Os pássaros aquáticos
Rogel Samuel
O mestre Dogen escreveu:
Vindo, indo, os pássaros aquáticos
não deixam um rastro
não seguem um traço.
Sem destino, sem passado, os pássaros aquáticos. Impossível seguir-lhes a rota, saber seu destino. Vão e vêm no espaço. Quem os controla? Por que não somos como esses pássaros, sem origem e sem destino, só presença infinita e eterna? Por que não nos libertamos do passado e da urgência do amanhã? O passado não mais existe, coisa morta. O amanhã é uma rua, no fim da qual é a morte. Por que carregamos o fardo de um passado, em direção à morte?
No meu bairro há um estranho mendigo, magro, sujo, barbudo. Não aceita dinheiro. Quando passa deixa um odor fétido de quem nunca mudou de roupa. Quantos anos terá? Não é velho. Deve ter um nome, todos têm um nome. Deve ter família em algum lugar. O diferente nele é que ele carrega um imenso e pesado saco nas costas.
domingo, 31 de março de 2013
sexta-feira, 29 de março de 2013
ELIOT
A CANÇÃO DE AMOR DE J. ALFRED PRUFROCK(1)
T. S. ELIOT
Trad. Ivan Junqueira
S’io credesse che mia ris posta fosse
A persona che mai tornasse ai mondo,
Questa fiamma staria senza piu scosse.
Ma perciocche giammai di questo fondo
Non torno vivo alcun, s’i’odo il vero,
Senza tema d’infamia ti rispondo. (2)
Sigamos então, tu e eu,
Enquanto o poente no céu se estende
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por certas ruas quase ermas,
Através dos sussurrantes refúgios
De noites indormidas em hotéis baratos,
Ao lado de botequins onde a serragem
Às conchas das ostras se entrelaça:
Ruas que se alongam como um tedioso argumento
Cujo insidioso intento
É atrair-te a uma angustiante questão.
Oh, não perguntes: “Qual?”
Sigamos a cumprir nossa visita.
No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Angelo.
A fulva neblina que roça na vidraça suas espáduas,
A fumaça amarela que na vidraça seu focinho esfrega
E cuja língua resvala nas esquinas do crepúsculo,
Pousou sobre as poças aninhadas na sarjeta,
Deixou cair sobre seu dorso a fuligem das chaminés,
Deslizou furtiva no terraço, um repentino salto alçou,
E ao perceber que era uma tenra noite de outubro,
Enrodilhou-se ao redor da casa e adormeceu.
E na verdade tempo haverá
Para que ao longo das ruas flua a parda fumaça,
Roçando suas espáduas na vidraça;
Tempo haverá, tempo haverá
Para moldar um rosto com que enfrentar
Os rostos que encontrares;
Tempo para matar e criar,
E tempo para todos os trabalhos e os dias em que mãos
Sobre teu prato erguem, mas depois deixam cair uma questão;
Tempo para ti e tempo para mim,
E tempo ainda para uma centena de indecisões,
E uma centena de visões e revisões,
Antes do chá com torradas.
No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Ângelo.
E na verdade tempo haverá
Para dar rédeas à imaginação. “Ousarei” E. “Ousarei?”
Tempo para voltar e descer os degraus,
Com uma calva entreaberta em meus cabelos
(Dirão eles: “Como andam ralos seus cabelos!”)
- Meu fraque, meu colarinho a empinar-me com firmeza o queixo,
Minha soberba e modesta gravata, mas que um singelo alfinete [apruma
(Dirão eles: “Mas como estão finos seus braços e pernas!”)
- Ousarei
Perturbar o universo?
Em um minuto apenas há tempo
Para decisões e revisões que um minuto revoga.
Pois já conheci a todos, a todos conheci
- Sei dos crepúsculos, das manhãs, das tardes,
Medi minha vida em colherinhas de café;
Percebo vozes que fenecem com uma agonia de outono
Sob a música de um quarto longínquo.
Como então me atreveria?
E já conheci os olhos, a todos conheci
Os olhos que te fixam na fórmula de uma frase;
Mas se a fórmulas me confino, gingando sobre um alfinete,
Ou se alfinetado me sinto a colear rente à parede,
Como então começaria eu a cuspir
Todo o bagaço de meus dias e caminhos?
E como iria atrever-me?
E já conheci também os braços, a todos conheci
Alvos e desnudos braços ou de braceletes anelados
(Mas à luz de uma lâmpada, lânguidos se quedam
Com sua leve penugem castanha!)
Será o perfume de um vestido
Que me faz divagar tanto?
Braços que sobre a mesa repousam, ou num xale se enredam.
E ainda assim me atreveria?
E como o iniciaria?
Diria eu que muito caminhei sob a penumbra das vielas
E vi a fumaça a desprender-se dos cachimbos
De homens solitários em mangas de camisa, à janela debruçados?
Eu teria sido um par de espedaçadas garras
A esgueirar-me pelo fundo de silentes mares.
E a tarde e o crepúsculo tão docemente adormecem!
Por longos dedos acariciados,
Entorpecidos... exangues... ou a fingir-se de enfermos,
Lá no fundo estirados, aqui, ao nosso lado.
Após o chá, os biscoitos, os sorvetes,
Teria eu forças para enervar o instante e induzi-lo à sua crise?
Embora já tenha chorado e jejuado, chorado e rezado,
Embora já tenha visto minha cabeça (a calva mais cavada)
[servida numa travessa,
Não sou profeta - mas isso pouco importa;
Percebi quando titubeou minha grandeza,
E vi o eterno Lacaio a reprimir o riso, tendo nas mãos meu
sobretudo.
Enfim, tive medo.
E valeria a pena, afinal,
Após as chávenas, a geléia, o chá,
Entre porcelanas e algumas palavras que disseste,
Teria valido a pena
Cortar o assunto com um sorriso,
Comprimir todo o universo numa bola
E arremessá-la ao vértice de uma suprema indagação,
Dizer: “Sou Lázaro, venho de entre os mortos,
Retorno para tudo vos contar, tudo vos contarei.”
- Se alguém, ao colocar sob a cabeça um travesseiro,
Dissesse: “Não é absolutamente isso o que quis dizer,
Não é nada disso, em absoluto.”
E valeria a pena, afinal,
Teria valido a pena,
Após os poentes, as ruas e os quintais polvilhados de rocio,
Após as novelas, as chávenas de chá, após
O arrastar das saias no assoalho
- Tudo isso, e tanto mais ainda? -
Impossível exprimir exatamente o que penso!
Mas se uma lanterna mágica projetasse
Na tela os nervos em retalhos...
Teria valido a pena,
Se alguém, ao colocar um travesseiro ou ao tirar seu xale
[às pressas,
E ao voltar em direção à janela, dissesse:
“Não é absolutamente isso,
Não é isso o que quis dizer, em absoluto.”
Não! Não sou o Príncipe Hamlet, nem pretendi sê-lo.
Sou um lorde assistente, o que tudo fará
Por ver surgir algum progresso, iniciar uma ou duas cenas,
Aconselhar o príncipe; enfim, um instrumento de fácil manuseio,
Respeitoso, contente de ser útil,
Político, prudente e meticuloso;
Cheio de máximas e aforismos, mas algo obtuso;
Às vezes, de fato, quase ridículo
Quase o Idiota, às vezes.
Envelheci.., envelheci...
Andarei com os fundilhos das calças amarrotados.
Repartirei ao meio meus cabelos? Ousarei comer um pêssego?
Vestirei brancas calças de flanela, e pelas praias andarei.
Ouvi cantar as sereias, umas para as outras.
Não creio que um dia elas cantem para mim.
Vi-as cavalgando rumo ao largo,
A pentear as brancas crinas das ondas que refluem
Quando o vento um claro-escuro abre nas águas.
Tardamos nas câmaras do mar
Junto às ondinas com sua grinalda de algas rubras e castanhas
Até sermos acordados por vozes humanas. E nos afogarmos.
1- Escrito em Paris-Munique, 1911. (N. doT).
2-Dante Alighieri. La Divina Commedia, Inferno, XXVII, 61-66. (N. doT.)
Assista ao filme poético deste texto em:
http://www.poetrymagazine.com/poetry_films/theatre_eliot.htm
T. S. ELIOT
Trad. Ivan Junqueira
S’io credesse che mia ris posta fosse
A persona che mai tornasse ai mondo,
Questa fiamma staria senza piu scosse.
Ma perciocche giammai di questo fondo
Non torno vivo alcun, s’i’odo il vero,
Senza tema d’infamia ti rispondo. (2)
Sigamos então, tu e eu,
Enquanto o poente no céu se estende
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por certas ruas quase ermas,
Através dos sussurrantes refúgios
De noites indormidas em hotéis baratos,
Ao lado de botequins onde a serragem
Às conchas das ostras se entrelaça:
Ruas que se alongam como um tedioso argumento
Cujo insidioso intento
É atrair-te a uma angustiante questão.
Oh, não perguntes: “Qual?”
Sigamos a cumprir nossa visita.
No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Angelo.
A fulva neblina que roça na vidraça suas espáduas,
A fumaça amarela que na vidraça seu focinho esfrega
E cuja língua resvala nas esquinas do crepúsculo,
Pousou sobre as poças aninhadas na sarjeta,
Deixou cair sobre seu dorso a fuligem das chaminés,
Deslizou furtiva no terraço, um repentino salto alçou,
E ao perceber que era uma tenra noite de outubro,
Enrodilhou-se ao redor da casa e adormeceu.
E na verdade tempo haverá
Para que ao longo das ruas flua a parda fumaça,
Roçando suas espáduas na vidraça;
Tempo haverá, tempo haverá
Para moldar um rosto com que enfrentar
Os rostos que encontrares;
Tempo para matar e criar,
E tempo para todos os trabalhos e os dias em que mãos
Sobre teu prato erguem, mas depois deixam cair uma questão;
Tempo para ti e tempo para mim,
E tempo ainda para uma centena de indecisões,
E uma centena de visões e revisões,
Antes do chá com torradas.
No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Ângelo.
E na verdade tempo haverá
Para dar rédeas à imaginação. “Ousarei” E. “Ousarei?”
Tempo para voltar e descer os degraus,
Com uma calva entreaberta em meus cabelos
(Dirão eles: “Como andam ralos seus cabelos!”)
- Meu fraque, meu colarinho a empinar-me com firmeza o queixo,
Minha soberba e modesta gravata, mas que um singelo alfinete [apruma
(Dirão eles: “Mas como estão finos seus braços e pernas!”)
- Ousarei
Perturbar o universo?
Em um minuto apenas há tempo
Para decisões e revisões que um minuto revoga.
Pois já conheci a todos, a todos conheci
- Sei dos crepúsculos, das manhãs, das tardes,
Medi minha vida em colherinhas de café;
Percebo vozes que fenecem com uma agonia de outono
Sob a música de um quarto longínquo.
Como então me atreveria?
E já conheci os olhos, a todos conheci
Os olhos que te fixam na fórmula de uma frase;
Mas se a fórmulas me confino, gingando sobre um alfinete,
Ou se alfinetado me sinto a colear rente à parede,
Como então começaria eu a cuspir
Todo o bagaço de meus dias e caminhos?
E como iria atrever-me?
E já conheci também os braços, a todos conheci
Alvos e desnudos braços ou de braceletes anelados
(Mas à luz de uma lâmpada, lânguidos se quedam
Com sua leve penugem castanha!)
Será o perfume de um vestido
Que me faz divagar tanto?
Braços que sobre a mesa repousam, ou num xale se enredam.
E ainda assim me atreveria?
E como o iniciaria?
Diria eu que muito caminhei sob a penumbra das vielas
E vi a fumaça a desprender-se dos cachimbos
De homens solitários em mangas de camisa, à janela debruçados?
Eu teria sido um par de espedaçadas garras
A esgueirar-me pelo fundo de silentes mares.
E a tarde e o crepúsculo tão docemente adormecem!
Por longos dedos acariciados,
Entorpecidos... exangues... ou a fingir-se de enfermos,
Lá no fundo estirados, aqui, ao nosso lado.
Após o chá, os biscoitos, os sorvetes,
Teria eu forças para enervar o instante e induzi-lo à sua crise?
Embora já tenha chorado e jejuado, chorado e rezado,
Embora já tenha visto minha cabeça (a calva mais cavada)
[servida numa travessa,
Não sou profeta - mas isso pouco importa;
Percebi quando titubeou minha grandeza,
E vi o eterno Lacaio a reprimir o riso, tendo nas mãos meu
sobretudo.
Enfim, tive medo.
E valeria a pena, afinal,
Após as chávenas, a geléia, o chá,
Entre porcelanas e algumas palavras que disseste,
Teria valido a pena
Cortar o assunto com um sorriso,
Comprimir todo o universo numa bola
E arremessá-la ao vértice de uma suprema indagação,
Dizer: “Sou Lázaro, venho de entre os mortos,
Retorno para tudo vos contar, tudo vos contarei.”
- Se alguém, ao colocar sob a cabeça um travesseiro,
Dissesse: “Não é absolutamente isso o que quis dizer,
Não é nada disso, em absoluto.”
E valeria a pena, afinal,
Teria valido a pena,
Após os poentes, as ruas e os quintais polvilhados de rocio,
Após as novelas, as chávenas de chá, após
O arrastar das saias no assoalho
- Tudo isso, e tanto mais ainda? -
Impossível exprimir exatamente o que penso!
Mas se uma lanterna mágica projetasse
Na tela os nervos em retalhos...
Teria valido a pena,
Se alguém, ao colocar um travesseiro ou ao tirar seu xale
[às pressas,
E ao voltar em direção à janela, dissesse:
“Não é absolutamente isso,
Não é isso o que quis dizer, em absoluto.”
Não! Não sou o Príncipe Hamlet, nem pretendi sê-lo.
Sou um lorde assistente, o que tudo fará
Por ver surgir algum progresso, iniciar uma ou duas cenas,
Aconselhar o príncipe; enfim, um instrumento de fácil manuseio,
Respeitoso, contente de ser útil,
Político, prudente e meticuloso;
Cheio de máximas e aforismos, mas algo obtuso;
Às vezes, de fato, quase ridículo
Quase o Idiota, às vezes.
Envelheci.., envelheci...
Andarei com os fundilhos das calças amarrotados.
Repartirei ao meio meus cabelos? Ousarei comer um pêssego?
Vestirei brancas calças de flanela, e pelas praias andarei.
Ouvi cantar as sereias, umas para as outras.
Não creio que um dia elas cantem para mim.
Vi-as cavalgando rumo ao largo,
A pentear as brancas crinas das ondas que refluem
Quando o vento um claro-escuro abre nas águas.
Tardamos nas câmaras do mar
Junto às ondinas com sua grinalda de algas rubras e castanhas
Até sermos acordados por vozes humanas. E nos afogarmos.
1- Escrito em Paris-Munique, 1911. (N. doT).
2-Dante Alighieri. La Divina Commedia, Inferno, XXVII, 61-66. (N. doT.)
Assista ao filme poético deste texto em:
http://www.poetrymagazine.com/poetry_films/theatre_eliot.htm
RILKE - PRIMEIRA ELEGIA
RAINER MARIA RILKE
--------------------------------------------------------------------------------
PRIMEIRA ELEGIA
Quem se eu gritasse, entre as legiões de Anjos
me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse
inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia
sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo
senão o grau do Terrível que ainda suportamos
e que admiramos porque, impassível, desdenha
destruir-nos? Todo anjo é terrível.
E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia
valer? Nem anjos, nem homens
e o intuitivo animal logo adverte
que para nós não há amparo
neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe,
a árvore de alguma colina, que podemos rever
cada dia; resta-nos a rua de ontem
e o apego cotidiano de algum hábito
que se afeiçoou a nós e permaneceu.
E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços
do mundo desgastar-nos a face — a quem se furtaria ela,
a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o
coração solitário? Será mais leve para os que amam?
Ai, apenas ocultam eles, um ao outro, seu destino.
Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços
para os espaços que respiramos — talvez os pássaros
sentirão o ar mais dilatado, num vôo mais comovido.
Sim, as primaveras precisam de ti.
Muitas estrelas queriam ser percebidas.
Do passado profundo afluía uma vaga, ou
quando passavas sob uma janemla aberta,
uma viola d'amore se abandonava. Tudo isso era missão.
Acaso a cumpriste? Não estavas sempre
distraído, aà espera, como se tudo
anunciasse a amada? (Onde queres abrigá-la,
se grandes e estranhos pensamentos vão e vêm
dentro de ti e, muitas vezes, se demoram nas noites?)
Se a nostalgia vier, porém, canta as amantes;
ainda não é bastante imoral sua celebrada ternura.
Tu quase as invejas — estas abandonadas
que te parecem tão mais ardentes que as
apaziguadas. Retoma infinitamente o inesgotável
louvor. Lembra-te: o herói permanece, sua queda
mesma foi um pretexto para ser — nasciemnto supremo.
Mas às amantes, retoma-as a natureza no seio
esgotado, como se as forças lhe faltassem
para realizar duas vezes a mesma obra.
Com que fervor lembraste Gaspara Stampa,
cujo exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem
qualquer, abandonada pelo amante: por que não sou
como ela? Frutificarão afinal esses longínquos
sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se
do objetivo amado e superá-lo, frementes?
Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo
mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.
Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas
os santos ouviam, quando o imenso chamado
os erguia do chão; eles porém permaneciam ajoelhados,
os prodigiosos, e nada percebiam,
tão absortos ouviam. Não que possas suportar
a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem,
a incessante mensagem que gera o silêncio.
Ergue-se agora, para que ouças, o rumor
dos jovens mortos. Onde quer que fosses,
nas igrejas de Roma e Nápoes, não ouvias a voz
de seu destino tranquilo? Ou inscrições não se ofereciam,
sublimes? A estela funerária em Santa Maria Formosa...
O que pede essa voz? a ansiada libertação
da aparência de injustiça que as vezes perturba
a agilidade pura de suas almas.
É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,
abandonar os hábitos apenas aprendidos,
às rosas e a outras coisas o sentido do vir-a-ser humano;
o que se era, entre mãos trêmulas, medrosas,
não mais ser; abandonar até mesmo o próprio nome
como se abandona um brinquedo partido.
Estranho, não desejar mais nossos desejos. Estranho,
ver no espaço tudo o quanto se encandeava, esvoaçar,
desligado. E o estar-morto é penoso
e quantas tentativas até encontrar em seu seio
um vestígio de eternidade. — Os vivos cometem
o grande erro de distinguir demasiado
bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem
se caminham entre vivos ou mortos.
Através das duas esferas, todas as idades a corrente
eterna arrasta. E a ambas domina com seu rumor.
Os mortos precoces não precisam de nós, eles
que se desabituam do terrestre, docemente,
como de suave seio maternal. Mas nós,
ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes
só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles
poderíamos ser? Inutilmente foi que outrora, a primeira
música para lamentas Linos, violentou a rigidez da
matéria inerte? No espaço que abandonava, jovem,
quase deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu
em vibrações — que hoje nos trazem êxtase, consolo e amparo.
quinta-feira, 28 de março de 2013
UM QUADRO
Um quadro
Rogel Samuel
Dogen, ainda Dogen (1200-1253) escreveu, ou melhor, pintou um quadro imaginativo perene, máximo, perto da perfeição absoluta, em poucas palavras. Nós vemos aí o tempo, o tempo vazio, o tempo imóvel, o pensamento imóvel, a imobilidade do instante eterno, a pura percepção do absoluto universal, vazio e luminoso - barco vazio sintoniza que não vamos a nenhum lugar, porque já chegamos, porque já estamos lá, inundados de felicidade, em paz com o universo, em paz com o céu e com o inferno, livres das ondas do bem e do mal, livres do ventos do destino, das causas, das conseqüências, das interferências, nós somos ali o todo e o tudo, com a transparência do luar.
Meia-noite.
Nenhuma onda, nenhum vento,
o barco vazio
é inundado de luar.
Rogel Samuel
Dogen, ainda Dogen (1200-1253) escreveu, ou melhor, pintou um quadro imaginativo perene, máximo, perto da perfeição absoluta, em poucas palavras. Nós vemos aí o tempo, o tempo vazio, o tempo imóvel, o pensamento imóvel, a imobilidade do instante eterno, a pura percepção do absoluto universal, vazio e luminoso - barco vazio sintoniza que não vamos a nenhum lugar, porque já chegamos, porque já estamos lá, inundados de felicidade, em paz com o universo, em paz com o céu e com o inferno, livres das ondas do bem e do mal, livres do ventos do destino, das causas, das conseqüências, das interferências, nós somos ali o todo e o tudo, com a transparência do luar.
Meia-noite.
Nenhuma onda, nenhum vento,
o barco vazio
é inundado de luar.
quarta-feira, 27 de março de 2013
Cravo-da-índia mata larvas da dengue em 24 horas
Cravo-da-índia mata larvas da dengue em 24 horas
Divulgação
Pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia descobriram, através de análises, que a substância Eugenol encontrada no cravo-da-índia é capaz de matar as larvas de mosquito da dengue em 24 horas.O Inpa foi pioneiro em utilizar a substância na prevenção do mosquito Aedes Egypti. A fórmula simples e eficaz pode ser feita em casa com 60 cravinhos e uma xícara de água, concentração ideal para manter o efeito da substância.
terça-feira, 26 de março de 2013
Uma aplicação que resume textos tornou Nick um adolescente multimilionário
Uma aplicação que resume textos tornou Nick um adolescente multimilionário
Aos 12 anos criou a primeira aplicação, à quarta app conseguiu a atenção dos investidores e esta semana um acordo com a Yahoo tornou-o um dos adolescentes britânicos mais ricos.
Ganhar dezenas de milhões de euros antes dos 18 anos não é para todos, mas não é impossível. Nick D’Aloisio, um britânico de 17 anos, conseguiu um negócio milionário esta segunda-feira com a Yahoo com a venda de uma aplicação móvel. A Summly resume longos textos em versões mais curtas para poderem ser lidas em smartphones. Além da venda da app, o agora multimilionário foi convidado a integrar os quadros da empresa norte-americana.
Ao britânico o Yahoo terá ainda feito uma oferta de trabalho, mas, para já, trabalhar a tempo inteiro na empresa não está nos planos de Nick, como sublinhou em declarações ao The New York Times. “Ainda me falta um ano e meio para terminar o secundário”. “Vou ficar em Londres. Quero terminar os meus exames finais e não poderia realmente viver por minha conta lá fora”, acrescentou, por sua vez, ao The Guardian. Entretanto, Nick vai trabalhar sempre que possível a partir dos escritórios do Yahoo em Londres, tornando-se no mais jovem funcionário da empresa norte-americana.
Nick deu os primeiros passos no mundo da tecnologia aos nove anos, quando teve o seu primeiro computador e começou por fazer pequenos filmes. Com o apoio do pai, que trabalha na Morgan Stanley, e da mãe, uma advogada, aos 12 anos arriscou a programação, depois dos pais lhe terem oferecido o livro C Programming For Dummies (Programação C para Totós), e criou a sua primeira aplicação, a Fingermill. Seguiu-se a Facemood, uma app que ajuda a analisar o estado de humor dos utilizadores do Facebook, e ainda a SongStumblr, destinada à pesquisa de músicas.
Nick investiu depois na app Trimit, que foi descarregada mais de 200 mil vezes, uma espécie de versão inicial do que se viria a tornar a Summly. A ideia para a aplicação surgiu da frustração de Nick com os resultados de pesquisa no Google depois de um dia de estudos. A informação que encontrou era demasiada e tinha pouco tempo para a ler. Arrancou com a app Trimit, que, através de um algoritmo, reduzia automaticamente textos a 400 caracteres.
A Trimit foi melhorada e em Novembro de 2012 é apresentada a Summly, que lhe valeu o prémio da Apple para uma das melhores aplicações disponibilizadas pela marca nesse ano. Foi assim que Nick chamou a atenção da Horizons Ventures, firma liderada por Li Ka-shing, um homem rico e poderoso de Hong Kong, que criou um fundo que permitiu ao adolescente britânico contratar uma equipa e arrendar um espaço onde continuasse a desenvolver a aplicação.
A Li Ka-shing juntaram-se outros investidores, como o actor norte-americano Ashton Kutcher, a artista Yoko Ono e ainda o patrão do grupo de comunicação News Corp, Robert Murdoch. A Yahoo surgiu no caminho do adolescente em Dezembro e desde então têm decorrido as negociações para adquirir a Summly.
Para o estudante do ensino secundário em Wimbledon, nos arredores de Londres, "há sempre alguém disposto a investir numa boa ideia". “Tem sido superexcitante, [os investidores] souberam [da app] em 2012 quando foi tornado público o primeiro investimento de Li Ka-shing. Todos acreditaram na ideia, todos ofereceram diferentes experiências para nos ajudar”, contou Nick à Reuters.
Não se sabe ainda o valor final que será pago a Nick D’Aloisio pela app, mas algumas estimativas já começaram a ser avançadas. O AllThingsD, site de notícias de tecnologia, fala num acordo de 30 milhões de dólares (23 milhões de euros), enquanto o The Guardian aponta para 18 milhões de libras (21 milhões de euros), “90% em dinheiro e 10% em acções do Yahoo”, um valor total que alguns acreditam que pode chegar a perto de 47 milhões de euros.
“Se temos uma boa ideia, ou pensamos que há uma falha no mercado, avançamos e divulgamos essa ideia. Há investidores em todo o mundo neste momento à procura de companhias onde investir”, disse Nick à Reuters para explicar o seu sucesso.Ao britânico o Yahoo terá ainda feito uma oferta de trabalho, mas, para já, trabalhar a tempo inteiro na empresa não está nos planos de Nick, como sublinhou em declarações ao The New York Times. “Ainda me falta um ano e meio para terminar o secundário”. “Vou ficar em Londres. Quero terminar os meus exames finais e não poderia realmente viver por minha conta lá fora”, acrescentou, por sua vez, ao The Guardian. Entretanto, Nick vai trabalhar sempre que possível a partir dos escritórios do Yahoo em Londres, tornando-se no mais jovem funcionário da empresa norte-americana.
Nick deu os primeiros passos no mundo da tecnologia aos nove anos, quando teve o seu primeiro computador e começou por fazer pequenos filmes. Com o apoio do pai, que trabalha na Morgan Stanley, e da mãe, uma advogada, aos 12 anos arriscou a programação, depois dos pais lhe terem oferecido o livro C Programming For Dummies (Programação C para Totós), e criou a sua primeira aplicação, a Fingermill. Seguiu-se a Facemood, uma app que ajuda a analisar o estado de humor dos utilizadores do Facebook, e ainda a SongStumblr, destinada à pesquisa de músicas.
Nick investiu depois na app Trimit, que foi descarregada mais de 200 mil vezes, uma espécie de versão inicial do que se viria a tornar a Summly. A ideia para a aplicação surgiu da frustração de Nick com os resultados de pesquisa no Google depois de um dia de estudos. A informação que encontrou era demasiada e tinha pouco tempo para a ler. Arrancou com a app Trimit, que, através de um algoritmo, reduzia automaticamente textos a 400 caracteres.
A Trimit foi melhorada e em Novembro de 2012 é apresentada a Summly, que lhe valeu o prémio da Apple para uma das melhores aplicações disponibilizadas pela marca nesse ano. Foi assim que Nick chamou a atenção da Horizons Ventures, firma liderada por Li Ka-shing, um homem rico e poderoso de Hong Kong, que criou um fundo que permitiu ao adolescente britânico contratar uma equipa e arrendar um espaço onde continuasse a desenvolver a aplicação.
A Li Ka-shing juntaram-se outros investidores, como o actor norte-americano Ashton Kutcher, a artista Yoko Ono e ainda o patrão do grupo de comunicação News Corp, Robert Murdoch. A Yahoo surgiu no caminho do adolescente em Dezembro e desde então têm decorrido as negociações para adquirir a Summly.
Para o estudante do ensino secundário em Wimbledon, nos arredores de Londres, "há sempre alguém disposto a investir numa boa ideia". “Tem sido superexcitante, [os investidores] souberam [da app] em 2012 quando foi tornado público o primeiro investimento de Li Ka-shing. Todos acreditaram na ideia, todos ofereceram diferentes experiências para nos ajudar”, contou Nick à Reuters.
O GAROTO DO AEROPORTO
O GAROTO DO AEROPORTO
ROGEL SAMUEL
No tempo em que eu trabalhava no Aeroporto de Pampulha, em Belo Horizonte, chamou-me atenção um garoto que todos os dias encontrava sentado no terraço do primeiro andar olhando fixo o horizonte à espera dos aeroplanos que chegavam e que vinham daquela direção do nascente.
E me recordo da primeira vez que o vi pois tive de afastá-lo da entrada e passagem da porta de nosso escritório, onde se colocara ele, sentado a olhar.
Depois disso notei que diariamente no fim da tarde estava ele sempre ali, olhos perdidos no fim do horizonte, a boca semi-aberta, o ar enigmático.
Não era louco o rapaz (penso), nem era de todo triste, como garoto-problema. Talvez mais um garoto-propaganda de sua solidão e espera.
Teria uns 17 anos e parecia comum a todos os outros da sua classe média média brasileira: no tênis de certa marca, na meia soquete, na bermuda e camiseta, na mochila em que trazia não sei o quê como se viesse do colégio.
O corpo forte como todos de sua idade de amantes dos esportes e do sol: as pernas e os braços sólidos contrastavam com o ar sonhador e poético, mas respiravam saúde e beleza. Também os cabelos cortados muito rentes e muito baixos, o deixavam quase careca.
O que salientava nele, porém, era a imobilidade e concentração.
E também notei-lhe nos olhos muito negros, sim, porque quando algum vôo despontava no longínquo horizonte os olhos negros ficavam mais profundos e hipnotizados, extáticos, escuros, bem negros, que como que cuspiam certas faíscas luminosas de um brilho mais psicológico, mais subjetivo do que real, que eu não sabia nem sei interpretar bem, como estivessem impregnados do vôo a vir a chegar a pousar a trazer alguém que ele esperasse chegar. E naqueles momentos eu poderia ficar quase na sua frente, observando-o, examinando-o como a uma estátua, que ele não se importaria, não se molestaria, nem ficaria vexado ou irritado comigo simplesmente porque não me veria ali. Era todo concentração do olhar.
Dias, semanas e meses se passaram naquela mesma maneira, e estaria talvez por anos se eu não tivesse sido transferido para a agência do Rio de Janeiro para onde me mudei e de todo o esqueci por completo.
Alguns anos depois, devido a um problema técnico mal resolvido na nossa companhia, tive de voar rapidamente para a Pampulha onde trabalhei toda a manhã para reparar o erro e me liberei no fim da tarde.
Então, enquanto eu esperava o vôo 1733 das 19:36 de Pampulha para o Galeão, tive tempo de ir ao café onde encontrei um velho amigo com quem conversei ali, em pé, e que depois de caminhar comigo por toda o comprimento do saguão, que não é muito grande, me convidou ele para subir aquela escada que vai até o primeiro andar onde existe a área descoberta e de onde se podem ver os aviões chegando e partindo.
A primeira coisa que vi foi o mesmo rapaz no mesmo lugar sentado do mesmo modo olhando o mesmo ponto obscuro e incógnito no mesmo horizonte.
Aproximei-me dele para olhá-lo de perto: ele parecia um pouco mais velho e a única diferença que reparei era que seus olhos agora eram azuis.
ROGEL SAMUEL
No tempo em que eu trabalhava no Aeroporto de Pampulha, em Belo Horizonte, chamou-me atenção um garoto que todos os dias encontrava sentado no terraço do primeiro andar olhando fixo o horizonte à espera dos aeroplanos que chegavam e que vinham daquela direção do nascente.
E me recordo da primeira vez que o vi pois tive de afastá-lo da entrada e passagem da porta de nosso escritório, onde se colocara ele, sentado a olhar.
Depois disso notei que diariamente no fim da tarde estava ele sempre ali, olhos perdidos no fim do horizonte, a boca semi-aberta, o ar enigmático.
Não era louco o rapaz (penso), nem era de todo triste, como garoto-problema. Talvez mais um garoto-propaganda de sua solidão e espera.
Teria uns 17 anos e parecia comum a todos os outros da sua classe média média brasileira: no tênis de certa marca, na meia soquete, na bermuda e camiseta, na mochila em que trazia não sei o quê como se viesse do colégio.
O corpo forte como todos de sua idade de amantes dos esportes e do sol: as pernas e os braços sólidos contrastavam com o ar sonhador e poético, mas respiravam saúde e beleza. Também os cabelos cortados muito rentes e muito baixos, o deixavam quase careca.
O que salientava nele, porém, era a imobilidade e concentração.
E também notei-lhe nos olhos muito negros, sim, porque quando algum vôo despontava no longínquo horizonte os olhos negros ficavam mais profundos e hipnotizados, extáticos, escuros, bem negros, que como que cuspiam certas faíscas luminosas de um brilho mais psicológico, mais subjetivo do que real, que eu não sabia nem sei interpretar bem, como estivessem impregnados do vôo a vir a chegar a pousar a trazer alguém que ele esperasse chegar. E naqueles momentos eu poderia ficar quase na sua frente, observando-o, examinando-o como a uma estátua, que ele não se importaria, não se molestaria, nem ficaria vexado ou irritado comigo simplesmente porque não me veria ali. Era todo concentração do olhar.
Dias, semanas e meses se passaram naquela mesma maneira, e estaria talvez por anos se eu não tivesse sido transferido para a agência do Rio de Janeiro para onde me mudei e de todo o esqueci por completo.
Alguns anos depois, devido a um problema técnico mal resolvido na nossa companhia, tive de voar rapidamente para a Pampulha onde trabalhei toda a manhã para reparar o erro e me liberei no fim da tarde.
Então, enquanto eu esperava o vôo 1733 das 19:36 de Pampulha para o Galeão, tive tempo de ir ao café onde encontrei um velho amigo com quem conversei ali, em pé, e que depois de caminhar comigo por toda o comprimento do saguão, que não é muito grande, me convidou ele para subir aquela escada que vai até o primeiro andar onde existe a área descoberta e de onde se podem ver os aviões chegando e partindo.
* * *
Subimos. A primeira coisa que vi foi o mesmo rapaz no mesmo lugar sentado do mesmo modo olhando o mesmo ponto obscuro e incógnito no mesmo horizonte.
Aproximei-me dele para olhá-lo de perto: ele parecia um pouco mais velho e a única diferença que reparei era que seus olhos agora eram azuis.
domingo, 24 de março de 2013
OBAMA EM TEL AVIV
March 20, 2013. US President Barack Obama speaks during
the welcoming ceremony at Ben Gurion airport, Tel Aviv, Israel. US presidential
aircraft Air Force One has touched down at Tel Aviv's Ben Gurion Airport,
marking the start of President Barack Obama's first visit to Israel and the
Palestinian Territories since taking office in 2009.
A FREE SYRIAN ARMY
March 15, 2013. A Free Syrian Army fighter throws a
homemade smoke device to blind Syrian Army soldiers during fighting in Saif Al
Dawla district, Aleppo, Syria. Syrians marked the second anniversary of the
uprising against Assad's regime amidst ongoing violence and mounting calls in
Europe to review a weapons embargo that prevents the arming of opposition
rebels. The opposition said it planned to mark the anniversary of the uprising
with rallies in all areas under its control.
O PIANO, A TARDE
ROGEL SAMUEL
Minha tia Maria José dispunha os frascos de perfume sobre um aparador de cor escura e tampo de mármore rosa. Os nomes insinuantes, sensuais, Tabu, Coty, Maja, poemas de amor. Ela nos recebia à tarde para servir café com brevidades. No fim de seus dias estava sempre sentada na poltrona. Não se levantava, dormia ali mesmo, o rádio ainda ligado no programa nenhum, só ruído neutro de seus sonhos de mulher solteira. Lembro-me do seu programa preferido: ' um piano ao cair da tarde' . O som não chegava em acordes completos porque o rádio era apenas um radinho RCA Victor de poucos recursos, mas ela sonhava com seus invisíveis amantes. Ao cair da tarde seu leque se misturava com o leque das cores do sol que recebia o piano, cujas valsas se alçavam no ar fino, cobriam casas e vilas. E se subíssemos pelas janelas da rua Barroso poderíamos ver os gradis da Igreja de Sta Rita e o vão escuro do que tinha sido o igarapé que anos atrás passava por ali, com suas ar aras e serpentes venenosas. Olhando-se um pouco mais acima estavam os pássaros tardios que partiam para o anoitecer de tudo, para noite do mundo, para o outro mundo, do outro lado do universo, no oceanos dos rios de nossos medos, signos e ansiedades. Os pássaros eram de um rendilhado fino e tinham nos seus bicos gotas de rubis reluzentes, mergulhavam no ouro do por do sol finalmente afastado. E um piano, ao cair da tarde. ------------------------------
neste carnaval a batucada alada
do teu coração vem em segredo
pulsando implode com soluço e gozo
da tua dentina o brilho serpentina
se envolve na tua boca pequenina
onde o desejo acende teus incensos
sândalo salgado perfumada rima
no carnaval de tão perdida rosa
que desce tua cintura e goza
João Cabral de Melo Neto e o Futebol
João Cabral de Melo Neto e o Futebol
A coluna ‘Deixa Falar: o Megafone do Esporte’ apresenta nesta semana um artigo do cineasta Ney Costa Santos, flamenguista e apoiador da campanha ‘Fora Marin’. Ney discute a obra de um de nossos poetas maiores, João Cabral de Melo Neto, sobre futebol.
Ney Costa Santos
Sua poesia era a das coisas em si. O que o interessava era aquilo de dentro, o interno, o miolo das coisas e, assim falando, falava do mundo, daquilo que nele observava e vivia.
Embora dissesse que o seu interesse por futebol tenha durado dos oito anos até a adolescência, os poemas sobre esse assunto em sua obra revelam o olhar agudo de quem vê o jogo por dentro e não se fixa tão somente às suas exterioridades: o espetáculo, o rumor das torcidas, a plasticidade das jogadas, a fantasia criativa de um gol raro ou decisivo.
No livro Museu de Tudo, publicado em 1975, há quatro poemas sobre o futebol: O torcedor do América F.C.; Ademir da Guia; Ademir Menezes; O Futebol Brasileiro evocado da Europa.
No poema sobre o torcedor do América de Recife, tradicional clube pernambucano ainda em atividade, Cabral desvenda o gosto raro daquele torcedor que não convive com as vitórias, que torce pelo time pequeno nos estádios vazios.
O TORCEDOR DO AMÉRICA F.C
O desábito de vencer
não cria o calo da vitória
não dá à vitória o fio cego
nem lhe cansa as molas nervosas.
Guarda-a sem mofo: coisa fresca,
pele sensível, núbil, nova,
ácida à língua qual cajá,
salto do sol no cais da Aurora.
Os cariocas ao lerem esse poema pensarão logo no América do Rio, matriz dos Américas do Brasil, quase todos padecendo desse “desábito de vencer”. Pessoalmente, penso na saga do América, o “Mequinha”, tão caro às tradições do futebol carioca, time de meus tios-avós tijucanos, um time grande na minha infância, que vi no Maracanã, na arquibancada atrás do gol, aos dez anos, ser campeão carioca de 1960. Cabral fala do América do Recife e de todos os Américas, de todos aqueles que torcem pelos times pequenos e carregam essa paixão machucada pelas várzeas e estadinhos Brasil a fora, sofrendo e ansiando por uma vitória que raramente vem, mas quando chega é saboreada como “coisa fresca, pele sensível, núbil, nova, ácida à língua qual cajá”, tal um sol brilhante e repentino.
Seria essa fruição rara o segredo da persistência da paixão do torcedor pelos clubes sem glórias?
Os dois poemas seguintes são sobre ritmo: Ademir da Guia e À Ademir Menezes.
ADEMIR DA GUIA
Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.
Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.
Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.
Ademir da Guia era freqüentemente acusado de lento e de atrasar o jogo. Pura inverdade. Filho do lendário zagueiro Domingos da Guia. Ademir começou no Bangu em 1960, foi para o Palmeiras em 1962 e lá jogou até 1977, participando de times como a célebre Academia.Seu ritmo era diferente,pensado e calibrado,sempre atento às variações e alternâncias do jogo ao qual Ademir ia impondo o seu ritmo.Organizava o meio de campo e a saída de bola. Quando seu time era atacado, ele sabia desarmar o adversário e passar rapidamente da defesa ao ataque. Sempre o pensamento em movimento, a cadencia exata e necessária a cada circunstancia do jogo. Ademir fazia o passe médio e longo, era capaz de correr com a bola dominada, ir à linha de fundo e cruzar com precisão, tinha presença na área para uma cabeçada ou o arremate final. Seu repertório rítmico era variado e por isso se impunha à correria adversária.A alegada lentidão não era a pouca velocidade, mas a capacidade de pensar e alternar a cadencia de jogo, era o ardil e não o espalhafato, futebol inteligente e não ornamental.Ademir da Guia foi um artista sereno e refinado. Quem não o viu jogar ou está cansado de ouvir essa conversa fiada de lentidão, deve ver o documentário “Um Craque chamado Divino”.
A ADEMIR MENEZES
Você, como outros recifenses,
nascido onde mangues e o frevo,
soube mais que nenhum passar
de um para o outro, sem tropeço.
Recifense e, assim dividido
entre dois climas diferentes,
ambidextro do seco e do úmido
como em geral os recifenses,
como você, ninguém passou
de dentro de um para o outro ritmo
nem soube emergir, punhal, do lento.
secar-se dele, vivo, arisco.
Ademir Marques de Menezes, craque famoso dos anos 40 e 50, foi artilheiro da Copa de 1950 com nove gols. Jogou a maior parte de sua carreira no Vasco da Gama, no famoso time do Expresso da Vitória.Em 1946 e 1947 jogou no Fluminense, sagrando-se campeão carioca na sua primeira temporada.
Não vi Ademir jogar e as poucas imagens que restam dele são aquelas da Copa de 50. Lembro-me bem de quando era garoto e ouvia as conversas dos mais velhos, que tomavam cervejas nos quintais enquanto as crianças zuniam pela casa nos aniversários. Eles descreviam os rushes de Ademir, arrancadas fulminantes em dribles rápidos, sua capacidade de sair da imobilidade e disparar em direção ao gol adversário. Contavam que era um artilheiro agudo e preciso.
João Cabral, em Ademir Meneses, fala dessa dualidade rítmica, própria dos recifenses. O ritmo do mangue, que ata, e o do frevo, que dispara; a capacidade de passar de um a outro, sem tropeço, tal um punhal “vivo e arisco”.
Nesses dois poemas Cabral fala da beleza que a mescla de habilidade técnica e capacidade de variação rítmica desses jogadores-artistas proporcionava ao espectador. É um olhar para o “dentro” do futebol e não apenas para os seus aspectos externos.
O FUTEBOL BRASILEIRO EVOCADO DA EUROPA
A bola não é a inimiga
como o touro, numa corrida;
e embora seja um utensílio
caseiro e que se usa sem risco,
não é o utensílio impessoal,
sempre manso, de gesto usual:
é um utensílio semivivo
de reações próprias como bicho,
e que, como bicho, é mister
(mais que bicho, como mulher)
usar com malícia e atenção
dando aos pés astúcias de mão.
Há uma expressão entre os boleiros que bem define o perna-de-pau: “Esse não tem intimidade com a bola...” A proximidade carinhosa com ela, a atenção aos seus caprichos, como os de uma mulher, está no DNA do futebol brasileiro. Ao contrário de Lima Barreto e Graciliano Ramos que viram o futebol como um estrangeirismo passageiro, João Cabral percebe o modo original do estilo brasileiro e define poeticamente essa maneira de jogar “com malícia e atenção/dando aos pés astúcias de mão”. Entre essas astúcias estão o passe longo e preciso ao vislumbrar o deslocamento do companheiro, a capacidade de antever a jogada, a fantasia do drible e da resolução rápida, as trajetórias surpreendentes da bola nas cobranças de faltas.
Em um poema do livro Agrestes (1985), João Cabral fala de outra característica do futebol brasileiro clássico. Digo clássico, pois em tempos de ênfase em times de guerreiros, primeiro combate, volantes de contenção e outras expressões de infantaria,a arte do passe parece em decadência.Telê Santana dizia que “o passe é um gesto de amizade”.É por aí.
DE UM JOGADOR BRASILEIRO A UM TÉCNICO ESPANHOL
Não é a bola alguma carta
Que se levar de casa em casa:
é antes telegrama que vai
de onde o atiram ao onde cai.
Parado, o brasileiro a faz
ir onde há-de, sem leva e traz;
com aritméticas de circo
ele a faz ir onde é preciso;
em telegrama, que é sem tempo
ele a faz ir ao mais extremo
Não corre: ele sabe que é a bola,
telegrama, mais que voa.
É uma descrição precisa do que é ou foi a arte do passe no futebol brasileiro. Penso logo em Gerson,Didi,Zico, Ademir da Guia.Talvez hoje no futebol brasileiro apenas Deco e Ronaldinho Gaúcho, quando quer, sejam os herdeiros e praticantes dessa arte requintada.Passe, sim, e não assistência, como quer o jargão do atual jornalismo esportivo que importou o termo do basquete.Assistência lembra sirene, socorro, ambulância...
Na arte do passe brasileiro, o craque faz a bola chegar ao seu destino com cálculo de engenheiro e “aritméticas de circo”. Ciência e fantasia.
Os dois poemas seguintes, publicados em Crime na Calle Relator (1987), tratam da liberdade absoluta em um futebol utópico, livre dos esquemas táticos, um futebol que não mais seria jogo e sim brincadeira absoluta.
BRASIL 4 X ARGENTINA 0
Quebraram a chave da gaiola
e os quadros-negros da escola.
Rebentaram enfim as grades
que os prendiam todas as tardes
Nos fugitivos, é a surpresa,
vendo que tomaram-se as rédeas
(dos técnicos mudos, mas surpresos
brancos, no banco, com medo).
Estão presos os da outra gaiola
que não souberam abrir a porta:
ou não o puderam, contra o jogo
dos que estavam de fora, soltos.
De certo também são capazes
de idênticas libertinagens
uma vez soltos, porém como
se liberar daquele tronco
em que os aprisionaram os táticos
argentinos, também gramáticos.
E enquanto os fugitivos seguem
com a soltura, a sem lei que os regem,
nos bancos é uma a indignação:
dos que vão vencendo e dos que não:
“Voltamos ao futebol de ontem?
Voltou a ser um jogo dos onze
Voltou a ser jogar de pião?
Chegou até cá a subversão?
Como é possível haver xadrez
Sem gramática, bispos, reis?”
Nesse Brasil e Argentina as gaiolas das táticas e estratégias foram abertas e jogou-se sem gramática, bispos e reis, um anti-xadrez, um jogo de invenção e criatividade permanente, tão destituído de qualquer calculo ou planejamento, que nem a múmia que vivia na Capelinha da Jaqueira precisou ser convocada.
A MÚMIA
Na Capelinha da Jaqueira
uma múmia sobrevivera.
A de Bento José da Costa
ou de alguma amante preposta?
Ela não fazia fantasma:
era mais bem alma gorada,
ovo encruado, infermentação,
que nunca pode assombração.
*
Caminho do Campo do América
se ensaiavam dribles em sua pedra.
Se imitavam chutes sem bola
na pedra anônima em que mora.
E fosse de dia ou de noite
nunca foi de acenar a foice,
nem com gesto armado de morte
acenar-se sequer, de chofre.
*
Na Capelinha da Jaqueira,
a múmia, amiga e companheira,
punha-se acima de quem joga:
nunca envergou a negra toga,
ridícula, de juiz de futebol,
de calças curtas como um sol
castrado, já antes do apito
epilético; é Meritíssimo.
*
Talvez porque a múmia era cega?
Nunca ela torceu pelo América.
Também nunca acendemos vela
para que ela, com suas trelas,
driblasse a defesa contrária,
o juiz, e até as arquibancadas,
e entrasse só no gol do Esporte,
num “gol de chapéu”, com a Morte.
Talvez só Garrincha, algum dia, tenha jogado esse futebol da ludicidade absoluta, o prazer de jogar uma doce pelada cósmica.
*Ney Costa Santos é Flamengo, Mestre em Comunicação Social e Professor da PUC-Rio. Cineasta, dirigiu os filmes Heleno e Garrincha,Meu Glorioso São Cristovão, O Pulo do Gato,Cinema Interior,Cole in Rio e Padre-Mestre. Nesta semana, é um convidado especial do Megafone que certamente passará a ser membro efetivo. Apóia enfaticamente “Fora Marin”.
Três toques do Megafone
1) Como disse o autor sobre Ademir da Guia, “quem não o viu jogar ou está cansado de ouvir essa conversa fiada de lentidão, deve ver o documentário Um Craque chamado Divino.” No link o trailer do filme. Um colírio para os admiradores do futebol arte:http://www.youtube.com/watch?v=SplZHzOUEDY
2) João Cabral de Melo Neto teve seu poema Morte e Vida Severina, musicado por Chico Buarque de Hollanda, a pedido de Roberto Freire, diretor do teatro TUCA da PUC de São Paulo. A peça encenada em 1966 se tornou um sucesso, recebendo premiação no festival universitário de Nancy, na França. João Cabral foi o poeta brasileiro que mais se dedicou ao futebol.
No link você pode ver a força e a beleza do poema( parte 8) de João Cabral musicado por Chico:http://www.youtube.com/watch?v=uL9cDmQxMwo
3) Ney Costa Santos voltará em breve ao Megafone com o artigo Heleno e Garrincha, tema de um de seus filmes.
Deixa Falar: o Megafone do Esporte: criação e edição de Raul Milliet Filho.
sábado, 23 de março de 2013
COMETA ACABOU COM DINOSSAUROS
Comunidade científica debate evidências sobre tipo de corpo celeste que atingiu a Terra
A rocha espacial que atingiu a Terra há 65 milhões de anos e é tida como causadora da extinção dos dinossauros foi provavelmente um cometa, concluiu um estudo divulgado por cientistas americanos.
Segundo a pesquisa, a cratera Chicxulub, no México- que tem 180 km de diâmetro - foi criada por um objeto menor do que o que se imaginava anteriormente.
Muitos cientistas consideram que um asteroide grande e relativamente lento teria sido o responsável.
Os detalhes do estudo, feito por uma equipe do Darthmouth College, universidade no Estado americano de New Hampshire (nordeste do país), foram divulgados na 44ª Conferência de Ciência Lunar e Planetária, realizada no Estado do Texas, no sul dos Estados Unidos."O objetivo maior do nosso projeto é caracterizar melhor o que causou o impacto que produziu a cratera na península de Yucatán (no México)", disse Jason Moore, do Dartmouth College, à BBC News.
No entanto, outros pesquisadores ainda são cautelosos a respeito dos resultados da pesquisa.
Química extraterrestre
A colisão da rocha espacial com a Terra criou em todo o planeta uma camada de sedimentos com o elemento químico irídio em concentrações muito mais altas do que o que ocorre naturalmente.
No entanto, a equipe de pesquisadores sugere que os índices de irídio citados atualmente estão incorretos. Usando uma comparação com outro elemento extraterrestre depositado no impacto - o ósmio - eles conseguiram deduzir que a colisão depositou menos resíduos do que o que se acreditava.
Os valores recalculados de irídio sugerem que um corpo celeste menor atingiu a Terra. Na segunda parte do trabalho, os pesquisadores tentaram relacionar o novo valor com as propriedades físicas conhecidas da cratera de Chicxulub.
Para que essa rocha espacial menor tenha produzido uma cratera de 180 km de largura, ela deve ter viajado relativamente rápido.
A equipe calculou que um cometa de longo período se ajustava à descrição muito melhor do que outros possíveis candidatos.
"Seria preciso um asteroide de cerca de 5 km de diâmetro para trazer tanto irídio e ósmio. Mas um asteroide desse tamanho não produziria uma cratera de 200 km de diâmetro", disse Moore.
"Como conseguimos algo que tenha energia suficiente para gerar uma cratera daquele tamanho, mas tenha muito menos material rochoso? Isso nos leva aos cometas."
Cometas de longo período são corpos celestes de poeira, rocha e gelo que têm órbitas excêntricas ao redor do Sol. Eles podem levar centenas, milhares e em alguns casos até milhões de anos para completar uma órbita.
O evento que causou a extinção há 65 milhões de anos é associado, hoje em dia, à cratera no México. O acontecimento teria matado cerca de 70% das espécies na Terra em um curto período de tempo, especialmente os dinossauros.
A enorme colisão teria gerado incêndios, terremotos e imensos tsunamis. O gás e a poeira lançados na atmosfera teriam contribuído para a queda das temperaturas globais por muitos anos.
Perda de massa
Gareth Collins, que pesquisa impactos que produzem crateras na universidade Imperial College London, na região de Londres, disse que a pesquisa da equipe do Dartmouth College é "provocadora".
No entanto, ele disse à BBC que não acha "possível determinar precisamente o tamanho do corpo que causou o impacto apenas com a geoquímica".
"A geoquímica diz - com bastante precisão - somente a massa do material meteorítico que está distribuída globalmente, não a massa total do causador do impacto. Para estimar isso, é preciso saber que fração do corpo celeste estava distribuída na hora do impacto, não foi ejetada para o espaço, nem caiu perto da cratera."
"Os autores (da pesquisa) sugerem que 75% da massa do causador do impacto estava distribuída globalmente, então chegaram a um corpo relativamente pequeno, mas na verdade essa fração pode ser menor do que 20%."
A teoria deixaria a porta a aberta para a hipótese de que um asteroide maior e mais lento, que perdeu teria perdido massa antes do impacto com o solo, tenha sido o causador da extinção.
Os pesquisadores americanos aceitam a hipótese, mas citam estudos recentes que sugerem que a perda de massa do corpo celeste no impacto de Chicxulub esteve entre 11% e 25%.
Nos últimos anos, diversos corpos celestes surpreenderam os astrônomos, servindo como lembrança de que nossa vizinhança cósmica continua atribulada.
No dia 15 de fevereiro de 2012, o DA14, um asteroide com volume equivalente ao de uma piscina olímpica, passou de raspão pela Terra a uma distância de somente 27,7 mil km. Ele só havia sido descoberto no ano anterior.
No mesmo dia, uma rocha espacial de 17 metros explodiu nas montanhas Urais, da Rússia, com uma energia equivalente a cerca de 440 quilotoneladas de TNT. Cerca de mil pessoas ficaram feridas quando o choque do impacto explodiu janelas e sacudiu edifícios.
Cerca de 95% dos objetos próximos da Terra com mais de 1 km de diâmetro já foram descobertos. No entanto, somente 10% dos 13 a 20 mil asteroides acima de 140 metros de diametro estão sendo monitorados.
sexta-feira, 22 de março de 2013
A praia de Dover
A praia de Dover
Rogel Samuel
Matthew Arnold escreve um dos mais belos textos poéticos de todos os tempos e cantos em todas as línguas. O original diz:
Dover Beach
by Matthew Arnold
The sea is calm to-night.
The tide is full, the moon lies fair
Upon the straits; -on the French coast the light
Gleams and is gone; the cliffs of England stand,
Glimmering and vast, out in the tranquil bay.
Come to the window, sweet is the night air!
Only, from the long line of spray
Where the sea meets the moon-blanch'd land,
Listen! you hear the grating roar
Of pebbles which the waves draw back, and fling,
At their return, up the high strand,
Begin, and cease, and then again begin,
With tremulous cadence slow, and bring
The eternal note of sadness in.
Sophocles long ago
Heard it on the Aegean, and it brought
Into his mind the turbid ebb and flow
Of human misery; we
Find also in the sound a thought,
Hearing it by this distant northern sea.
The Sea of Faith
Was once, too, at the full, and round earth's shore
Lay like the folds of a bright girdle furl'd.
But now I only hear
Its melancholy, long, withdrawing roar,
Retreating, to the breath
Of the night-wind, down the vast edges drear
And naked shingles of the world.
Ah, love, let us be true
To one another! for the world, which seems
To lie before us like a land of dreams,
So various, so beautiful, so new,
Hath really neither joy, nor love, nor light,
Nor certitude, nor peace, nor help for pain;
And we are here as on a darkling plain
Swept with confused alarms of struggle and flight,
Where ignorant armies clash by night.
[1867]
Eu conheço a tradução da segunda estrofe copiada de um livro velho.
O Mar da Fé
Também existiu, no passado, cheio, e em volta da praia do mundo
Estendia-se como as dobras de uma faixa desdobrada.
Agora, porém, somente lhe escuto
O bramido melancólico, longo, fugidio,
Que se aparta para as lufadas
Do vento noturno, escorrendo por vastas e horrendas costas
E pelos areais desnudos do mundo.”
....................................................
Ah!, amor, sejamos fiéis
Um ao outro.
Pois o mundo, que parece
Estender-se à nossa frente como uma terra de sonhos,
Tão diversas, tão formosas, tão novas,
Na verdade não tem nem alegria, nem amor, nem luz,
Nem certeza, nem paz, nem lenitivo para a dor;
E estamos aqui como numa planície penumbrosa,
Varrida de confusos alarmas de combate e de fuga,
Na qual exércitos ignorantes à noite travam batalha.”
Não me lembro quem traduziu. Mas valeu. A tradução é livre. Acrescenta elementos que não estão no texto. Mas é rica e bela. E sobre ela iremos nos deleitar novamente.
quinta-feira, 21 de março de 2013
PRELÚDIO DE L. RUAS
PRELÚDIO
L. RUAS
quatro cavalos passaram galopando
em asas de águias sustentados
relinchando como se fosse trombetas sua voz
ou ribombar de trovões enlouquecidos.
olhei. estava só na praia. o mar quieto.
uma brisa dançava sobre as ondas
o prelúdio que chopin tocava soluçando.
depois vieram ninfas volitando
ao som de músicas ligeiras.
sumiram-se depois nas gotas do orvalho.
oh. a crosta espessa das palavras
que mal revelam o fulcro luminoso
da consistência do mistério vislumbrado.
quem está cantando perguntei são as rosas?
rosas?
quem está cantando é o coro dos palhaços.
A chegada, por Robert Frost
A chegada, por Robert Frost
MIGUEL DO ROSARIO
Há dias venho pensando nesse poema de Frost, lido numa coletânea que comprei na Strand, em Nova York, por cinco dólares. The Onset, A Chegada. A poesia de Frost sempre tem uma lição moral, um sentido, e isso de forma nenhuma a diminui; ao contrário, o significado se harmoniza à beleza plástica e musical de suas palavras. W. H. Auden, que analisou a obra de Frost, faz uma distinção entre dois tipos fundamentais na poesia moderna, ambos possivelmente com raízes antiquíssimas: um, voltado exclusivamente para o entretenimento e a qualidade musical, deriva dos ditirambos e da própria música; o outro, com suas qualidades morais, tem origem na poesia épica. Há grandes nomes para ambos os tipos. Frost pertence à segunda categoria.
Neste poema, ele aborda a chegada do inverno, comparando-a aos períodos severos e tristes de uma vida, quando esta parece destinada ao vazio, ao esquecimento e à solidão. Toda esperança parece ter desaparecido, sob o peso da neve acumulada e do frio terrível dos dias cinzentos. Entretanto, o poeta se apega a um pensamento, que ameniza sua angústia. Ele lembra que o inverno jamais triunfou sobre a terra e que, todos os anos, a neve é vencida pela mudança dos tempos. Toda a sua alva e perigosa grandeza se reduz a fiapos d’água fugindo pelo sulco de riachos secos, qual uma cobra tentando escapar do perigo.
Se a primeira estrofe termina com uma nota de profunda desilusão, a segunda inicia com esperança crescente: “Mesmo assim, todo o precedente está a meu lado”. E o que vence a tristeza, em primeiro lugar, é a experiência, a memória do poeta de que a estação rigorosa nunca dura pra sempre.
Eu interpreto o poema da seguinte forma. Não temos controle sobre o destino. Quando chegam os momentos difíceis, o frio inverno, nada há a fazer senão resistir, sobreviver. Podem sobrevir longos anos de tédio, sofrimento, vazio. O pior de tudo, como diz o poema, é a sensação de que a vida não tem sentido, e que não conseguiremos jamais realizar nada que possa melhorar um pouco o mundo à nossa volta. É como se, simplesmente, não tivéssemos existido.
No entanto, assim como existe a certeza do inverno, também é certo que este não dura para sempre. Em algum momento, a neve inimiga, tudo aquilo que nos atrasa a vida e a torna insossa e melancólica, fugirá de nós qual um bicho assustado. O inverno, com todo seu poder de morte, jamais obteve uma vitória definitiva sobre a terra, jamais ouviu o canto dos pássaros que retornam na primavera.
Ao fim, o que restará da neve serão apenas seus remanescentes na copa de algumas árvores, nos telhados das casas e na cúpula de uma igreja, que figuram como lembranças esparsas de nosso sofrimento vencido.
Eu traduzi o poema em versos brancos. Sempre me soa ridículo traduções forçosamente rimadas. É muito raro ser bem sucedido na tradução de um poema, e a coisa piora se tentamos rimar. Traduzir poema é uma luta ingrata, mas que vale a pena, sobretudo quando se trata daquele que é considerado um dos maiores poetas americanos do século XX. Em homenagem ao dia da poesia, segue minha contribuição.
A chegada
Por Robert Frost
Sempre o mesmo, quando numa noite maldita
por fim a neve se põe a cair tão branca
como fosse em bosque sombrio, e com um ruído
que não fará novamente em todo inverno,
chiando no solo ainda não coberto,
eu quase desfaleço olhando pra todo lado,
como alguém exausto, que ao final
desiste de sua jornada, e deixa a morte vir
sobre onde ele está, sem nada ter feito
contra o mal, nenhum triunfo conquistado,
como se a vida nem tivesse começado.
Ainda sim, o precedente está a meu lado:
eu sei que o mortal inverno jamais conquistou
a terra sem derrota: a neve pode se acumular,
em longas tempestades, em camadas profundas
medidas no tronco de um carvalho,
mas ela jamais ouviu o trinado dos pássaros;
e eu verei a neve descer pela colina
derretida num riacho de abril
escorrendo sobre o sulco do ano anterior,
sobre ervas mortas, como uma cobra em fuga.
Não restará nenhum branco salvo aqui uma árvore,
e acolá um grupo de casas e uma igreja.
(Tradução de Miguel do Rosário).
The Onset
BY Robert Frost
Always the same, when on a fated night
At last the gathered snow lets down as white
As may be in dark woods, and with a song
It shall not make again all winter long
Of hissing on the yet uncovered ground,
I almost stumble looking up and round,
As one who overtaken by the end
Gives up his errand, and lets death descend
Upon him where he is, with nothing done
To evil, no important triumph won,
More than if life had never been begun.
Yet all the precedent is on my side:
I know that winter death has never tried
The earth but it has failed: the snow may heap
In long storms an undrifted four feet deep
As measured again maple, birch, and oak,
It cannot check the peeper’s silver croak;
And I shall see the snow all go down hill
In water of a slender April rill
That flashes tail through last year’s withered brake
And dead weeds, like a disappearing snake.
Nothing will be left white but here a birch,
And there a clump of houses with a church.
AS AMAZONAS DE BILAC
AS AMAZONAS DE BILAC
Rogel Samuel
Amaldiçoa o poeta estas atuais "eras sombrias de miséria moral" E diz que a Pátria deve esperar "a aurora". Será a Revolução? Pois "ela virá, com outras eras, outro sol, outra crença em outros dias!"
Grita o poeta que "Davi renascerá contra Golias, Alcides contra os pântanos e as feras" e a revolta dos corações "como crateras, e hão de em lavas mudar-se as cinzas frias".
Faz o poeta aquela reconstrução da subjetividade das "nobres ambições, força e bondade, justiça e paz" que "virão sobre estas zonas, da confusa fusão da ardente escória."
E de quem será a glória? De quem o exército da suprema vitória?
Delas, das Amazonas Virgens, na esplêndida cavalgada de glória daquelas mulheres da mitológica divindade.
AS AMAZONAS
Nem sempre durareis, eras sombrias
De miséria moral! A aurora esperas,
Ó Pátria! e ela virá, com outras eras,
Outro sol, outra crença em outros dias!
Davi renascerá contra Golias,
Alcides contra os pântanos e as feras:
Os corações serão como crateras,
E hão de em lavas mudar-se as cinzas frias.
As nobres ambições, força e bondade,
Justiça e paz virão sobre estas zonas,
Da confusa fusão da ardente escória.
E, na sua divina majestade,
Virgens, reviverão as Amazonas
Na cavalgada esplêndida da glória!
quarta-feira, 20 de março de 2013
Ana Paula Padrão se despede da Record
Ana Paula Padrão se despede da Record
A Record e a jornalista Ana Paula Padrão decidiram, de comum acordo, não renovar contrato.
Extra-oficialmente, sabe-se que a emissora não quis reajustar o contrato com cifras maiores. Ao contrário: teria proposto que os vencimentos fossem mais modestos.
O salário de Ana Paula, o que nem contratante nem contratada admitem, giraria em torno de R$ 700 mil mensais.
A Record de fato já não tem bancado cifras tão altas. Os tempos são outros.
Adriana Araújo reassume a bancada que já foi sua, antes de Ana Paula chegar à Record, ao lado de Celso Freitas.
O BUDA É MENTE
O Buda é mente
Rogel Samuel
Dogen (1200 - 1253) escreveu um pequeno e enigmático poema que diz:
"A mente é em si mesma Buda" - difícil de praticar, mas fácil de explicar.
"Quando não há mente não há Buda (No mind, no Buda)" - difícil de explicar, mas fácil
de praticar.
(The Zen Poetry of Dogen: Verses from the Mountain of Eternal Peace, by Steven Heine).
Dogen é um dos poetas máximos do Zen.
Na realidade ele deve ter sido um mestre realizado.
Ora, o que ele quis dizer com "A mente é em si mesma Buda"?
Se o Buda é mente significa que a visão de samsara e nirvana se intercomunicam, ou
são a mesma coisa.
Samsara não é o inferno, o sofrimento mundano. Nem nirvana é o céu, o paraiso celestial.
Tudo depente de uma interpretação mental, ou melhor, do tipo de visão que assumimos.
O nosso mundo pode ser visto em sua verdadeira natureza, e aí está o nirvana.
Ou pode ser visto através das distorções de nossos fatores mentais do ódio, do desejo
e da obscuridade. E aí temos o samsara.
O mundo não é nem paraiso nem inferno.
Ele é o que nós mesmos fazemos dele.
Nós o construímos. Podemos construir o paraíso e o inferno.
,
segunda-feira, 18 de março de 2013
Júlio César ainda vive
Júlio César ainda vive
O filme ‘César deve morrer’ (2012),
dirigido por Paolo Taviani e Vittorio Taviani, baseia-se na peça de
‘Júlio César’ (1623), de Shakespeare. Entretanto, não se passa no Senado
de Roma, mas sim em Rebibbia, uma prisão de segurança máxima na
periferia da capital italiana. Com isso, os diretores eternizam o debate
sobre a força da subordinação diante das tentativas de questionamento
das estruturas de poder. Por Flávio Ricardo Vassoler
Flávio Ricardo Vassoler
A obra se estrutura como uma mescla de documentário e ficção, uma vez que o mote para a encenação da peça vem da direção da penitenciária. Os diretores do filme, por sua vez, apresentam as cenas como recortes das reverberações que Shakespeare vai legando nas formas pelas quais os mais novos atores passam a perceber o mundo (vigiado) a seu redor.
Se os espectadores começamos a assistir ao filme a partir do fim da peça, em que o assassino Bruto pretende se suicidar diante da derrota iminente por conta do avanço das tropas dos vingadores de César, Otávio e Marco Antônio, logo retrocedemos no tempo e nos deparamos com a seleção dos detentos que serão metamorfoseados em atores. Alguns cumprem penas por participação no crime organizado – a Camorra é mencionada; outros já não sabem mais o que é a vida sem lhe acrescentar a lápide “perpétua”. Assim, uma pergunta ressoa para aqueles que nos sentimos mais livres diante da onipresença do poder: qual seria a motivação dos detentos perpétuos para atuar na peça? Ou pior: qual seria a motivação deles para continuar a viver?
Enquanto esteve preso na Sibéria por ter participado do Círculo de Petrachévski, um grupo revolucionário que se contrapôs ao regime tsarista, o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) pôde presenciar – e vivenciar – um fenômeno no mínimo inusitado. Alguns detentos eram agrupados em um extremo do pátio da prisão. Ao comando do oficial encarregado, tinham que encher um carrinho de mão com areia e, quando ouvissem o apito, deviam levar a carga para o outro lado do pátio. Um novo apito ordenava o esvaziamento do carrinho que, logo em seguida, precisava ficar cheio de areia novamente para que seguisse o trajeto de volta ao ponto inicial, isto é, de volta ao extremo do pátio do qual o grupo havia partido. Tais idas e vindas eram repetidas à exaustão, de modo que o vaivém inútil da areia não possibilitasse aos detentos qualquer percepção de uma possível finalidade para a ampulheta humana em questão. Em meio à observação participante, Dostoiévski pôde perceber que os presos começavam a apresentar sinais de inquietação que beiravam ataques de pânico e surtos. Se o homem não perceber uma finalidade em sua existência desde as questões últimas até os alicerces de seu cotidiano, a vida tende a se reduzir ao trajeto tautológico do carrinho de areia. O homem prefere a insanidade de um trabalho coercitivo à continuidade de uma existência que não lhe dá sequer a chance de uma resposta para a pergunta: para que estou aqui? Não à toa, as impressões de Dostoiévski sobre o degredo siberiano formaram as ‘Recordações da Casa dos Mortos’ (1862).
Se compararmos a crueldade dos oficiais siberianos com a benevolência das autoridades italianas de Rebibbia, benevolência que permitiu aos detentos a encenação de Shakespeare, estaremos diante de um avanço decisivo dos direitos humanos. Mas que dizer de uma sentença como a prisão perpétua? Diante de um futuro que não mais fará amor com a esposa e nem beijará a filha senão com a mediação de grades, cercas de arame farpado e cães, como é que a vida não se confunde com o vaivém inútil de um carrinho de mão repleto de areia? Como é que o cotidiano de um detento perpétuo pode escapar da sensação de ser esmagado pela ampulheta humana? Quando o diretor da peça pede que os detentos sejam céleres para que “não percamos mais tempo”, um dos atores, quiçá inspirado pela sabedoria de Shakespeare, só faz sentenciar:
− Ora, “não percamos mais tempo”, meu caro? Faz 20 anos que eu respiro sob os punhos desses muros, e você quer que “não percamos mais tempo”?
Se a sociedade estivesse voltada não para a perpetuidade das punições, mas para a amplitude das oportunidades, os detentos – que, provavelmente, teriam menos chances de viver em celas – encenariam ‘Júlio César’ não em Rebibbia, mas no Coliseu romano. Será que, assim, o espectro autoritário de César seria expurgado da história humana? Eis a pergunta a reboque da utopia que os detentos passam a fazer:
− Quem mais terminará assassinado como César?
Ao que o detento que incorpora intensamente a personagem de Bruto replica:
− A justiça não é um matadouro. Nós somos os executores da justiça.
Não podemos deixar de notar a ambiguidade shakespeareana da máxima de Bruto: por um lado, a justiça não deve fazer coro à Lei de Talião – olho por olho, dente por dente. Os conspiradores não apenas mataram César; eles pensam ter assassinado o tirano, ou melhor, o ímpeto da tirania. Por isso, “somos os executores da justiça”: executamos os desígnios da justiça e também executamos a própria justiça, a exterminamos. Para o (suposto) bem republicano de Roma, matamos César, fizemos justiça com nossas próprias mãos.
Quando se tenta matar a planária cortando-a ao meio – a planária, um platelminto com o qual só temos contato nas longínquas aulas de Biologia do ensino médio –, cada metade se regenera e dá à luz uma nova planária. Matar César não extirpa da história a tirania, assim como a guilhotina não decapitou o ímpeto servil da massa junto com a cabeça de Luís XVI. Diante do cadáver de César, duas vozes contraditórias discursarão para a plebe romana. Primeiro Bruto, depois Marco Antônio.
Bruto, o conspirador, condena a ambição tirânica de César. A massa faz coro ao assassino do general e, se pudesse, faria César ressuscitar para matá-lo ainda uma vez.
Marco Antônio, aliado de César, lê para a massa o testamento que o generalíssimo romano legara para a plebe. Dinheiro para o povo! “César, volte à vida! Viva!”
Ao apostar na emancipação dos povos, a utopia pressupõe a consciência das massas, seu princípio de autodeterminação. Shakespeare ensina aos detentos e aos espectadores em liberdade (assistida) que a subordinação sobrevive às mais variadas tentativas de questionamento das estruturas de poder. Quiçá o homem de fato busque alguém diante de quem se inclinar – é por isso que Bruto grita a plenos pulmões que “César deve morrer!” Mas o ímpeto pelo poder, movimento que a história foi forjando e transformando em uma estrutura impessoal e legada de geração em geração, não será extirpado apenas com a morte de um dos seus representantes. Se o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) estiver certo ao dizer que não há vácuo no poder, o assassinato de Júlio César só faz prenunciar a coroação de Luís XIV, o Rei Sol. Assim, o ator que encena Cássio, um dos aliados de Bruto, só faz perguntar já extremamente tocado pela peça:
− Será que Shakespeare viveu na minha Nápoles? Tudo o que ele diz sobre Roma eu vi e vivi por lá. Apenas não posso dizer como César: “vim, vi e venci”. Mas será que César pode repetir sua frase vitoriosa? Quantas vezes sua morte será reencenada? Quantas vezes César deverá sangrar no palco?
A arte ludibria a realidade ao fazer perguntas que o poder simplesmente não pode suportar. O detento Cássio sentencia: “Desde que conheci a arte, esta cela tornou-se uma prisão”. Eis que a encenação fílmica de Shakespeare assume uma faceta libertária – e cínica: a nova amplitude que a arte lhe traz terá que colidir para sempre contra as paredes da prisão perpétua. Desde que Cássio conheceu a prisão, a arte tornou-se um palco – e uma cela. Tais contradições retratadas por ‘César deve morrer’ nos fazem entrever por que Júlio César ainda vive.
Assinar:
Postagens (Atom)