiu a morte de Ribamar, dignificando-o também como o narrador decisivo da segunda seqüência mítico-ficcional.
As narrativas de acontecimento não se submetem à delimitação do narrar tradicional. Se não há explicação para o acontecido, o episódio será classificado como essencial para o reconhecimento da narrativa fantástica, uma vez que o personagem-atuante Ribamar de Sousa se recuperou, de uma forma diferenciada, diga-se de passagem, no plano das probabilidades existenciais. O narrador  duplicado teria ainda muito o que viver, para que, depois da aparição do bugre Paxiúba, pudesse narrar, à moda do escritor ficcional do século XX, a decadência sócio-substancial do Amazonas.
Entretanto, para o prosseguimento de minha reflexão sobre o ativo exercício de escrita ficcional do primeiro narrador, logo depois da morte dos “parentes” e da ascensão narrativa ao plano mítico, plano este reservado para a inserção do “lendário e eterno”  Paxiúba, continuo a exigir aqui o auxílio filosófico de Gaston Bachelard.
“O ser é antes de tudo um despertar, e ele desperta na consciência de uma impressão extraordinária”. O primeiro narrador, submetido ao segundo, despertou, primeiramente, por intermédio de uma consciência ativada, extraordinariamente impressionada com a descoberta ficcional do plano mítico amazonense, constituído a partir da insígnia do bugre Paxiúba. Se ele, enquanto um sobrevivente do ataque dos Numas, ataque este que ocasionou o incêndio da floresta, e, por conseqüência, a morte dos “parentes”, levado pela correnteza do “igarapé de treva fria e rápida”, não se lembra de como se salvou, em contrapartida, tem a certeza de que “uma correnteza negra [o abraçou, o envolveu, o levou]. Ele também tem o conhecimento de que [bateu] “em paus e pedras”, mas que [prosseguiu], “noite a dentro, breu a fora, sem pesar, por dentro, extasiado e sem pensar, com as estrelas, como se tudo aquilo fosse o prosseguimento de [seu] sonho na noite velada e muito burra e muito cega, hipnótica, horrorosa, continuando assim por muitas horas entre as sombras, segredos e lágrimas”, sentindo tudo a se dissolver ... Sim”.

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