terça-feira, 31 de agosto de 2010

PITIGRILLI


Duas horas antes aquele cão de máscara de Beethoven encontrara, sob os pórticos da “Comédie Française”, por trás do monumento a De Musset um cão seu amigo, um “fox-terrier” estúpido como uma rapariga honesta.

Os dois animais tinham-se aproximado, olhando-se nos olhos, e fazendo sinais por algum tempo, com a cauda. Depois um havia dado a precedência ao outro e o outro se tinha voltado, como para dizer:

— Depois de vós, senhor!

Esgotado aquilo que Maupassant chama as cerimônias maçônicas dos cães, sentaram-se um defronte ao outro, e contaram-se as suas peripécias.

O cão da máscara de Beethoven dissera:

— Tu moras na pastelaria da Rua Lépic. Reconheço-te. Parecia-me que não fosses uma cara, ou antes, um cheiro novo. Sempre nos encontrávamos quando eu e o meu criado íamos comprar na tua casa o presunto cozido do meu almoço.

“Agora não estou mais naquela casa. Consegui fugir.

“Que queres? Aquela casa não me agradava mais. Os meus hóspedes eram demasiados ricos, demasiado bons; queriam-me demasiado bem. Devam-me nojo com o seu afeto.”

— Deixavam-te lamber os pratos?

— Isso não, porque é anti-higiênico, dizem eles, deixar que os cães comam nos pratos do dono.

— Preconceitos!

— Têm razão. Eu sei de um cão que, por ter lambido o prato onde comera uma senhorita de dezoito anos, de família distinta, pegou a sífilis.

“Davam-me tudo o que eu queria.

“Não sabes quanto se está mal na abastança!

“Tinha um criado exclusivamente para mim. Dormia em coxins moles, macios, inchados, num quarto escrupulosamente aquecido, no meio de móveis finíssimos que eu me sentia no dever de respeitar, conquanto me deixassem a mais completa liberdade de escolha, entre uma peça e outra.

“Não me faltava nada. Faziam-me contrair a diabete por hipernutrição. Não havia gulodice que não me dessem. Mantinham-me a pastéis de caça, “pemmican” e “plum cake”. Mandavam vir da Inglaterra uns biscoitos especiais. Haviam chegado a eliminar em mim a coisa mais bela: o desejo. Eu não podia desejar mais nada, porque tinha tudo.

“Só desejava uma coisa, que nunca me permitiram: aventuras passageiras com cadelinhas de menor idade, que mostravam interesse por mim, quando eu levava a passeio nos Campos Elísios o meu criado. Mas um cão da minha raça — diziam eles — não pode ter “mésalliances”. E aconteceu-me o que acontece aos príncipes hereditários: estabeleceram épocas fixas para os meus amores, que eu só devia consumar com exemplares femininos da minha raça. Com este fim peregrinei de casa em casa; em toda parte onde se encontrasse uma fêmea de meu tipo, tinha eu que fazer estágios de quinze dias. Estive na casa de uma grande atriz, de um ex-presidente da República, de um embaixador, de um filósofo chinês, de uma “cocotte” célebre.”

— De uma “cocotte”? Deves ter visto boas!

— Não. Vi mais nas casas de famílias decentes. Oh, quantas coisas vi nas que freqüentei! Se soubesses como os homens são diferentes em casa e fora de casa! Tu, que vagas continuamente pelas ruas, imaginarás que as mulheres sejam, em frente de si mesmas, seres delicados, refinados, preciosos como são fora. Oh, iludido! Eu vi-as na intimidade, e afirmo-te que nunca encontrei u’a mulher, por espiritual que fosse, que na solidão do seu quarto, sabendo-se inobservada, não introduzisse no nariz aqueles dedinhos pálidos que parecem destinados a só tocar hóstias santas e pérolas reais.

http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/castidade.html



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