TEMA E VARIAÇÕES DO «LIVRO DE HORAS»
DE RAINER MARIA RILKE
Rogel Samuel
Que dizem minhas mãos com os pincéis que tens nos teus
cabelos, com que componho o teu o meu amor, e observas em silêncio na orla do
mar de teus olhos insondáveis, à margem de tua pele de luminoso ouro, sim, que
dizem meus trêmulos dedos quando te
tocam o ventre desnudo e tátil como se de uma pomba flor fosses constituída de
mil ilhas de ametistas e cristais, oh, quando os teus braços de amor me pendem,
que dizem os espaços em que te envolves e te enlaçam? E que fazem minhas mãos
quando te sinto nos limites dos ninhos e que te percorrem hesitantes a te mover
como se fosses minha? Já não estás no âmago de tudo, lá onde todos os traços de
uma dança de anjos se consomem. Teu céu inteiro em mim reside e desaparece e
por mim passa e eis que me calo para te pensar. Assim te tem pintado aqueles deuses maiores
trazidos pelo sol. Assim te amadurecia como uma fruta do mais puro calor da luz
tropical. Assim era o véu dos sentimentos dele que não me revelava nunca o teu
surpreendente mistério. Eras a ave. Amo te assim, de tão longes vôos, como um
menino que se sabe impotente pois és inacessível esperança. Eu bem sei que és a
terra mesmo porque te sonho onde não persistes, nem foram lavradas as minhas
palavras de ti. Uma vez alguém me viu contigo e não acreditou, e não pensou que
éramos nós nem imaginou quão felizes e inseparáveis e completos naquele
momento. Mas não sei porque aos poucos houve essa queda e a frase que voa como
tivesses as mesmas asas lá e já na minha boca não reside o teu gemido meu e
suspende a tua voz. Que me chega. De muito longe. Saída do anteceder do
horizonte como uma grossa chuva
fecundante e úbera. De tanto te bordarem na luminosidade da primavera, foi-se o
dia em que te hospedei as tuas claras terras, as tuas claras messes. Mas longe
hoje , fluindo o tempo, ingresso e
regresso para casa sem ti e é muito escura esta minha liberdade. Não, amor, não te recomeço nem te reconheço
nesta figura de opala, opaca, pesada, no pomo pintado que foi o alicerce
obscuro e fetichizado, frustrado dos meus muros e da tua juventude solitária. O
livro que contém as tuas chaves
necessárias está fechado, as tuas histórias a todo momento se fecham, se alteram,
passastes além da pedreira cega e tomastes a forma do silenciosa desses
gigantescos edifícios onde não posso entrar. Reduzistes-me ao pó de velhos
monumentos fúnebres, de velhos monumentos cegos, de velhos cânticos tidos,
maduros demais para te realizar, para te cantar nesse tom tão romântico. Mas
amo-te ainda assim mesmo ainda que sem o mesmo amor edificante, eterno,
estudado, passando por mim como uma epidemia consentida, e em mim pousando como
aeronave, oh minhas mãos salgadas, mãos ensangüentadas me dizem: tu és ainda um
jardim cheio de vida!
Nenhum comentário:
Postar um comentário