terça-feira, 30 de setembro de 2008

Meditação de Baudelaire


Meditação de Baudelaire

Rogel Samuel

Baudelaire medita. No seu poema “Elevação” ele quer voar sobre pântanos e descampados, sobre o céu e o mar, sobre mesmo o sol, muito além do horizonte do visto no visível, para além das estrelas, para purificar-se de saber, para beber o licor do fogo do saber que ocupa os espaços que tudo permeia, nos vazios que dão conta de tudo.
Mas a arte do poema está em sua excelente tradução, de Jamil Almansur Haddad.


Por sobre os pantanais, por sobre os descampados,
Por sobre o éter e o mar, por sobre o bosque e o monte,
E muito além do sol, muito além do horizonte,
Para além dos confins dos longes estrelados,

Meu espírito, vais, todos os céus te movem,
Como um bom nadador cais em delíquio na onda,
Sulcas alegremente a imensidão redonda,
Levado por volúpia indizível e jovem.

Bem longe deves voar destes miasmas tão baços;
Vai te purificar por um ar superior,
E bebe, como um puro e divino licor,
O claro fogo que enche os límpidos espaços.

E por trás do pesar e dos tédios terrenos
Que gravam de seu peso a existência brumosa,
Feliz este que pode e de asa vigorosa
Lançar-se para os céus lúcidos e serenos!

Este cujo pensar, como a andorinha, muda
Para o céu da manha num vôo ascensional,
Que plana sobre a vida, a entender afinal
A linguagem da flor e da matéria muda!
(Trad. Jamil Almansur Haddad)


Élévation

Au-dessus des étangs, au-dessus des vallées,
Des montagnes, des bois, des nuages, des mers,
Par delà le soleil, par delà les éthers,
Par delà les confins des sphères étoilées,
Mon esprit, tu te meus avec agilité,
Et, comme un bon nageur qui se pâme dans l'onde,
Tu sillonnes gaiement l'immensité profonde
Avec une indicible et mâle volupté.
Envole-toi bien loin de ces miasmes morbides;
Va te purifier dans l'air supérieur,
Et bois, comme une pure et divine liqueur,
Le feu clair qui remplit les espaces limpides.
Derrière les ennuis et les vastes chagrins
Qui chargent de leur poids l'existence brumeuse,
Heureux celui qui peut d'une aile vigoureuse
S'élancer vers les champs lumineux et sereins;
Celui dont les pensers, comme des alouettes,
Vers les cieux le matin prennent un libre essor,
— Qui plane sur la vie, et comprend sans effort
Le langage des fleurs et des choses muettes!

Encontrei uma tradução que não diz de quem é, tradução apócrifa na Internet, muito boa e um pouco mais baudelaireana:

Por sobre os pantanais, os vales orvalhados,
As montanhas, os bosques, as nuvens, os mares,
Para além do íngneo sol e do éter que há nos ares,
Para além dos confins dos tetos estrelados,

Flutuas, meu espírito, ágil peregrino,
E, como um nadador que nas águas afunda,
Sulcas alegremente a imensidão profunda
Com um lascivo e fluido gozo masculino.

Vai mais, vai mais além do lodo repelente,
Vai te purificar onde o ar se faz mais fino,
E bebe, qual licor translúcido e divino,
O puro fogo que enche o espaço transparente.

Depois do tédio e dos desgostos e das penas
Que gravam com seu peso a vida dolorosa,
Feliz daquele a quem uma asa vigorosa
Pode lançar às várzeas claras e serenas;

Aquele que, ao pensar, qual pássaro veloz,
De manhã rumo aos céus liberto se distende,
Que paira sobre a vida e sem esforço entende
A linguagem da flor e das coisas sem voz!

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

QUEM ESTÁ PRESO A UMA ESTRELA


QUEM ESTÁ PRESO A UMA ESTRELA

Rogel Samuel


Disse Leonardo da Vinci: “Quem está preso a uma estrela não anda para trás”, no sentido de que não entra em decadência, no sentido de que consegue completar e triunfar com toda a glória em tudo o que começou, todos os seus projetos, todas as belas coisas por que se inflamou. Significa que consegue trazer à tona, “trazer à luz do dia, de modo puro e formulado, os contornos do conteúdo vislumbrado” (Bloch).
Isso se aplica aos gênios como Leonardo e aos povos. Mas também se aplica aos mortais como nós, aos nossos desejos, como escreveu o jovem Goethe: “Desejos são pressentimentos das capacidades que estão dentro de nós, prenúncios do que seremos capazes de realizar”.
É quando esses atos prospectivos trabalham em nosso favor e obtém êxito “a partir da tremenda expectativa que deles se apoderou, a partir da afinidade com a estrela que ainda se encontra abaixo da linha do horizonte". A partir do futuro. É quando “a água que eu toco jamais foi navegada” de Dante. Citações todas do princípio esperança de Bloch, que reúnem juventude, mudança, produtividade, não com arrogância, mas com a visão do que deve ocorrer nas ocasiões da criação.

domingo, 28 de setembro de 2008

A CRISE DA POESIA

A CRISE DA POESIA

Rogel Samuel


A crise americana me lembra um poema de Xavier Placer, poeta que pessoalmente conheci quando eu era jovem:

A ERIKA
Não desesperes, Érika
da sorte

Um a um os teus deuses
mudaram-se pra América
do Norte?

Toda-poderosa –
dança! voa! ri da morte

O poema está em "Minipoemas" (Rio de Janeiro: Edições Xagorá, 1978). Placer (1916-2008) era professor, bibliotecário, trabalhava na Biblioteca Nacional onde on conheci. Nasceu em Niterói e escreve ensaio, poesia e prosa. Publicava uns livrinhos muito finos (nos dois sentidos) e conversávamos muito sobre poesia. Ele era um mestre, muito culto e sempre disposto ao um bom papo:

... Porque para esse recalcitrante vivente, o homem,
a poesia importa pouco.
Mas está-aí. E assume muitas formas, silentes,
insidiosas, submarinas.
A poesia sabe-se destino, a poesia
sabe-se a íntima do ser, e lá
- selva não, grande senhora –
dobra a alva túnica-sem-costura e ajoelha todas as horas.
Aqui a poesia empresta aos mármores a matéria de seu rosto.

Ele me deu uma coletânea de seus livros, com dedicatórias. Eram minipoemas e miniprosas como esses:

O GESTO
Junto às coisas somos
que nem dão por nós

Vertigem e fúria –
tudo na voragem
fenece e perece

Só o gesto, o claro
gesto, funda
morre nunca

ESCRITO NUM VOLANTE


O QUE VOCÊ AMA
em alguma parte fica e vivifica
não implode, revem de-longe
tempo puro
O QUE VOCÊ AMA
vê em caixa alta com todas as letras
partilha ou passa ao papel
seu bem de raiz
O QUE VOCÊ AMA
ninguém te tira

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A raiz da crise


A raiz da crise

Rogel Samuel

Minha amiga x. foi vítima da crise financeira americana. Mora em Nova Iorque e de lá me diz por email que o banco para quem ela pagava as prestações de sua casa (nada própria) faliu e a instituição financeira que assumiu a dívida a refinanciou para cima colocando os que deviam em situação de quase inadimplência. Não ter onde morar em cidade americana é tragédia. Parece que aí reside a raiz da crise: os bancos americanos estavam com muito dinheiro estocado e resolveram financiar casa própria para qualquer pobretão a juros baixíssimos. O mercado imobiliário exultou e inflacionou o mercado numa especulação imobiliária nunca vista antes. E qualquer casinha passou a valer logo um milhão de dólares.
Resultado: muita gente não pagou porque não pode e os títulos agora podres ameaçam arruinar a maior economia do planeta. Esses títulos eram revendidos de banco em banco. Que não paguemos nós essa conta.

Teodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco

Teodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco

“Harpa do caçador”

Teodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco, autor da “Harpa do caçador”, nasceu em Barras, em 8 de fevereiro de 1829 e faleceu no dia 10 de julho de 1891.


O CANTO DO CAÇADOR

Sou filho das selvas, sou tosco, grosseiro,
Sou brusco, selvagem; não sou trovador;
Eu tenho outras lidas, eu tenho outro emprego,
Que em tudo me ajusta: - eu sou caçador.
Se a lira hoje empunho, se solto este canto,
Não queiram tornar-me por um trovador:
Eu canto inspirado das cenas sublimes
Que encantam, que enlevam quem é caçador.
Certeira clavina carrego com arte,
E as aves persigo por longa floresta:
Matreiros veados, ligeiros, sagazes,
Que gosto que eu acho, matá-los à sesta!
Meus simples prazeres, por bailes, teatros,
Torneios e jogos dos homens da praça,
Não troco; não valem torneios e jogos,
Teatros e bailes, os gozos da caça.
A margem de um lago, nas noites de lua,
Com todo o sossego na rede deitado,
Eu gozo o sussurro da aragem no bosque,
Contemplo os encantos dum céu estrelado.
Mas logo desperto do enlevo sublime,
Ouvindo as pisadas, sutis, do veado;
Na rede me sento, preparo a clavina;
Em torno reparo, - com todo cuidado.
Até que dos bosques, a praia do lago,
Eu noto-o saindo com todo o vagar:
- Aponto a clavina, desfecho sobre ele,
E ei-lo de envolta co'as morte a lutar!
Apenas preparo de novo a espingarda,
Na rede, em sossego, me tomo a deitar:
Contemplo as estrelas, no lago brilhando,
E as nuvens correndo, brincando ao luar.
Eis nota uns estalos ao longe soarem;
Um surdo ruído, que imita o trovão;
Recresce'os estalos, - recresce o ruido:
- Mil vultos descubro, da lua ao clarão.
São porcos bravios, - queixadas chamados,
Que os dentes estalam, qual bomba ao quebrar-se;
Correndo e roncando, do lago - na lama,
A grande manada ja vejo deitar-se.
O tiro certeiro de novo rebenta;
Seu eco retumba no vasto sertão!
Que gosto que sinto, - ao ver estendidos
Três porcos, e mais, dum tiro, - no chão!
Então a clavina eu limpo de novo;
Depois a carrego com todo o vagar;
Arrumo a patrona , num ramo a penduro,
E torno, em sossego, na rede a deitar.
Contemplo os mais doces, mais simples momentos
Que levo na vida, sem ter que invejar
Recolhe-se a noite; sucede-lhe o dia:
As caças, correndo, vou logo apanhar.
Dum porco roliço, - com a faca cortante,
Retalho, com gosto, mui larga papada;
E noto a gordura, que excita apetite,
E eu como a costela, nas brasas assada.
As peles das caças com varas espicho;
Ao sol as estendo, depois, p'ra secarem;
E quando curtidas, de roupa me servem,
Privando os espinhos meu corpo arranharem.
Meus simples prazeres, por bailes, teatros,
Torneios e jogos dos homens da praça,
Não troco; não valem torneios e jogos,
Teatros e bailes, - os gozos da caça.
De longa cabaça - buzina preparo,
Que em tudo arremeda da onça o roncar;
Com ela, de noite, da casa distante,
E os cães amarrados, me vou emboscar.
Troando a buzina na vasta planície,
Seu eco responde - dos morros além...
Que grato alvoroço! - que gosto indizível!
- Eu ouço que a onça responde também!
Eu deixo que a noite seu manto recolha;
Que a aurora derrame seu frouxo c1arão;
Que o astro do dia, do leito se erguendo,
Inunde com luzes o vasto sertão.
Alegre contemplo da aurora a beleza;
O hino que entoam-lhe as aves - cantando;
O zéfiro branda, que - ledo - vagueia,
Das flores - no prado - perfume espalhando.
E eu calço as perneiras de peles macias;
Depois de calçá-as, eu tomo o gibão;
No ombro a clavina e a rígida lança;
No cinto, de um lado, penduro o facão.
De medo despido, com passos seguros
Com os cães companheiros, - amigos fiéis,
Eu parto, me rindo de vê-los pulando,
Alegres, brincando, em tomo a meus pés.
Eu sigo no rumo que a onça roncava;
Seu rasto diviso gravado na lama;
Os cães a perseguem correndo, latindo:
Exploram-lhe o faro, cheirando na rama.
E eu corro com pressa, gritando após eles,
A fim de excitar-lhes coragem, bravura:
Com animo forte, nas brenhas me interno,
Não temo no bosque medonha espessura.
Eu puxo de um lado, do cinto pendente,
Facão afiado, com ele picando;
Eu subo dos morros - ao cimo elevado,
Eu desço p'ra os vales, os cães procurando.
Até que bradarem com força já ouço:
Que chegue, - que é tempo de a onça matar!
Eu corro contente; desprezo o perigo;
E a hórrida fera já ouço o bramar!
É numa medonha sombria espessura
Que a onça tremenda se acha emboscada;
Dos ramos pendentes das hirtas tabocas
O orvalho desprende-se a cada passada.
Então - de gatinhas - com toda a cautela,
Tomando chegada, na ponta do pé;
Espio no rumo que a ouço rosnando,
Estendo o pescoço, p'ra ver se dou fé.
Mas - ei-la que parte com fúria, bramindo,
Aos cães acossando, querendo-os tragar!
E eles, - coitados! –lá vejo-os correndo:
Com medo, gritando, - vão longe parar!
A onça persegue-os a longa distância,
Rosnando e batendo co'as patas no chão;
Seus roncos medonhos retumbam no vale,
Tal como estampido de horrendo trovão!
Redobra com fúria seus fortes bramidos,
E o orbe em seus eixos parece oscilar;
Os tinidos brutos - do bosque desertam,
E a terra percebo nos pés me faltar! ...
Eu vou de mansinho, p'ra ela me chego;
Parando, - examino ... me tomo a chegar;
Ate que a descubro, deitada, me olhando,
A cauda movendo, já quase a saltar!
E logo que a vejo, que aponto a clavina,
- Na boca terrível, que a morte vomita,
O cão satisfeito, pulando, contente,
Encrava-lhe os olhos, a vista lhe fita.
Até que, de envolta com chamas o fumo,
A morte rebenta, - voando lá vai: -
A hórrida fera, que sangue respira,
- Rugindo, convulsa, sem forças já cai! ...
Então, dum só pulo, chegando-me a ela,
A lança lhe embebo no rígido peito:
O sangue espadana da larga ferida;
Já ela experimenta da morte o efeito! ...
E os cães, quando ouvem do tiro o ribombo,
Arrojam-se à fera, e cravam-lhe os dentes;
Mil vezes a mordem, com raiva, com gana,
Até que - já morta, - se mostram contentes.
Que gosto indizível de mim se apodera! ...
Que gosto que sinto, na casa ao chegar!...
Alegre, cercado de muitas pessoas,
O horrível combate começo a contar.
Teus bailes, teatros, torneios e jogos
Desprezo, - não quero-os, ó homens da praça!
Só quero que deixes que eu goze em sossego
Dos gratos prazeres que encontro na caça.



O CAÇADOR METAMORFOSEADO EM SOLDADO
(A Franklin A. de Meneses Dória)



O rude caçador, que outrora armado
De certeira clavina e rija lança,
De afiado facão, pendente ao cinto,
Nas brenhas, sem temor, seu passo avança;
O rude caçador, que outrora errante
Por ínvias, ermas selvas vagueava
Rodeado de cães, trajando peles,
As feras nos seus antros atacava;
O rude caçador, que mal cuidava
Em fazer consistir sua grandeza
No gozo dessas cenas majestosas
Que nos bosques ostenta a natureza;
O rude caçador, que mal buscava
Concentrar seu sentir, seu gosto e vida
Nessa vivenda descuidosa e grata,
Que não será jamais dele esquecida;
Já de macias peles não se adorna,
Nem do cinto, o facão lhe pende ao lado,
Nem no ombro a clavina e rija lança,
Nem e de um cão, sequer, acompanhado!
Fundiu-lhe o coração, fundiu-lhe a alma,
Ao seu todo fundiu-lhe ardente chama
Desse sagrado fogo, que o devora,
- Do amor da pária, - que a guerra o chama.
Não trepidou sequer um só momento
Ao reclamo da pátria, ao seu chamado:
Desprezou suas selvas majestosas,
Seus cães amigos, - e se fez soldado!...
Ei-lo que parte; - não vacila o passo:
Vai a morte afrontar em campo armado! ...
Ei-lo que parte; não de cães seguido,
Mas sim de heróis da pátria rodeado!
Uma esperança só lhe assoma ao peito;
Uma esperança só - sua alma encerra:
É ver da pátria a glória aurifulgente,
Ou cair com os seus, - ficar por terra! ...

O CANTO DO VOLUNTÁRIO

Em pobre choupana de folhas coberta,
De galas despida, foi onde nasci;
No centro das selvas, num bosque sombrio,
De imensas palmeiras foi onde cresci.
Em luta co'as feras nos antros medonhos,
La onde se abrigam mil tigres sedentos,
Os risos, as graças me foram constantes:
Gozei os mais doces, mais gratos momentos.
Do mundo as grandezas, as honras, o luxo,
Seus ricos tesouros jamais desejei;
Com o pouco que tinha, vivia contente,
No peito a cobiça jamais abriguei.
Aos simples prazeres meu peito aspirava;
Na caça encontrei-os; que mais eu quisera?
Mais simples prazeres no mundo não vejo;
Nem mesmo - maiores - o mundo mos dera ...
Gozando os afagos de mãe carinhosa,
No teto paterno vivia contente;
Dum pai ilustrado colhia as lições,
- Ouvia os conselhos dum velho prudente.
Deixei-os! - E certo, - deixei-os com magoa;
Eo pranto saudoso meu rosto banhou!
Deixei-os; que a pátria, se vendo ultrajada,
- "ÀS ARMAS! ÀS ARMAS, MEUS FILHOS!" - bradou.
Corri para as armas; já delas coberto,
- Soldado ofereci-me: - soldado já sou!
E o côncavo lenho , que fumo vomita,
Os mares talhando, - comigo voou!
Em luta co' as ondas, num mar tormentoso,
As nuvens, comigo, parece elevar-se;
Outrora impelido ao centro dos mares,
Parece, comigo, querer sepultar-se! ...
Ao choque continuo das ondas bravias,
Já sinto a cabeça em torno rodar;
Um súbito enjôo de mim se apodera,
Que aos tombos, as quedas ... me faz ir deitar!
Terrível moléstia prostrou-me, abateu-me!
Os gelos da morte - cheguei a sentir!,..
De meus companheiros a muitos, - coitados!
Num leito de dores - eu vi sucumbir!
.............................
Em fim aportamos. As forças perdidas
Recobro de novo; começo a marchar
Em busca do campo do fero inimigo,
Que teve o arrojo de a pátria ultrajar!
Mas sendo a viagem extensa e penosa,
A fim de fazê-la, cavalos comprei;
Fiquei sem cavalos, fiquei sem dinheiro:
Ladrões mos furtaram; a pé caminhei!
Por montes e vales, por lagos imensos,
A pé e descalço por ínvios caminhos,
Caçando, com sede, os pés lacerando
Nas rígidas pontas de agudos espinhos!
Em pobres barracas, as noites chuvosas
Passando - molhado - em péssima cama;
E outras tremendo, tolhido de frio,
Levando-as deitado té mesmo na lama!
Do sol abrasado, os dias levando,
Em duro exercício ou marchas forçadas;
As noites velando, exposto ao relento,
Em rondas contínuas ou guardas pesadas.
Sofrendo desprezo de guascas grosseiros
Que os brios da pátria não sabem prezar,
Que uma só gota do pérfido sangue
A fim de salvá-los se negam a dar!
E tendo somente por triste alimento
O agro churrasco e o mau chimarrão!
Sofrendo privanças de todas as sortes
Sem que gozar possa a menor distração!
Eis quanto hei sofrido, com o riso nos lábios,
Por ti, cara pátria, pois teu filho sou;
E mais eu sofrera por ti - satisfeito,
Que o sangue, que a vida com gosto te dou.
Em premio só peço: - se o fero inimigo,
Em duro combate, meus dias ceifar,
Que a injuria a ti feita, não deixes impune;
Que a morte dum filho tu saibas vingar!
P'ra que reconheça o audaz estrangeiro
Que nos não tememos seus golpes de morte;
Que sabe afrontá-los um bom brasileiro,
Nascido nas plagas ardentes do Norte!


O SELVAGEM

Não cinjo um diadema sobre a fronte,
Nem coroas de louros a guarnecem;
Nem mesmo sobre o peito resplandecem
Ricos emblemas de honra e distinção;
Outras são as vantagens de que gozo,
Outros privilégios que me assistem:
Em quiméricas honras não consistem,
Nem essas quero, que vaidades são ...
Não habito palácios suntuosos,
Onde se nota o luxo deslumbrante;
E onde a prata, o ouro, o diamante,
Por toda parte vê-se em profusão;
Numa humilde choupana abrigo tenho,
Tão pobre, tão singela quanta honrada;
Pelo crime jamais se viu manchada,
Nem teve nela o vicio habitacão.
Amigos tenho alguns, inda que raros,
Porem mais raros um monarca os tem;
Um só dos meus amigos vale bem
Daqueles dos monarcas - um milhão:
São, pois, os meus amigos - verdadeiros,
Francos, leais, sinceros, dedicados;
Os seus pelo interesse são guiados:
Por ele, seus amigos venderão! ..
E minha pátria a selva majestosa,
Onde pude encontrar felicidade,
Onde, comigo, impera a liberdade,
Donde foi desterrada a escravidão.
Dos homens não me oprimem vis cadeias:
Sou livre quanto é livre o próprio vento,
As asas solto livre ao pensamento,
Livre conservo sempre o coração.
Desfruto a doce paz, gozo e sossego;
Dos ricos não invejo áureas riquezas;
Do mundo não me cegam vas grandezas;
Nem de seus vícios temo a corrupção.
Sou pobre; porem vivo a meu contento;
Sacio meus desejos moderados,
Enquanto aos ricos noto - atormentados -,
Sem poderem conter sua ambição!

O POETA CAÇADOR


O POETA CAÇADOR

Rogel Samuel


Ele é um poeta camoniano. Teodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco, autor da “Harpa do caçador”, nasceu em Barras, em 8 de fevereiro de 1829 e faleceu no dia 10 de julho de 1891. É um poeta clássico, dos melhores da nossa literatura brasileira. E dia virá em que ele vai figurar ao lado dos maiores do Século 19. Seu verso é perfeito, camoniano, como no soneto dedicado ao neto de D. Pedro II:


Despende, ó lira minha, um doce harpejo;
Mitiga por um pouco essa amargura,
A que te habituou a desventura,
Para um canto entoares de festejo.
Pois de um ramo imperial agora vejo
Uma nascente flor, cândida e pura;
A cuja peregrina formosura
Num canto festival hoje cortejo.
De vós, Senhor, descende a flor mimosa,
A quem ouso oferecer meu canto rude
E beijar-lhe, em vossas mãos, a mão piedosa.
O Eterno Criador sempre lhe ajude
A percorrer a senda gloriosa,
Que ao termo nos conduz da sã virtude.
(1866).

.......
Não se iluda: Dia virá em que Teodoro Castelo Branco será estudado nas escolas.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

A PRIMAVERA

A PRIMAVERA

Rogel Samuel


Hoje, primeiro dia da primavera, é bom reler o nosso poeta Casimiro de abreu. O Brasil é um país florido dos substantivos das primeiras estrofes: risos, afago, amores, flores, rindo, festa. A musicalidade desses versos é ritmado pelas sílabas ----4 -----10.
Casimiro é um clássico nessas coisas musicais.
Na segunda parte o poeta entristece: sombria, amargura, murcha, fenece, amargo.
Casimiro está triste, apaixonado, pois "Na mocidade, na estação fogosa,/ Ama-se a vida — a mocidade é crença, / E a alma virgem nesta festa imensa / Canta, palpita, s'extasia e goza".

E morre.


A primavera é a estação dos risos,
Deus fita o mundo com celeste afago,
Tremem as folhas e palpita o lago
Da brisa louca aos amorosos frisos.

Na primavera tudo é viço e gala,
Trinam as aves a canção de amores,
E doce e bela no tapiz das flores
Melhor perfume a violeta exala.

Na primavera tudo é riso e festa,
Brotam aromas do vergel florido,
E o ramo verde de manhã colhido
Enfeita a fronte da aldeã modesta.

A natureza se desperta rindo,
Um hino imenso a criação modula,
Canta a calhandra, a juriti arrula,
O mar é calmo porque o céu é lindo.

Alegre e verde se balança o galho,
Suspira a fonte na linguagem meiga,
Murmura a brisa: — Como é linda a veiga!
Responde a rosa: — Como é doce o orvalho!

II

Mas como às vezes sobre o céu sereno
Corre uma nuvem que a tormenta guia,
Também a lira alguma vez sombria
Solta gemendo de amargura um treno.

São flores murchas; — o jasmim fenece,
Mas bafejado s'erguerá de novo
Bem como o galho do gentil renovo
Durante a noite, quando o orvalho desce.

Se um canto amargo de ironia cheio
Treme nos lábios do cantor mancebo,
Em breve a virgem do seu casto enlevo
Dá-lhe um sorriso e lhe entumece o seio.

Na primavera — na manhã da vida —
Deus às tristezas o sorriso enlaça,
E a tempestade se dissipa e passa
À voz mimosa da mulher querida.

Na mocidade, na estação fogosa,
Ama-se a vida — a mocidade é crença,
E a alma virgem nesta festa imensa
Canta, palpita, s'extasia e goza.

1 de julho, 1858

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

A vida

A VIDA

Rogel Samuel


Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia.

Os dias na esperança de um só dia
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel, lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assi negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: -- Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida.

A arte deste soneto de Camôes está em que conta uma estória do princípio ao fim sem deixar de ser soneto, isto é, sem afastar-se do gênero e tornar-se uma simples narrativa em versos. A primeira estrofe é dominada pelo "servir", que se repete três vezes, e também significava viver como servo e então estar preso, apaixonado. A segunda estrofe é o lugar do tempo, dos dias, do passar dos anos. A terceira é a do engano: não podia o pai fazer casar a mais nova sem primeiro encaminhar a mais velha. A última estrofe é dominada pela vida.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

A LUA

A LUA


Rogel Samuel

Verlaine escreveu:


A LUA BRANCA



A lua branca
luz sobre o bosque.
De cada ramo,
ouço uma voz
vem da folhagem:

Oh! bem-amada!

O lago reflete,
profundo espelho,
o vulto vago
daquele salgueiro
que uiva ao vento.

Sonhar é a hora...

Do espaço desce
uma entranhada
calma imprecisa
que do céu estrelado
a lua irisa.

A hora indecisa...

(Trad. livre de Rogel Samuel)



Lembro-me de Bidu Sayão cantando esses versos musicados por Debussy, que foi aluno da sogra de Verlaine quando ele tinha oito anos. O luar sobre a copa das árvores faz falara voz amada. O lago reflete o mistério daquele silêncio, daquele sonho. A lua ilumina o silêncio, a calma que desce sobre o bosque. Mas não há paz: a hora é indecisa.


sábado, 20 de setembro de 2008

A ILUMINAÇÃO


A ILUMINAÇÃO

Rogel Samuel


Escreveu Dogen (1200-1253):

A iluminação é como a lua refletida na água.
A lua não fica molhada, nem é a água se quebra.
Embora sua luz seja larga e grande,
A lua é refletida mesmo numa poça de uma polegada.
A lua inteira e o céu inteiro
São refletidos numa gota na grama.

O que é a iluminação? Ele não o diz. A lua não se dissolve na água, a água não contém a lua. A lua não está na água, onde é vista. Por que se quebraria a água? Sua luz branca é larga e grande, mas está contida em cada gota, em cada folha da grama. E não se perde.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Victor Hugo

Victor Hugo


Rogel Samuel



Não sei por que há franceses que não gostam de Hugo. Mas o seu sucesso era enorme e
sua obra gigantesco monumento. Aprendi a amá-lo a partir de seus poemas, que li desde criança numa antologia de Sergio Milliet. Seu romantismo se expressa assim:




Oh! não insulteis nunca uma mulher perdida!
Quem sabe qual o transe em que ela foi vencida?
Quem sabe se foi longo o seu combate rude,
Entre as mil privações que assaltam a virtude?
Se o vento das paixões soprou com violência,
Quem já viu a mulher, que prendia a inocência
Nas pequeninas mãos cruzadas sobre o seio,
Não ir no turbilhão, gritando, com receio?...
Tal a gota de chuva, - pérola da rama: -
Brilha ao passar do vento, oscila e cai na lama!

A culpa é nossa; é tua, ó rico! é do teu ouro!
Mas, no lodo é que o mar esconde o seu tesouro...
Para que o pingo d’água erga-se da poeira,
Com o vivo esplendor e a limpidez primeira.
Já que as transformações se operam pra melhor,
Dai-lhe um raio de sol! dai-lhe um raio de amor!

(Trad. de Múcio Teixeira)

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

A webcultura


ROGEL SAMUEL

A ameaça nos ronda. É falta de poesia. Eu vinha pela Tiradentes, passo
pela Rua Luiz de Camões, esquecida. Depois, a Travessa das Belas Artes.
Lá, só poucas mulheres ("da vida"), decadentes. Esperam fregueses, à luz
do dia. A seguir, o Beco do Tesouro. Nada mais pobre. "Proibidos beijos
ousados", está escrito no cardápio da Adega Flor de Coimbra. Em sonhos,
no meio do conflito. Estresse de notícias. Estamos assistindo ao fim da
Internet, como espaço livre de opinião, sem limites. A censura vai
acabar com a webcultura. Marca o fim da vida e arte virtual. Nasce a
desconfiança, a incerteza. Vamos nos entocar nos redutos, voltar à
civilização do papel, um estágio anterior ao micro: Fim do digital
público (melhor para mim, pois só assim paro de escrever essas crônicas
e me dedico a terminar, antes de morrer, os livros que tenho na gaveta).
Restritos são "os beijos ardentes". Lembro-me de um soneto de Olegário
Mariano, que não está nas suas "Obras Completas" e que começa: "As
coisas boas da vida, tu podes ter sem comprar".

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

AINDA

Rogel Samuel

A atual crise econômica americana assusta e muito quem sabe que o mundo está globalizado e que quando um elo do capitalismo se rompe "tudo o que é sólido se desmancha no ar", como disse Marx no "Manifesto":
"Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas, as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes mesmo de ossificar-se. Tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas. Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte".
O mundo é um todo, uma estrutura. Ou seja: "Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolve-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à produção material quanto à produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação torna-se propriedade comum de todas", escreveu o mesmo Marx, ainda atual.

sábado, 13 de setembro de 2008

O homem que roubava pássaros

O homem que roubava pássaros

Rogel Samuel


Ele conseguia aprisionar os pássaros no céu. Ninguém sabia como. Depois ele roubava seus
cantos e saía pela estrada cantando como um pássaro. Mas sua meta era voar. O dia que conseguiu
voar desapareceu da região.

Agora corre o boato que ele está tentando roubar as estrelas.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

O PÁSSARO DO PASSADO


Rogel Samuel

O PÁSSARO DO PASSADO


Graça de Carvalho morreu. Era minha amiga. Grande poetisa. Filha de Farias de Carvalho, autor de minha preferência. Graça andava deprimida, tinha 57 anos. Se tanto. Eu adiava visitá-la, em Niterói. Devo a ela um livro raro, de Farias, «Canção de bem amar...».
O primeiro poema de «Pássaro de cinzas», de Farias de Carvalho, que deu nome ao livro, e é assim seu «Prólogo»:

Desses mortos ocasos esquecidos
chega-me agora o pássaro de cinza;
de ontem são suas asas, de silêncio
o seu bico pousado sobre a ponte
entre o vencido vale e o bosque a entrar,
bica-me o peito onde marés antigas
jogam restos de mastros e fantasmas
desses velhos piratas que ficaram
tatuados na penumbra de olhos idos.
E sem saber talvez do inútil intento
ninha o vazio do momento, à espera
da comida do sonho que ontem davam
essas mãos que se foram, consumidas
nesses mortos ocasos esquecidos...

Encontrei a nova edição de «Pássaro de cinza» na livraria do Aeroporto, de volta ao Rio. Eu antes dispunha de um xeróx feito na Biblioteca Pública do Amazonas, há décadas. Era 28 de dezembro de 2000, o avião lotado dos que vinham para o Reveillon, um clima de «fim de siècle » pairava no ar. A meu lado um cavalheiro estrangeiro lia um livro, com gravuras. Sério, aborrecia-se cada vez que eu saía de meu lugar para andar, estirar as pernas, no corredor do aeroplano. Irritava-se com minha incontinência. Em pouco o calor da manhã clara de Manaus foi substituído por um tempo chuvoso, feio, frio, escuro, de Brasília. E eu voltava, voltava, continuava, continuava lendo, relendo, o poeta, o professor Carlos Farias Ouro de Carvalho. E vi os 35 anos se passando, desde que o vi pela última vez, no Colégio Estadual do Amazonas. Farias parecia com Orson Welles, gordo, moreno, os olhos esbugalhados, poderosos, carregados de genialidade, sorriso delirante, dramático, gestos largos, voz tonitruante, grave, minha leitura prosseguia, eu revia todos aqueles poemas de meu Professor de Literatura, de vida, moreno, gordo, talentoso, imponente, belo, que faleceu em Niterói, fazia “cartomancia clínica” em Niterói, dizem, inventava sonhos, futuros, inventariava profissões, ressuscitava esperanças mortas, profetizava, arregimentava os signos do zodíaco e orquestrava novas configurações prestidigitadas. Farias, figura extraordinária, agora reeditado. Quanto vale a sua poesia? Quem sabe. Ele faz parte do quarteto de ouro: Norões, Bacellar, Tufic e Farias, os quatro grandes da poesia do Amazonas, que fazem parte de meu arcabouço intelectual, tão improvisado. Sou um provinciano. Manaus é para mim minha pátria espiritual, mas não parece. Quando vou a Manaus só permaneço 3, 5 dias. Nunca mais voltei. Carrego Manaus dentro de mim. Não preciso estar lá. Farias faz parte de minhas mais antigas leituras. Me deu aula de vida, de alegria, de charme, de dignidade, nobreza. Ninguém tão elegante quanto ele, no gesto largo da mão gorda, na inclinação da face, na inflexão da voz, nas metáforas exatas, Farias cantava as aulas, declamava, não reclamava (nunca nos repreendeu), me ensinou a Poesia, a Ousadia, a Superação, foi um pai, um amigo, um exemplo, um grande exemplo de educador, no mais elevado sentido desse incômodo e errático termo, e hoje escrevo estas notas, vindas de longe, do tempo em que Farias exercia sobre a minha consciência de adolescente um papel mítico, imortalizado na arquitetura de seu «Pássaro de cinza», dedicado ao Dr. João Veiga, que relembro na sua bela casa da Getúlio Vargas, casa que não mais deve existir, aliás nada mais existe, nem Farias, nem Graça, tudo desapareceu no fundo da noite, dos anos, e se, na hora de minha morte, as imagens de minha vida se projetarem na minha consciência que se extingue, virão como um pássaro. Mas liberto desse passado de cinzas.

O SOL

O SOL

Rogel Samuel


O primeiro poema de «Plenilúnio» de Ledo Ivo dá nome ao livro e surpreende.
Na força, quase brutal, de seus versos, uma estranha rima, que diz:

“Uma lua enorme
paira no céu pálido
..................
lua dissoluta
dos filhos da puta”

Depois o poeta, em «Soneto da neve», conta da neve «branca como o esperma», e inveja a noite,

«cobra escondida
entre as bananeiras»
os anjos ocultos no bosque»,
as almas, como o gelo, se evaporam
no dia findo», onde «galinhas brancas
ciscam o universo».

O poeta se encapsula «na rua General Polidoro»:

«minha vida eterna
é problema meu»

ou no «Soneto injurioso», onde

«o silêncio sucede ao barulho infernal
Assim será a morte, assim será o dia
em que a morte virá, fria como uma jia».

Assim será a morte, a velha puta escrota
que avança para nós escondida na bruma."

Gosto da poesia de Ledo Ivo dos 80 anos. Ele exorciza a morte. O título do livro não bate com os versos. Poesia do contraste. Pós-moderna.
Leio na praia. Interrompo a leitura. Olho o mar. Quatro engraxates descem a rampa. São quatro meninos parecidos, morenos. Dois devem ser irmãos, mesmo gêmeos. Um alcoólatra entra na água. O avô e sua netinha chegam na areia. Uma mulher se aproxima da água com cuidado. A mãe se preocupa com os filhos que correm. O rapaz põe seu cão para nadar. O velho sem barriga ainda se pensa jovem atleta e passeia de peito estufado, jogando os braços. O casal de amigos passa e me vê. Acena, e passa.

O sol.

“Assim será a morte, assim será o dia
em que a morte virá, fria como uma jia”.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

OBRAS COMPLETAS


OBRAS COMPLETAS

Rogel Samuel


É um livro enorme, 1.099 páginas. Gosto desse tipo de livro. «Obra completa». É bom ver a obra inteira, integral, completa. Não acho este vasto volume vai ser completo, final. Mesmo com mais de 80 anos, Lêdo Ivo continua com fôlego. Basta ler o seu último livro, o «Plenilúnio», com poemas de 2001-2004. Um dos seus melhores.
Gosto sim dessas obras completas, mas raramente leio as introduções críticas. Como sou um crítico literário medíocre mas de carteirinha, profissional, raramente leio os confrades. Com exceção, claro, dos gênios, como Roberto Schwarz , Haroldo de Campos.
Pois me enganei: li, e com admiração, o texto introdutório de Ivan Junqueira. Apesar da ironia no título («Quem tem medo de Lêdo Ivo?»), traça excelente visão da poesia do poeta e da poesia brasileira como um todo.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Os presidentes


Os presidentes

Rogel Samuel

O Presidente Lula elogiou a imprensa dizendo que sem a liberdade de imprensa nunca teria chegado ao poder.

Ele disse isso no discurso de abertura da Semana da Academia Internacional de Televisão, "que reuniu cerca de 300 executivos estrangeiros e brasileiros, jornalistas e políticos no salão Cristal do Hotel Copacabana Palace".

O Presidente afirmou ainda que, mais cedo ou mais tarde, "a verdade termina aparecendo": porque "os telespectadores ou leitores são críticos implacáveis e juízes muito severos" e que "são plenamente capazes de separar o joio do trigo, a informação da desinformação, a notícia da campanha, a verdade da eventual manipulação. Quem não demonstra consideração por sua inteligência, termina por perder credibilidade".

Para ele o melhor juiz é mesmo o leitor, e que já passou a época da manipulação.

Isso me leva à reflexão sinistra seguinte e sua questão: Será mesmo que um negro pode governar os USA? Quando Morales venceu escrevi um texto prevendo os imensos problemas que ele teria se levasse à frente seu projeto de governo.

Não sei em outro lugar, mas no Rio de Janeiro a rejeição ao Presidente metalúrgico é muito grande. Graças à sua pessoal interferência o Rio realizou o Pan. E ele recebeu por isso a maior vaia da história da República.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

A montanha de areia



A montanha de areia


Rogel Samuel

Há um texto antigo que diz: "A montanha de areia é dispersada". O símbolo, o sentido global disso é que o resultado dos nossos objetivos é comprometido e invertido. É um presságio que diz: Esmagar a montanha em poeira. Sua fonte e crédito é o MO, um jogo divinatório tibetano feito ou organizado por Mipham, um grande iogue antigo.

Eu o consulto às vezes, sem muita certeza de que o enigma se resolverá, ou se o MO vai dignar-se a falar comigo, um mísero mortal.

Não sei o que significa MO. Em Katmandhu, havia um famoso iogue, meio mendigo, que jogava o MO nas ruas. E era muito consultado.

Há outros jogos, como aquele que dizem Napoleão usava para a guerra. O imperador o trouxe do Egito, onde era utilizado pelos faraós.

Quem bom seria para nós, nas nossas dúvidas diárias, ter algo que nos dissesse se tal negócio seria bem sucedido, se aquela viagem seria boa, etc.

Vivemos nossas dúvidas sem recurso lógico para resolvê-las. Principalmente quanto ao futuro.

Mas recorro ao MO por hábito, por esporte, pela crença. Recorro ao MO na Internet:

http://www.magastral.com/astrotibet/mo/mo.html

Não recomendo a ninguém, pois vicia.

Hoje, por hábito, perguntei se eu deveria fazer uma certa viagem. O MO respondeu:
"A montanha de areia é dispersada". Ou seja, "o resultado dos vossos objetivos é
comprometido e invertido".

Confesso que fico feliz. Estou cada vez mais velho para viajar.

sábado, 6 de setembro de 2008

UM QUADRO

Um quadro

Rogel Samuel


Dogen, ainda Dogen (1200-1253) escreveu, ou melhor, pintou um quadro imaginativo perene, máximo, perto da perfeição absoluta, em poucas palavras. Nós vemos aí o tempo, o tempo vazio, o tempo imóvel, o pensamento imóvel, a imobilidade do instante eterno, a pura percepção do absoluto universal, vazio e luminoso - barco vazio sintoniza que não vamos a nenhum lugar, porque já chegamos, porque já estamos lá, inundados de felicidade, em paz com o universo, em paz com o céu e com o inferno, livres das ondas do bem e do mal, livres do ventos do destino, das causas, das conseqüências, das interferências, nós somos ali o todo e o tudo, com a transparência do luar.

Meia-noite.
Nenhuma onda, nenhum vento,
o barco vazio
é inundado de luar.

MORRE ALPHONSUS DE GUIMARAES FILHO

MORRE ALPHONSUS DE GUIMARAES FILHO

Rogel Samuel



Os grandes poetas morrem e ninguém sabe. Porque não morrem. Não morrem nunca. Eu não sabia até hoje, quando lí em Blocos, dito por Glauco Mattoso. Morreu o poeta e partiu, para a rota do desconhecido, como ele escreveu:

Rota do Desconhecido

Quando eu seguir na rota do desconhecido
a minha voz ficará cantando na tua memória
e tua alma sentirá a presença
do meu sonho em teu sonho,
do meu riso de perdão à miséria do mundo.
Então, Amada, canta!
A noite se embalará com as canções marinhas
subindo, diretas, do teu coração.
Tua alma será, então uma praia branca,
onde cantarão os pescadores tristes:
os teus sonhos de amor abraçados ao desânimo...
Eu irei longe... Minha memória errará nas estrelas
e minha alma será o vento que acarinha plantas,
que acarinha flores sonolentas.
Eu irei longe, eu irei tão longe,
que meu coração vencerá distâncias
para ouvir tuas canções praieiras,
amada, grande Amada,
e minha alma será o céu pontilhado de estrelas
que há de fazer adormecer tua saudade!

Publicado no livro Lume de estrelas: poemas (1940).
In: GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de. Poemas reunidos, 1935/1960. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p. 27-28

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

O SOPRO DO NADA


O sopro do nada

Rogel Samuel

O soneto parece uma carta, responde a um jovem. Posso? - pergunta ele. Não, não pode. Só um deus o pode. O homem não acompanha a um deus na lira. Não se pode acompanhar a lira de Apolo. Que se passa no coração de um deus? Seu canto é alento, vem do nada. É vento porque vida, cantar é existir. Para o deus tudo é possível, não para nós. O assunto do canto não é o que amas. O que amas passa, é momentâneo. O tema do canto é o eterno, o que está sempre lá, só deus o pode, nós não conseguimos acompanhar Rainer Maria Rilke.

Um deus o pode. Mas, dize-me, poderia um
homem acompanhá-lo na lira encantada?
Sua mente é discórdia e nas encruzilhadas
do coração Apolo não tem templo algum.

O canto, como o ensinas, não é o querer
nem busca do que querer que seja de atingível.
Cantar é existir. para o deus, tudo é factível.
Mas nós, quando é que somos? Quando ao nosso ser

dará ele de volta a terra e as estrelas?
Não é o que amas, jovem, mesmo que forçasse
a voz em tua boca. Aprende a esquecê-las,

tais canções. Elas passam, frutos do momento.
O canto em verdade de outro sopro faz-se.
Um sopro de nada. Um alento em Deus. Um vento.

(Trad. José Carlos Paes )

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

OS GRAMPOS

Os grampos


Rogel Samuel


Getúlio só falava em público com a mão na boca. Ele escondia a boca para que ninguém
que soubesse ler os lábios pudesse saber o que ele dizia. E dizem que ele contava coisas diferentes para cada interlocutor, fazendo uma grande confusão entre os seus supostos "confidentes", de forma que ninguém sabia ao certo o que ele pensava e que decisões ia tomar. Contam que ele se mostrava íntimo de todos, confiava em todos, e a todos ele traía. Mesmo sua mulher não sabia ao certo o que ele pensava, pois para ela um dia dizia uma coisa, no outro o seu contrário. Com isso ficou no poder por muitos anos.
De Tancredo se diz que ele nunca falava nada sério ao telefone, que desligava ou dizia algum disparate, como "não estou ouvindo" etc. Também não tinha confidentes.
Getúlio sempre era bonzinho e sorridente, mas quando seu interlocutor se retirava despejava o ódio nas coisas. Jogava tudo no chão. Era bonzinho e perigoso. E muito vaidoso: durante toda a vida desconheceu a existência de seu maior adversário, Carlos Lacerda. Dizem que nunca pronunciou o nome de Lacerda. Ignorou-o até o fim.

Talvez por isso Lacerda o odiava tanto.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Borghese



Borghese



Rogel Samuel


"Borghese" é o título do poema de Rilke. Tradução de Augusto de Campos. O poema é tão bom, e nítido, que se pode "ver" as bordar de mármore, "ouvir" a água fluir, cair, a água caindo sobre a água ainda que muda, a água esperando a água, a água dialogando com a água, como no côncavo da mão que a vai beber, a água espelhando o céu, emoldurado pelo verde-escuro, a água que escorre na bela pia batismal em círculos constantes, impassíveis, sob o musgo que na última bacia fecha a travessia. Toda a arte se deve ao tradutor Augusto, que recriou o poema, que recriou o objeto de mármore, as bacias de água que em queda entram, derramam-se na nossa imaginação.

Duas velhas bacias sobrepondo
suas bordas de mármore redondo.
Do alto a água fluindo, devagar,
sobre a água, mais em baixo, a esperar,
muda, ao murmúrio, em diálogo secreto,
como que só no côncavo da mão,
entremostrando um singular objeto:
o céu, atrás da verde escuridão;
ela mesma a escorrer na bela pia,
em círculos e círculos, constante —
mente, impassível e sem nostalgia,
descendo pelo musgo circundante
ao espelho da última bacia
que faz sorrir, fechando a travessia.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O ERO POEMA

Rogel Samuel


Leio na Internet um poema erótico de Elmar Carvalho, um ero poema, da ero moça:

A ero moça

A aeromoça
abre os braços
e mostra as saídas
de emergência...
E eu a sonhar
que ela abrisse
as pernas e mostrasse
as entradas de quintessência.

Lembro-me bem das aeromoças que abrem os braços sobre as poltronas e as emergências. O poeta, na sua emergente eroticidade, mostra as saídas da quintessencia. Este é um poema que opõe a vida X a morte. As saídas de emergência... são para o desastre. As entradas de quintessência são para o êxito, a alegria, a vitalidade humana. Abrir os braços mostra as saídas da morte, abrir as pernas a maternidade da vida. É eros contra a morte. Como sempre.