sexta-feira, 31 de julho de 2015
Rogel Samuel: A árvore da gentileza
A árvore da gentileza
Rogel Samuel
A velha árvore em frente à minha janela foi completa, correta, perfeita, extremamente gentil – ao desabar depois da tempestade não prejudicou ninguém.
Para não atrapalhar o trânsito caiu no meio-fio, para não amassar um carro segurou-se na fiação e galhos, para não por em risco a vida das pessoas não se agarrou no cabo de alta-tensão, não caiu sobre minha janela – foi perfeita, morreu heroicamente e nobre.
Nem sei quantos anos ela estava ali, belíssima, portentosa.
Vai fazer muita falta, para mim, para os pássaros e macaquinhos que por ela desciam.
Para homenageá-la no seu túmulo recitei:
As Árvores
Na celagem vermelha, que se banha
Da rutilante imolação do dia,
As árvores, ao longe, na montanha,
Retorcem-se espectrais à ventania.
Árvores negras, que visão estranha
Vos aterra? que horror vos arrepia?
Que pesadelo os troncos vos assanha,
Descabelando a vossa rumaria?
Tendes alma também... Amais o seio
Da terra; mas sonhais, como sonhamos,
Bracejais, como nós, no mesmo anseio...
Infelizes, no píncaro do monte,
(Ah! não ter asas!...) estendeis os ramos
À esperança e ao mistério do horizonte.
(Olavo Bilac)
quinta-feira, 30 de julho de 2015
Rogel Samuel: Governar para os pobres
Rogel Samuel: Governar para os pobres
Sou classe-média, descendo de família rica que empobreceu, mas voto sempre com quem governa para os pobres. Daí meu respeito por certa Presidenta que criou programas contra o empobrecimento, contra a fome, e que promete acabar com a pobreza. Sim, é possível acabar com a pobreza, no Brasil.
Certa vez um arcebispo disse (pasmem) que a bolsa família vicia!
- Sim, Nobre Arcebispo, comer vicia.
Outro me disse que o presidente estava comprando voto. Meu Deus! O Obama injetou bilhões de dólares no sistema financeiro, nos bancos, nas empresas ricas, riquíssimas, milionárias... e ninguém disse nada.
Sim, sim, no Brasil governar para os pobres é um erro, um erro histórico. Foi por isso que Getulio se matou.
Será que o fato se repete? Como diria Camões: "Triste sina, estranha condição".
quarta-feira, 29 de julho de 2015
A PANTERA 22 (ROGEL SAMUEL)
A PANTERA 22 (ROGEL SAMUEL)
Em Paris, encontrei meu tio no “Bistro Duplex”, que fica em baixo do “Hotel du Petit Louvre”. Estava com um café na mesa. Parecia um parisiense.
Sua alegria foi grande.
Sentamo-nos com ele e ouvimos suas novidades ainda ali com as malas no chão. Meu tio já tinha comprado um lote de livros e de Cds.
- Não existe mais a Paris do meu tempo, disse ele, triste.
- Acabou com a guerra, respondi. E perguntei:
- Quanto tempo mais quer ficar aqui?
- Uns seis anos!
E caímos na gargalhada.
Sim, estávamos felizes.
- Ótimo, respondi. Posso arranjar isso.
E dias depois aluguei um apartamento ali perto, na rue Violet, onde nos alojamos. Era um sala e quarto, mas tinha um bom hall de entrada. A sala era dividida por um biombo desbotado. Eu e Jara ficamos no quarto, meu tio na sala, um jogo de sofás, perto da cozinha e do banheiro. Comprei uma máquina de costura usada. Depois desses ajustes, tudo ficou ótimo e passei a desenhar, cortar e costurar um vestido para Jara e fiz um magnífico sobretudo para meu tio. Ele adorou e disse-me que eu era o gênio da moda.
E realmente vinha-me, cada vez mais, um desejo antigo, infantil de costurar. Meu tio queria que eu me tornasse estilista de moda.
- Estamos em Paris, disse ele. A capital da moda. É isso que você faz muito bem.
Assim, incentivado por ele, matriculei-me na “Ecole de la Chambre Syndicale de la Couture Parisienne”.
Ali estudei estilo, desenho de figurino, silhueta, movimento, posições do corpo, criação de uma coleção pessoal, montagem, acabamento e modelismo. O curso, mantido em colaboração com agentes do mundo profissional, habilitava os alunos a aprofundar seus conhecimentos de técnicas de design de vestuário, tradicionais e contemporâneas, com abordagem criativa para modelar e desenvolver suas habilidades estilísticas através de registros de uma coleção pessoal e para complementar oferecia o conhecimento do ambiente dos negócios econômicos do setor da moda. Na realidade, preparavam-nos para ser um empresário da moda.
Era tudo o que eu queria.
Logo vi que tinha muito a aperfeiçoar, mas eu era muito bom naquilo que aprendi ainda menino. E me interessava e ia desenvolvendo.
Um dia um professor, vendo-me trabalhar na gola de um casaco, me perguntou:
- Com quem você aprendeu a fazer isso?
- Com minha mãe, respondi.
- Quem era ela? Coco Chanel?
E rimos.
De certo modo era verdade. Minha mãe era discípula de Chanel à distância.
IPANEMA
IPANEMA
rogel samuel
Morei em Ipanema, na época de ouro do bairro. Morava numa pensão. Sim, existia pensão em Ipanema, onde hoje existe a grande loja da H. Stern, na Visconde de Pirajá. Eu era jovem e feliz. Em baixo havia uma sorveteria, e em cima os quartos alugados. O prédio pertencia a uma senhora muito idosa, espanhola, que morava nos fundos. Meu quarto dava para a rua e tinha um balcão. Poucos metros adiante, a praia de Ipanema se estendia com deslumbramento. O mundo era novo, a vida nova, o êxtase. Fui feliz, naquele quarto espanhol. Já era professor e tinha um Ford Galaxie LTD gigantesco com que ia dar aula no distante subúrbio de Campo Grande. Ali pensavam que eu era milionário. Mas era mesmo um poeta. Um mau poeta.
segunda-feira, 27 de julho de 2015
domingo, 26 de julho de 2015
O pássaro voa para a serpente
O pássaro voa para a serpente
Rogel Samuel
Depois de beber o fogo do vinho da taça, por que continuar vestido com a vestimenta de inverno? O tempo voa, a vida passa, o pássaro do tempo só tem um modo de voar, e ele está voando agora, aproveitemos o pouco tempo que temos, venha, encha a taça com o fogo da vida pois o pássaro do tempo voa para a serpente, e a morte é certa, e já está próxima sempre. Eis, venha, encha a taça que a vida dura somente o tempo de bebe-la, e há pouco vinho ali e pouca chance de permanecer com ela.
Diz o poema da Khayyam:
Venha, encha a taça, e no fogo da torrente
A vestimenta de Inverno de Arrependimento voa:
O Pássaro de Tempo tem apenas um leve modo
De voar--e eis! o Pássaro está na sua Asa.
Omar Khayyam (Século 11) versão inglesa de Edward FitzGerald
Língua Original Persa/Farsi
Amizades
Amizades
Rogel Samuel
"A amizade é um refúgio, uma comunidade sagrada, fraterna. É um dos "refúgios preciosos" de que falam os diferentes Budas. No tumulto do mundo moderno, o homem e a mulher devem encontrar refúgio. Quando se encontrou refúgio, os problemas desaparecem como um vôo de pássaros perturbados pela pedra de uma fisga. Perdem o seu peso, e põem-se a dançar.
Precisarias da força ascética do eremita, do mestre de sabedoria, para te libertar a ti próprio da cegueira e da ilusão. Hoje, o homem moderno não pode fazer nada sem a ajuda dos outros. Não vive nas solidões do Tibete, fora do mundo, protegido dos profanos pelo recinto sagrado do mosteiro. É o diálogo, a partilha, a reciprocidade que nos libertam, e nos trazem de novo à nascente Única, comum a todos os seres", escreveu Dugpa Rinpochê.
É uma arte, a fazer amigos. Uma arte rara. Na adolescência é fácil. Temos os amigos da escola, os colegas da faculdade. Na maioridade vai-se tornando difícil. Se você é professor universitário, difícil. A competição faz com que todos se tornem inimigos. Cordiais. Na família, depende de cada uma. Há famílias unidas e desunidas.
Mas na velhice os únicos são os remanescentes, os amigos antigos. E vão morrendo. Cada vez que morre um deles, mais a solidão nos cerca, como uma ilha nos tornamos.
É aí que forçadamente aprendemos a nos abrir para os outros e a conquistar novas amizades.
Dizia Hegel que a "necessidade" move a História.
E move nossas vidas.
sábado, 25 de julho de 2015
quinta-feira, 23 de julho de 2015
A PANTERA 21 (ROGEL SAMUEL)
A PANTERA 21 (ROGEL SAMUEL)
Meu tio foi a Paris. Levei-o ao Aeroporto. Auxiliei com dólares e contatos.
A sua ausência criou um vazio muito grande no sítio. O piano, silenciado, me chamava a seu encontro. Todos os dias eu sentava no banco do piano e tentava tocar qualquer coisa com meus rudimentares conhecimentos. Meu pai era bom pianista e me deu aula até quando eu tinha sete anos. Ele era um bom professor, eu era um péssimo aluno de piano. O de que eu gostava era de costurar e bordar, como minha mãe. Meu pai se irritava com isso. “Seja homem”, gritava.
No sítio, passei a desenhar e costurar para Jara. Fiz várias roupas para ela. Eu desenhava e costurava muito bem desde menino. Imitava Balenciaga, cujos desenhos conheci através das revistas de minha mãe. Jara ficou muito feliz e bela com seus novos vestidos.
As paredes de meu tio estavam cheias de desenhos meus, que ele emoldurou. Eu gostava de criar roupas luxuosas, capas, chapéus, joias. Quando eu era menino, minha mãe punha-me a desenhar a seus pés, para que eu ficasse quieto. Depois, quando adolescente, ensinou-me a costurar, para ajudá-la nas diversas encomendas que recebia. Acabei aprendendo e me desenvolvendo na costura. Eu era rápido e tinha estilo. Desenhava as roupas antes de as fazer. E dizia que aquela seria a minha profissão. Fazia de tudo. Moldava, cortava, cosia a máquina e a mão. Costurei também roupas masculinas, camisas, ternos e jaquetas. Tudo impecável. Diziam que eu era melhor do que minha mãe. Jara ficou espantada com a minha habilidade de costureiro.
Comprei uma moto, para a fuga rápida. Tracei a rota de fuga pela floresta, no caso de invasão. Fugiríamos de motocicleta, saindo rapidamente pelo outro lado de morro.
Eu nunca estava tranquilo. Se fosse preso, seria torturado e morto. Nós tínhamos chamado atenção no vilarejo próximo com minhas compras. As pessoas especulavam.
Depois de um tempo, advertido por companheiros da nossa organização, as Panteras Vermelhas, coloquei um caseiro no sítio e desapareci com Jara.
Fugimos, saindo do país pelas rotas clandestinas que eu sempre usava.
Eu não podia ter um endereço fixo, não podia ter uma vida normal, nem uma família.
quarta-feira, 22 de julho de 2015
Luxo das arábias
Luxo das arábias.
Rogel Samuel
É muito interessante ver as propagandas de jóias dos jornais árabes. Aqueles senhores têm muito dinheiro e gastam em luxo. Fazem muito bem. Infelizmente o povo é pobre. Muito
petróleo. Diariamente se vêem jóias muito caras, carros de luxo, próprios para o consumo
daquela classe dominante. Os anúncios são de milhões, e na primeira página.
Propaganda em "Al-Riyadh", publicado em Riyadh, Saudi Arabia.
terça-feira, 21 de julho de 2015
A PANTERA 20 (ROGEL SAMUEL)
A PANTERA 20 (ROGEL SAMUEL)
Nossa vida com o tio Carlos foi divertida.
Contratei operários para pintar a casa, fizemos uma reforma rápida e finalmente consegui que viesse do Rio um afinador de piano.
Tínhamos empregados temporários que cuidavam da horta, dos jardins e da cozinha.
Um dia ele me disse, sentado na cadeira de embalo da varanda.
- Eu gostaria de rever Paris...
E depois de um tempo:
- Antes de morrer...
Eu já esperava que ele dissesse isso. Sabia o que ele queria dizer e que tinha umas economias, mas eu não queria acompanhá-lo, devido à minha situação política.
Mas prometi apoiá-lo.
Passei aqueles tempos ouvindo os discos de meu tio, principalmente A Paixão segundo Mateus de Bach, que meu tio tinha, em Long Play. Eu ouvia aquilo diariamente, como um ritual, e o velho aparelho de som com suas grandes caixas de som serviam para abrir nos espaços aquela música sublime.
Com o piano recuperado, limpo e afinado, pedi a meu tio que tocasse algo de Bach.
E assim vivíamos nós, de pura música.
segunda-feira, 20 de julho de 2015
DOS JOVENS GOLIARDOS - JORGE TUFIC
DOS JOVENS GOLIARDOS
I
Que fim levara o sol dourando a espiga
das manhãs argentinas de meus ombros?
Que fim levara a polidez dos seixos
e a magia do riso entre os escombros?
Que fim levara a roupa do menino
seus cadernos suas penas seu tinteiro,
plumas de ganso ao fogo azul e branco,
pepitas de ouro e galo no terreiro?
Que fim levara a esguia namorada
e as chuvas regulares copas verdes,
chão coberto de mangas? Se este nada
era tudo e tão fundo e tão sublime
que nem toda a existência de palavras,
nem a vontade de morrer, exprime.
domingo, 19 de julho de 2015
Hino á tarde
Hino á tarde
Rogel Samuel
Bilac escreveu um glorioso hino à tarde, mas não aquela tarde cheia de brilho, de sol, de ouro em chama, luz e primavera .
A tarde que ele ama é a do fim, do pôr-do-sol, do adágio vesperal, tumba de luto e esplendor do fim do dia, cheia crepes e auriflamas, a tarde triste, mas augusta, meio envolta no vulto da noite, das estrelas, ventre da noite, e dos seus mistérios, a noite das volúpias, do sono, da continuação da vida e do nada.
Glória jovem do sol no berço de ouro em chamas,
Alva! natal da luz, primavera do dia,
Não te amo! nem a ti, canícula bravia,
Que a ti mesma te estruis no fogo que derramas!
Amo-te, hora hesitante em que se preludia
O adágio vesperal, - tumba que te recamas
De luto e de esplendor, de crepes e auriflamas,
Moribunda que ris sobre a própria agonia!
Amo-te, ó tarde triste, ó tarde augusta, que, entre
Os primeiros clarões das estrelas, no ventre,
Sob os véus do mistério e da sombra orvalhada,
Trazes a palpitar, como um fruto do outono,
A noite, alma nutriz da volúpia e do sono,
Perpetuação da vida e iniciação do nada.
sábado, 18 de julho de 2015
O VÔO VAZIO
O VÔO VAZIO
ROGEL SAMUEL
Ah, que quando abri meus olhos não, não nos primeiros instantes, não, mas logo compreendi que não sabia onde estava. Aquilo, aquele ruído grave, surdo, me deixava inerme, e devia estar naquela posição desde muito tempo, ali e sim, era importante ver e entender o que se passava, era realmente urgente, eu estava sozinho naquele avião, e o vôo prosseguia e eu estava em pleno ar.
Era uma aeronave grande, MD-11, de 285 lugares, capaz de carregar 280.320 quilos e viajava a 890 km por hora.
Talvez estivesse ali por acaso, esquecido, mesmo restasse ali para morrer. Costumo tomar uns comprimidos fortes para dormir nos vôos demorados, depois de me prender bem com o cinto de segurança na poltrona. Porventura todos os outros passageiros teriam saído, pulado, estaria eu naquela aeronave e assim conduzido para algum lugar em perigo, sem nenhum retorno, como para a morte num avião seqüestrado.
Quando acordei vi que nem imaginava para onde ia.
Com muito custo consegui destravar o cinto e erguer-me dali.
Fui até a frente do aeroplano.
Não vi ninguém.
Como a sede me atormentava, abri uma garrafa de água mineral e bebi um gole. Aquilo me reanimou.
Na tentativa de explicação, e como já estivesse a ponto de entrar em pânico, fui à cabine de comando, cuja porta encontrei trancada, mas que logo consegui abrir.
Havia o pessoal de bordo, sim, havia, que pude ouvi-los mas não consegui vê-los.
Conversavam entre si e riam.
Lá estavam.
Mas apareceu uma aeromoça muito irritada comigo, criticando-me severamente por eu ter saído de meu lugar e ir aonde não devia, por ter entrado na cabine.
Ela, sem querer ouvir nem me deixar falar, me ordenou com impaciência e autoridade, que eu logo retornasse à minha poltrona, que voltasse imediatamente para meu lugar, não me dando nem tempo para formular minhas indagações e saber onde estava e para onde ia, já revelando que não responderia às minhas indagações.
Mais conformado vi que tudo funcionava bem, que o vôo prosseguia e não corria perigo, com serenidade deixei-me ficar naquela desconhecida rota, viagem fantasma, como sob o sigilo e o controle do piloto automático.
Voltei reconfortado mas muito mais cansado com o esforço, de tal forma que me sentei no mesmo lugar e logo adormeci, ainda sob o efeito do forte tranqüilizante.
Caí num sono profundo.
No meu sonho considerava eu não saber onde estava, sonho que sempre se repete, não me recordava de onde vinha, não sabia para onde ia.
Eu continuava a sonhar.
O efeito do tranqüilizante não passara ainda, e estava eu mergulhado numa indiferença mortal, como que entorpecido.
Quando acordei, tinha uma sede terrível. Minha vista se escurecia, a mente se obscurecia e desmaiava num véu escuro povoado de alguns súbitos clarões, como relâmpagos. Tentei erguer-me outra vez da poltrona, na intenção de informar-me outra vez com o pessoal de bordo. Curiosamente só me lembrava de ter visto a aeromoça.
Depois de algum tempo, consegui levantar-me. Andei. Entrei no banheiro.
Devíamos estar na velocidade de cruzeiro, porque havia estabilidade no vôo.
Sentei-se no vaso e desmaiei.
Uma turbulência me acordou.
Ergui-me e voltei.
Ao passar, tive vontade de tentar abrir a porta da aeronave. Eu sempre quis abrir aquela porta. Mas não consegui fazer nada.
Voltei ao meu lugar e percebi que agora existia alguém, alguma coisa que estava diferente: havia um homem sentado ali, no mesmo lugar, dormindo.
Tentei acordar aquele homem. Tentei acordá-lo. Mas não consegui, porque logo vi que era eu quem estava morto ali.
Era uma aeronave grande, MD-11, de 285 lugares, capaz de carregar 280.320 quilos e viajava a 890 km por hora.
Talvez estivesse ali por acaso, esquecido, mesmo restasse ali para morrer. Costumo tomar uns comprimidos fortes para dormir nos vôos demorados, depois de me prender bem com o cinto de segurança na poltrona. Porventura todos os outros passageiros teriam saído, pulado, estaria eu naquela aeronave e assim conduzido para algum lugar em perigo, sem nenhum retorno, como para a morte num avião seqüestrado.
Quando acordei vi que nem imaginava para onde ia.
Com muito custo consegui destravar o cinto e erguer-me dali.
Fui até a frente do aeroplano.
Não vi ninguém.
Como a sede me atormentava, abri uma garrafa de água mineral e bebi um gole. Aquilo me reanimou.
Na tentativa de explicação, e como já estivesse a ponto de entrar em pânico, fui à cabine de comando, cuja porta encontrei trancada, mas que logo consegui abrir.
Havia o pessoal de bordo, sim, havia, que pude ouvi-los mas não consegui vê-los.
Conversavam entre si e riam.
Lá estavam.
Mas apareceu uma aeromoça muito irritada comigo, criticando-me severamente por eu ter saído de meu lugar e ir aonde não devia, por ter entrado na cabine.
Ela, sem querer ouvir nem me deixar falar, me ordenou com impaciência e autoridade, que eu logo retornasse à minha poltrona, que voltasse imediatamente para meu lugar, não me dando nem tempo para formular minhas indagações e saber onde estava e para onde ia, já revelando que não responderia às minhas indagações.
Mais conformado vi que tudo funcionava bem, que o vôo prosseguia e não corria perigo, com serenidade deixei-me ficar naquela desconhecida rota, viagem fantasma, como sob o sigilo e o controle do piloto automático.
Voltei reconfortado mas muito mais cansado com o esforço, de tal forma que me sentei no mesmo lugar e logo adormeci, ainda sob o efeito do forte tranqüilizante.
Caí num sono profundo.
No meu sonho considerava eu não saber onde estava, sonho que sempre se repete, não me recordava de onde vinha, não sabia para onde ia.
Eu continuava a sonhar.
O efeito do tranqüilizante não passara ainda, e estava eu mergulhado numa indiferença mortal, como que entorpecido.
Quando acordei, tinha uma sede terrível. Minha vista se escurecia, a mente se obscurecia e desmaiava num véu escuro povoado de alguns súbitos clarões, como relâmpagos. Tentei erguer-me outra vez da poltrona, na intenção de informar-me outra vez com o pessoal de bordo. Curiosamente só me lembrava de ter visto a aeromoça.
Depois de algum tempo, consegui levantar-me. Andei. Entrei no banheiro.
Devíamos estar na velocidade de cruzeiro, porque havia estabilidade no vôo.
Sentei-se no vaso e desmaiei.
Uma turbulência me acordou.
Ergui-me e voltei.
Ao passar, tive vontade de tentar abrir a porta da aeronave. Eu sempre quis abrir aquela porta. Mas não consegui fazer nada.
Voltei ao meu lugar e percebi que agora existia alguém, alguma coisa que estava diferente: havia um homem sentado ali, no mesmo lugar, dormindo.
Tentei acordar aquele homem. Tentei acordá-lo. Mas não consegui, porque logo vi que era eu quem estava morto ali.
quinta-feira, 16 de julho de 2015
ELA, LUZ CLARA DO DIA; ELE, ESCURIDÃO DA NOITE
ELA, LUZ CLARA DO DIA; ELE, ESCURIDÃO DA NOITE
Rogel Samuel
Sim, Alberto de Oliveira exibe poesia visual, apresentadora, cinematográfica, descritiva, clássica, seu soneto «Cheiro de espádua» possui música, perfume, perfume de mulher, festa e orquestra, som, brilho, claridade, paixão, desejo, luz, sabe a Proust, a «belle époque», a luxo, luxo romântico, a Sarah Bernhardt, um luxo adolescente, jovem, sonho, delírio, valsa, rosas, rosas vermelhas.
«Quando a valsa acabou, veio à janela,
Sentou-se. O leque abriu. Sorria e arfava.
Eu, viração da noite, a essa hora entrava
E estaquei, vendo-a decotada e bela.
Eram os ombros, era a espádua, aquela
Carne rosada um mimo! A arder na lava
De improvisa paixão, eu, que a beijava,
Haurí sequiosa toda a essência dela!
Deixei-a, porque a vi mais tarde, oh ciúme!
Sair velada da mantilha. A esteira
Sigo, até que a perdi, de seu perfume.
E agora, que se foi, lembrando-a ainda,
Sinto que, à luz do luar nas folhas, cheira
Este ar da noite àquela espádua linda!»
O primeiro verso - «Quando a valsa acabou, veio à janela» - enverga, declara a perfeição clássica, a simplicidade do gênio, é um verso aberto com acento na sexta, ---------------- 6 -------- 10 , um decassílabo perfeito, heróico, camoniano, escorregadio como as valsas, volteia com a saída das moças da sala, virgens, perfumadas e com aquela, que veio até a sacada, respirar o ar fresco da noite, o ar fresco das estrelas, o hálito que desce das estrelas, que desce das luzes estelares, que desce com as fadas, as madrinhas, a pulsação, a palpitação do universo, das esferas que movem o céu, o sol e as outras estrelas, a juventude e seu amor, seu nobre amor, «Quando a valsa acabou... » são sons dos aa do amor, seis aas desse danúbio azul das flores de laranjeiras brasileira, ã – a – a – a – a – a – ou, «Quando a valsa acabou, veio à janela» - aquela valsa do amor do poeta, do amor poético, irisado de brilhos e vidros reluzentes, lustres de vitrine, vista da que veio à janela, «Sentou-se. O leque abriu. Sorria e arfava. » - são três segmentos da respiração arfante, da respiração difícil, ofegante, o sorriso da menina no bater do leque do ritmo dos espasmos de seu coração gozoso, prazeroso, sensual da virgindade em perigo, e o poeta, pronto para o ataque amoroso, para o estupro poético, para o noturno de beijos, sim, que é mais que beijo, porque nas espáduas, nos ombros, do «eu, viração da noite, a essa hora entrava / e estaquei, vendo-a decotada e bela», sim, o poeta entrava, descia, vinha pelo decote pela janela pelas fímbrias do amor – cavaleiro da noite, amante visitante da noite – pois se ela veio da luz e da valsa – ele veio da noite e da viração noturna, agressiva, pecadora, mortal: o seu desejo é cego, arde no fogo na lava da carne rosada rasgada e improvisada da paixão da sala - «eram os ombros, era a espádua, aquela / Carne rosada um mimo! A arder na lava / De improvisa paixão, eu, que a beijava, / Haurí sequiosa toda a essência dela! ».
Então ela foge velada, escondida pela mantilha, e ele a segue pelo o rastro do perfume da carruagem de seu cheiro que, sim, continua na noite no luar no ar da noite aspirando-a numa masturbação poética à luz do luar, sim, cheiro de fêmea, do seu colo onde o olhar se precipita vai para o abismo de seu segredo. Sim, deixei-a porque a vi sair velada pela mantilha, a esteira, a perdi, o seu perfume, oh, agora, que se foi, lembrando-a ainda, sinto-a ainda à luz do luar das folhas, no cheiro desse ar da noite oh, aquela espádua linda.
Todo desejo é visual, é pelos olhos que começamos a atividade desejante. Ombros, espádua, a carne rosada, Alberto de Oliveira abre o leque e revela, ostenta, a sua poesia visual, apresentadora do amor visualizado no colo nos ombros da amada, e tomando a parte pelo todo desce até o último íntimo ventre da noite de seu desejo. Até haurir a essência...
segunda-feira, 13 de julho de 2015
A PANTERA 20
A PANTERA 20.
ROGEL SAMUEL
Nossa vida com o tio Carlos foi divertida.
Contratei operários para pintar a casa, fizemos uma reforma rápida e finalmente consegui que viesse do Rio um afinador de piano.
Tínhamos empregados temporários que cuidavam da horta, dos jardins e da cozinha.
Um dia ele me disse, sentado na cadeira de embalo da varanda.
- Eu gostaria de rever Paris...
E depois de um tempo:
- Antes de morrer...
Eu já esperava que ele dissesse isso. Sabia o que ele queria dizer e que tinha umas economias, mas eu não queria acompanhá-lo, devido à minha situação política.
Mas prometi apoiá-lo.
Passei aqueles tempos ouvindo os discos de meu tio, principalmente A Paixão segundo Mateus de Bach, que meu tio tinha, em Long Play. Eu ouvia aquilo diariamente, como um ritual, e o velho aparelho de som com suas grandes caixas de som serviam para abrir nos espaços aquela música sublime.
Com o piano recuperado, limpo e afinado, pedi a meu tio que tocasse algo de Bach.
E assim vivíamos nós, de pura música.
domingo, 12 de julho de 2015
Da arte do sol
Rogel Samuel: Da arte do sol
Escrevo de madrugada. Nunca dormi muito bem, e sempre acordo durante a noite. Esta é a hora boa para ler, pensar, rever a vida. Antigamente era possível sair de madrugada. Quando eu morava em Copacabana, nessas horas eu saía para caminhar na praia e ver o sol nascer. O sol sempre nasce com esplendor, como tudo que nasce. A vida é o nascimento: o demais é um declinar-se para a morte, já pensou Heiddeger. Se nos fosse possível imaginar, diz Nietzsche, a dissonância feita criatura humana (pois o homem é uma dissonância) esta, para poder suportar a vida, teria a necessidade de uma admirável ilusão que lhe escondesse a sua verdadeira natureza, sob um véu de beleza. Esta é a finalidade da arte apolínea. Da arte do sol. O nome de Apolo resume aqui essas ilusões sem número da bela aparência que tornam, a cada instante, a existência digna de ser vivida e nos incitam a vivê-la no instante seguinte. A vida sempre renasce. Sempre que as potências dionisíacas a subverte violentamente, é desejável que Apolo, envolvido em nuvens, desça até nós, para curar a nossa escuridão, a nossa embriaguez.
sábado, 11 de julho de 2015
A PANTERA 19. (ROGEL SAMUEL)
A PANTERA 19. (ROGEL SAMUEL)
Meu tio ainda estava morando sozinho no sítio. Nas paredes havia antigos desenhos meus, alguns trabalhos de adolescente, quando eu desenhava vestidos daquelas mulheres da alta costura das revistas europeias de minha mãe, que era costureira, o Burda e outras de que não me lembro. Eu acabei, por imposição de minha mãe desenhando centenas de vestidos. Minha mãe que assim fazia para manter-me quieto ao seu lado, me especializou em alta costura sem querer ou saber, pois eu desenhava as roupas que minha mãe fazia para as freguesas. As freguesas adoravam e minha mãe, orgulhosa, me exibia como um gênio. E eu me sentia recompensado.
O sítio ocupava o morro e o vale, longe passava a estrada, que ia para o vilarejo.
Meu tio descia até a estrada, pegava um ônibus que passava de hora em hora para fazer as compras. Às vezes ia à cidade receber sua aposentadoria. Tudo antes feito pela governanta, que morreu.
Quando eu cheguei ali com Jara, ele não estava. Entramos na casa, completamente aberta. Fomos nus tomar um banho de igarapé ali atrás da casa, banho refrescante e divertido. O pequeno córrego vinha da mata e abria um pequeno tanque, frio, tranquilo. Meu tio se banhava ali, havia sabonete e toalha.
Andamos no pomar e na horta maltratada. A casa deteriorada, sua limpeza não se fazia há tempo. Depois do banho, começamos a limpar a cozinha e a fazer a comida.
Meu tio apareceu, cansado.
Foi uma festa.
Ele fez questão de abrir uma garrafa de champanhe francesa que tinha na adega do porão. Adorava a França.
A reunião me fez bem, reunião familiar que eu não experimentava há anos.
Meu tio Carlos, irmão de minha mãe, me conhecia desde criança, aos 80 anos ainda era um homem forte, graças à vida simples e ao trabalho no campo.
Ele já tinha preparado nosso quarto, com as portas do armário abertas.
Desse modo, depois do almoço nos recolhemos e dormimos.
Só à noite tivemos ânimo para mais conversar. Eu contei um pouco da minha vida, mas ele estava interessado era em Jara. Acho que apaixonado por ela.
Jara e ele se deram muito bem. Conversaram a noite toda.
No fim que ela “cantasse” uma canção indígena.
Ela acabou cedendo e aí aconteceu o inesperado. Ela cantou e bateu o chocalho de meu tio por alguns minutos. E dançou. Eu nunca a tinha visto fazer aquilo. Ela se transfigurou.
Depois meu tio foi ao piano, a meu pedido. Tocou uma sonata de Beethoven, mas já não era nem a sombra do que tinha sido e o piano estava péssimo.
- O Ricardo morreu, disse-me ele. Não conheço ninguém para tratar do piano.
Eu disse que ia procurar outro.
sexta-feira, 10 de julho de 2015
Vida e glória
Vida e glória
Rogel Samuel
Vida de monge? Vida gloriosa. A grande tarefa da vida: fazer o que aparece para ser feito.
Nada buscar tudo ter. O acontecimento glorioso da vida, tudo aquilo que é para ser vivido. O experimento da paz, a paz na ação, a paz ativa. Sem julgar que é bom ou mal, nada escolhe nem rejeita. Oh vida gloriosa sem outra dificuldade além do acontecimento diário de que cada coisa e cada fato é o que é, sem deslize. A maior glória do poder mágico é que as montanhas azuis, as colinas verdejantes. A luz da prática espiritual consiste nisso: levar água, juntar lenha. Quem consegue fazer sem pensar, avaliar, delirar já está na mais alta realização.
“Na minha vida diária não há nenhuma outra tarefa
Além do que acontece cair em minhas mãos.
Não escolho nada, não rejeito nada.
Em nenhuma parte há dificuldade, em nenhuma parte um deslize.
Eu não tenho nenhum outro emblema de minha glória
Além das montanhas e colinas sem uma mancha de pó.
Meu mágico poder e exercício espiritual consiste nisso:
Levar água e juntar lenha.”
(P'ang Chü-shih, A Idade Dourada do Zen 94, 304 n.5)
quinta-feira, 9 de julho de 2015
quarta-feira, 8 de julho de 2015
56 anos de vida literária
56 anos de vida literária
Rogel Samuel
Mas eu festejei neste ano solitariamente os 56 anos de minha vida literária. O primeiro poema publiquei no 8 de fevereiro de l959, em O jornal de Manaus. Fiz versos como: “o vento/ o córrego entre as montanhas / a lua líquida / sobre a superfície”. Os lugares-comuns de sempre, ou seja, eu poetizei a "poesia" com os chavões conhecidos de que não me libertei até hoje.
Sim, festejo silenciosamente os 56 anos de minha profissão de escritor. Não escrevo com tristeza, mas com certa vitória. Afinal, há quem não tenha tido isso de vida. Pois, como escreveu Nietzsche que vi citado num blog outro dia: “Temos a arte para não morrer da verdade”.
Continuo escrevendo.
domingo, 5 de julho de 2015
SONETO DE JORGE TUFIC
VI
A lua envelhecida ocupa os ares.
Desce inteira das nuvens, e assim plena
larga todas as vestes. Mês de junho
sabe a feitiço e os peixes envenena.
Algo desata a flor dos jasmineiros,
ventos carregam súplicas e brados.
Essa lua, porém, de que me lembro
tem o rosto senil dos afogados.
Jovens que se largaram pelos rios,
braços rijos nas faias, nunca mais
regressaram das margens convulsivas,
dos laços de algum réptil. Que eu recorde
todos dormem sonhados pela aragem,
ecos perdidos numa só voragem.
sábado, 4 de julho de 2015
Dilson Lages eleito para a APL
Dilson Lages eleito para a APL
O professor Dilson Lages Monteiro, diretor do site www.dilsonlagesmonteiro.com. foi eleito com 26 votos, para ocupar a cadeira vaga com a morte do poeta Hardi Filho na Academia Piauiense de Letras (APL).
Foi eleito por maioria absoluta para ocupar a cadeira do Poeta Hardi Filho.
O professor Dilson Lages Monteiro, diretor do site www.dilsonlagesmonteiro.com. foi eleito com 26 votos, para ocupar a cadeira vaga com a morte do poeta Hardi Filho na Academia Piauiense de Letras (APL).
Foi eleito por maioria absoluta para ocupar a cadeira do Poeta Hardi Filho.
A POESIA MINIMALISTA DE DILSON LAGES (ROGEL SAMUEL)
A POESIA MINIMALISTA DE DILSON LAGES (ROGEL SAMUEL)
O que chama de poesia zen é a que apresenta o que já é presente, isto é, o que está na nossa frente, diante dos nossos olhos, onde ali é colocado como um “está aí”: “eis-me”, e em poucos versos, poucas palavras:
A mulher de vermelho
molha as flores da passarela
É a poesia mínima, reduzida ao mínimo, no minimalismo característico do pós-moderno, o nosso tempo. Lembro-me de que a poesia partiu dos grandes poemas heróicos, dos grandes textos homéricos, para os romances medievais, os cantos clássicos, as estrofes românticas, os pequenos poemas pós-modernos. Houve exceções. Isso é a generalidade: a fina teia dos poetas na época da Internet. Que será da poesia? Que gênero poético? Para onde vai a literatura? Ninguém sabe. Mas os poemas agora se reduzem ao cerne, duas três rimas, umas poucas imagens e a imensidão do espaço do papel em branco – a poesia do Dilson tende assim ao haicai:
A flor nasce nos olhos da lua
Diante do espelho que sou.
(Isto: o poeta no espelho. O poeta que vê:)
...a rua é ruínas
E vejo o sol...
(Que sabe recolher “os resíduos do dia” nas suas anotações de estrofes, que são como notas apressadas de um repórter perseguido pelos “rostos dos fantasmas”, pelo “trânsito do vento” – a realidade transformada em nada, a natureza vinda do sertão:
Ouço o mugido do gado
preservando o encanto da noite
e galopamos na tangente do açude
onde o céu se oferece para contemplação.
A madrugada corre ensandecida.
Minhas mãos alcançam as alturas
e degusto o oásis do sertão
onde cavalgamos sonhos.
(E da cidade. Na)
ESPERANÇA EM FORMA DE NUVEM
A cidade decresce
a multidão de prédios-diamantes
na manhã que se inicia
e no céu cinza das avenidas
as aves unidas dançam
ao som silencioso do vento
a canção veloz do vôo.
Já não há lirismo, nesse trâmite. “Já não navego o ego”, escreveu. Mas “o silêncio parou de tocar”, e
Acordo a madrugada
e repouso em mim a noite que dormiu
demais
para despertar a manhã
e vestir-me de céu.
Esta poesia faz das coisas uma concretude e não uma imagem, pois a realidade é tanta que “a água na vidraça / despedaça...” e o mundo se descerra em “faces e disfarces”. Neste caso o silêncio é um consolo, pois serve para “arrancar o coração das paredes”. No:
O MUNDO VISTO POR DENTRO
A ausência zera o rosto
coberto pela toalha da alma
e a máscara da face
abre o cárcere
para o mundo se mostrar
como é.
É muito interessante sentir que se pode ler no “Sabor dos sentidos” a meditação de “Os olhos do silêncio”, que pisa no freio das palavras e dissolve o fragmento do pensar.
Ali o silêncio é interno, o silêncio sempre fala mais alto, “pó do vento”, o que “apaga a escuridão”, o silêncio como arte decorativa: “o manto de anjo na sala de estar”
sexta-feira, 3 de julho de 2015
TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS DE WITTGENSTEIN (1918/1921)
TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS DE WITTGENSTEIN (1918/1921)
Trad. José Arthur Gianotti
Sinopse feita por Rogel Samuel
O mundo
1 - O mundo é tudo o que ocorre.
1.1 - O mundo é o conjunto dos fatos, não das coisas.
1.11 - O mundo é determinado pelos fatos, estes fatos sendo a totalidade dos fatos.
1. 12 - Porque a totalidade dos fatos determina aquilo que ocorre e também aquilo que não corre.
1. 13 - Os fatos, no espaço lógico, constituem o mundo.
1. 2 - O mundo se decide em fatos.
1. 21 - Algo pode ocorrer,ou não ocorrer e todo o resto permanecer igual.
2 - O que ocorre, o fato, é a existência de estados de coisas.
2.01 - O estado de coisas é uma ligação de objetos (entidades, coisas).
2.011 - É essencial para a coisa poder ser parte integrante de um estado de coisas.
2.012 - Em lógica nada é acidental: se a coisa pode aparecer dentro de um estado de coisas é necessário que a possibilidade do estado de coisas esteja previamente inscrito na coisa.
Os objetos
2.02 - O objeto é simples.
2.0201 - Cada enunciado sobre complexos se sobre complexos pode decompor em um enunciado proposições que descrevem integralmente os complexos.
suas partes constitutivas e naquelas
2.021 - Os objetos formam a substância do mundo. Eis porque não podem ser compostos.
2.0211 - Se o mundo não tivesse ponto de substância, o fato de saber se uma proposição tem sentido dependeria de saber se outra proposição é verdadeira.
2.0212 - Seria impossível de projetar uma imagem do mundo, verdadeira ou falsa.
2.022 - É evidente que tão diferente que pudesse ser do mundo real um mundo imaginário ele deve ainda assim ter alguma coisa de comum -- uma forma -- com o mundo real.
2.023 - Esta forma estável consiste em objetos.
2. 0231 - A substância do mundo só pode determinar uma forma, e não propriedades materiais já que estas propriedades materiais são representadas pelas proposições, formadas pela configuração dos objetos.
2.0232 - Seja dito de passagem: os objetos são incolores.
Os estados de coisas
2.03 - No estado de coisas os objetos se ligam uns aos outros como elos
de uma cadeia.
2.031 - No estado de coisas os objetos se comportam uns em relação aos outros de uma maneira determinada.
2.032 - A maneira pela qual os objetos se ligam no estado de coisas constitui a estrutura do estado de coisas.
2.033 - A forma é a possibilidade da estrutura.
2.034 - A estrutura do fato consiste nas estruturas dos estados de coisas.
2.04 - A totalidade dos estados de coisas existentes é o mundo.
2.05 - A totalidade dos estados de coisas existentes determina igualmente que tipos de estados de coisas não existem.
2.06 - A existência e a inexistência de estados de coisas constituem a realidade.
(A existência de estados de coisas nós a chamamos também de fato positivo, sua inexistência de fato negativo.)
2.061 - Os estados de coisas são independentes uns dos outros.
2.062 - Da existência ou não-existência de um estado de coisas não
é possível concluir a existência ou não-existência de outro.
2.063 - A realidade total é o mundo.
A imagem
2.1 - Nós nos fazemos imagens dos fatos.
2.11 - A imagem representa o fato no espaço lógico, a existência e a não-existência dos estados de coisas.
2.12 - A imagem é uma transposição da realidade.
2.13 - Na imagem os elementos da imagem correspondem aos objetos.
2.14 - A imagem reside no fato de que seus elementos têm ligações determinadas uns com os outros.
2.141 - A imagem é um fato.
2.15 - O fato de que os elementos da imagem têm ligações determinadas uns com os outros se relaciona ao fato de que as coisas se comportam da mesma maneira umas com as outras.
Esta conexão dos elementos da imagem nós a chamamos sua estrutura, e a possibilidade dela sua forma de representação.
2.151 - A forma da representação é a possibilidade de que as coisas se comportem umas com as outras como os elementos da imagem.
2.1511 - A imagem se enlaça com a realidade; ela a atinge.
2.1512 - É como um padrão de medida que se aplica à realidade.
2.15121 - Somente os pontos extremos dos traços que dividem a superfície estão em contato com o objeto a medir.
2.1513 - Segundo esta concepção, pertence igualmente à imagem a relação de representação que a torna uma imagem.
2.1514 - A relação de representação é constituída pelo modo por que os elementos da imagem se coordenam com as coisas.
2.1515 - Estas coordenações são espécies de antenas dos elementos da imagem, pelas quais as imagens entram em contato com a realidade.
2.16 - O fato de ser imagem implica que haja alguma coisa comum entre a imagem e aquilo que ela representa.
2.161 - É necessário que na imagem e naquilo que ela representa haja qualquer coisa de idêntico, para que uma possa:ser uma imagem do outro no sentido preciso do termo.
2.17 - Aquilo que a imagem deve ter de comum a fim de que a possa representar à sua maneira com é a forma da representação.
2.171 - A imagem pode representar cada realidade da qual ela tem a forma A imagem entendida no espaço pode representar tudo o que é espacial, a imagem colorida tudo o que é colorido etc.
2.172 - Entretanto a imagem não pode representar sua própria forma de representação: ela apenas a mostra.
2.173 - A imagem representa seu objeto de fora (seu ponto de vista constitui sua forma de representação); eis por que a imagem representa o objeto de modo justo ou falso.
2.174 - A imagem, porém, não poderia representar-se fora de sua forma de representação.
2.18 - Aquilo que cada imagem, de qualquer maneira que seja, deve ter em comum com a realidade, para absolutamente podê-la representar -justamente ou falsamente -- é a forma lógica, isto é, a forma da realidade.
2.181 - Se a forma da representação é a forma lógica, a imagem se chama imagem lógica.
2.182 - Toda imagem é também uma imagem lógica (entretanto, nem toda imagem
é espacial).
2.19 - A imagem lógica pode representar o mundo.
2.2 - A imagem tem em comum com o objeto representado a forma lógica da representação.
2.201 - A imagem representa a realidade porque ela representa uma possibilidade de existência e de não-existência de estados de coisas.
2.202 - A imagem representa uma possibilidade de estado de coisas no espaço lógico.
2.203 - A imagem contém a possibilidade do estado de coisas que ela representa.
2.21 - A imagem concorda ou não com a realidade: ela é fiel ou infiel, verdadeira ou falsa.
2.22 - A imagem representa aquilo que ela representa independentemente de sua verdade ou de sua falsidade; por meio de sua forma de representação.
2.221 - Aquilo que a imagem representa constitui seu sentido.
2.222 - No acordo ou no desacordo do sentido da imagem consiste sua verdade ou sua falsidade.
O signo proposicional
3. A imagem lógica dos fatos constitui o pensamento.
3.001 - "Um estado de coisas é pensável" significa: nos podemos fazer-nos dele uma imagem.
3.01 - A totalidade dos pensamentos verdadeiros constitui uma imagem do mundo.
pensamento.
3.02 - O pensamento contém a possibilidade do estado de coisas que ele pensa. O que é pensável é igualmente possível.
3.03 - Nos não poder1amos pensar nada ilógico porque dessa forma teriamos de pensar ilogicamente.
3.031 - Alguém disse que Deus poderia tudo criar menos aquilo que contrariasse as leis lógicas. Com efeito, nós não poderíamos dizer como seria um mundo "ilógico".
3.12 - Chamo signo proposicional ao signo pelo qual exprimimos o pensamento.
3.144 - É possível descrever situações, impossível entretanto nomeá-las. (Os nomes são como pontos; as proposições são como flechas, elas têm um sentido).
3.202 - Os signos simples empregados nas preposições são chamados nomes.
3.221 - Eu não posso nomear os objetos. Os signos os representam. Eu só posso falar dos objetos. Eu não saberia pronunciá-los. Uma proposição só pode dizer de uma coisa como ela é, não o que ela é.
4.001 - A totalidade das proposições é a linguagem.
4.023 - Por meio da proposição a realidade é fixada enquanto sim ou enquanto não. A realidade é completamente descrita por ela. Assim como a descrição de um objeto se dá segundo as suas propriedade externas, a proposição descreve a realidade segundo suas propriedades internas. A proposição constrói o mundo com a ajuda de andaimes lógicos.
4.116 - Em geral tudo o que pode ser pensado o pode ser claramente. Tudo o que se deixa exprimir, deixa-se claramente.
4.12 - A proposição pode representar a realidade inteira, mas não pode representar o que ela deve ter em comum com a realidade para poder representá-a -- a forma lógica.
Para podermos representar a forma lógica seria preciso nos colocar, com a proposição, fora da lógica; a saber, fora do mundo. O que se exprime na linguagem não podemos expressar por meio dela. A proposição mostra a forma lógica da realidade. Ela a exibe.
4.1212 - O que pode ser mostrado não pode ser dito.
quinta-feira, 2 de julho de 2015
Inverno antigo
Rogel Samuel
É um pequeno poema este de Salvatore Quasimodo. Com o apoio da tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, ensaio uma tradução:
Desejo tuas mãos claras
na penumbra dessa chama:
sabiam a carvalho, rosas,
ou morte. Antigo inverno.
Pássaros buscavam milho
e eram súbito feitos neve;
como palavras.
Um pouco sol, um halo de anjo,
e logo a névoa, as árvores,
e nós, como o ar da manhã.
O poema é obscuro, difícil, como quase tudo que Quasimodo escreveu. Ele era um poeta hermético. As mãos estão em chama, mãos de desejo, mãos secretas, aqueciam no inverno, com ungüento perfumado de madeira e flor. Ou morte, um cheiro de morte. Fora, os pássaros aparecem, vem comer. O frio a neve as palavras. Amanhece? Um pouco de sol sobre as árvores, vence a névoa. E nós? Como o ar da manhã, de manhã o sol é um anjo. Poema difícil, porém belo. Cheio de sugestões, são lembranças? Imagens que passam, em flashes, em cenas desconhecidas, misturadas, compostas como a realidade.
quarta-feira, 1 de julho de 2015
O mar não tem tamanho, tem dimensão.
O mar não tem tamanho, tem dimensão.
Rogel Samuel
Quem consegue entender? Pois disse Dugpa Rinpochê: "Constrói uma ilha para ti e para
aqueles a quem amas, um templo, uma fortaleza inexpugnável... mas deixa a tua porta aberta dia e noite".
Que a porta está aberta, da fortaleza inexpugnável, do castelo, do templo, da ilha.
A porta da ilha é o amplo mar, com suas algas e ilhas e vôo de gaivota.
Toda a vez que penso, que vejo o mar me lembro do poema de Sebastião Norões, que foi meu professor de geografia.
“Eu quero é o meu mar, o mar azul.
Essa incógnita de anil que se destrança
em ânsias de infinito e me circunda
em grave tom de inquietude langue.
O mar de quando eu era, não agora.
Quando as retinas fixavam tredas
a incompreensível mole líquida e convulsa.
E o pensamento convidava longes,
delimitava imprevisíveis rumos
viagens de herói e de mancebo guapo.
Quando as distâncias fomentavam sonhos.
Rebenta em mim essa aspersão tamanha
que a imagem imatura concebeu
de quando o mar era meu, o mar azul.”
O mar é isso, é a glória do espaço da liberdade, das ânsias de liberdade de voar, o mar antigo. O mar de Austrálias e de luzes. Viagens de Ulisses e de mancebos guapos, de heróis e de barcos bêbados de ondas. O mar dos azulejos de amestistas, o mar que era meu, o meu mar, o mar azul.
Nada mais belo do que isso: ser dono do mar, imaginar-se dono do mar. De quando o mar era meu, essa aspersão ampla e tamanha de tudo, essa viagem de longes, de langues, de anil e de esmeraldas balançantes.
O mar não tem tamanho, tem dimensão.
O mar é o amar.
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