sexta-feira, 30 de setembro de 2011
EUCLIDES DA CUNHA - OS SERTÕES
EUCLIDES DA CUNHA
FOTO DE F. ASZMANN
A TERRA
I . PRELIMINARES. A entrada do sertão. Terra ignota.
Em caminho para Monte Santo. Primeiras impressões.
Um sonho de geólogo.
II . Golpe de vista do alto de Monte Santo. Do alto da Favela.
III . O clima. Higrômetros singulares.
IV . As secas. Hipóteses sobre a sua gênese. As caatingas.
V. Uma categoria geográfica que Hegel não citou. Como se faz um deserto. Como se extingue o deserto. O martírio
secular da terra.
I
O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e
desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas. Mas ao
derivar para as terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo tempo que descamba para a costa oriental
em andares, ou repetidos socalcos, que o despem da primitiva grandeza afastando-o consideravelmente para o interior.
De sorte que quem o contorna, seguindo para o norte, observa notáveis mudanças de relevos: a princípio o traço
contínuo e dominante das montanhas, precintando-o, com destaque saliente, sobre a linha projetante das praias, depois, no
segmento de orla marítima entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, um aparelho litoral revolto, feito da envergadura
desarticulada das serras, riçado de cumeadas e corroído de angras, e escancelando-se em baías, e repartindo-se em ilhas, e
desagregando-se em recifes desnudos, à maneira de escombros do conflito secular que ali se trava entre os mares e a terra;
em seguida, transposto o 15º paralelo, a atenuação de todos os acidentes — serranias que se arredondam e suavizam as
linhas dos taludes, fracionadas em morros de encostas indistintas no horizonte que se amplia; até que em plena faixa costeira
da Bahia, o olhar, livre dos anteparos de serras que até lá o repulsam e abreviam, se dilata em cheio para o ocidente,
mergulhando no âmago da terra amplíssima lentamente emergindo num ondear longínquo de chapadas...
Este facies geográfico resume a morfogenia do grande maciço continental.
Demonstra-o análise mais íntima feita por um corte meridiano qualquer, acompanhando a bacia do S. Francisco.
Vê-se, de fato, que três formações geognósticas díspares, de idades mal determinadas, aí se substituem, ou se entrelaçam,
em estratificações discordantes, formando o predomínio exclusivo de umas, ou a combinação de todas, os traços variáveis
da fisionomia da terra. Surgem primeiro as possantes massas gnaissegraníticas, que a partir do extremo sul se encurvam em
desmedido anfiteatro, alteando as paisagens admiráveis que tanto encantam e iludem as vistas inexpertas dos forasteiros. A
princípio abeiradas do mar progridem em sucessivas cadeias, sem rebentos laterais, até às raias do litoral paulista, feito
dilatado muro de arrimo sustentando as formações sedimentares do interior. A terra sobranceia o oceano, dominante, do
fastígio das escarpas; e quem a alcança, como quem vinga a rampa de um majestoso palco, justifica os exageros descritivos
— do gongorismo de Rocha Pita às extravagâncias geniais de Buckle — que fazem deste país região privilegiada, onde a
natureza armou a sua mais portentosa oficina.
É que, de feito, sob o tríplice aspecto astronômico, topográfico e geológico — nenhuma se afigura tão afeiçoada à Vida.
Transmontadas as serras, sob a linha fulgurante do trópico, vêem-se estirados para o ocidente e norte, extensos chapadões
cuja urdidura de camadas horizontais de grés argiloso, intercaladas de emersões calcárias, ou diques de rochas eruptivas
básicas, do mesmo passo lhes explica a exuberância sem par e as áreas complanadas e vastas. A terra atrai irresistivelmente
o homem, arrebatando-o na própria correnteza dos rios que, do Iguaçu ao Tietê, traçando originalíssima rede hidrográfica,
correm da costa para os sertões, como se nascessem nos mares e canalizassem as suas energias eternas para os recessos das
matas opulentas. Rasgam facilmente aqueles estratos em traçados uniformes, sem talvegues deprimidos, e dão ao conjunto
dos terrenos até além do Paraná a feição de largos plainos ondulados, desmedidos.
Entretanto, para leste a natureza é diversa.
Estereografa-se, duramente, nas placas rígidas dos afloramentos gnáissicos; e o talude dos planaltos dobra-se no socalco
da Mantiqueira, onde se encaixa o Paraíba, ou desfaz-se em rebentos que, após apontarem as alturas de píncaros centralizados
pelo Itatiaia, levam até ao âmago de Minas as paisagens alpestres do litoral. Mas ao penetrar-se este estado nota-se, malgrado
o tumultuar das serranias, lenta descensão geral para o norte. Como nos altos chapadões de São Paulo e do Paraná, todas as
caudais revelam este pendor insensível com derivarem em leitos contorcidos e vencendo, contrafeitas, o antagonismo
permanente das montanhas: o Rio Grande rompe, rasgando-a com a força viva da corrente, a Serra da Canastra, e, norteados
pela meridiana, abrem-se adiante os fundos vales de erosão do Rio das Velhas e do S. Francisco. Ao mesmo tempo, transpostas
as sublevações que vão de Barbacena a Ouro Preto, as formações primitivas desaparecem, mesmo nas maiores eminências,
e jazem sotopostas a complexas séries de xistos metamórficos, infiltrados de veeiros fartos, nas paragens lendárias do ouro.
A mudança estrutural origina quadros naturais mais imponentes que os da borda marítima. A região continua alpestre. O
caráter das rochas, exposto nas abas dos cerros de quartzito, ou nas grimpas em que se empilham as placas de itacolomito
avassalando as alturas, aviva todos os acidentes, desde os maciços que vão de Ouro Branco a Sabará, à zona diamantina
expandindo-se para nordeste nas chapadas que se desenrolam nivelando-se às cimas da Serra do Espinhaço; e esta, apesar da
sugestiva denominação de Eschwege, mal sobressai, entre aquelas lombadas definidoras de uma situação dominante. Dali
descem, acachoantes, para o levante, tombando em catadupas ou saltando travessões sucessivos, todos os rios que do
Jequitinhonha ao Doce procuram os terraços inferiores do planalto arrimados à Serra dos Aimorés; e volvem águas remansadas
para o poente os que se destinam à bacia de captação do S. Francisco, em cujo vale, depois de percorridas ao sul as
interessantes formações calcárias do Rio das Velhas, salpintadas de lagos, solapadas de sumidouros e ribeirões subterrâneos,
onde se abrem as cavernas do homem pré-histórico de Lund, se acentuam outras transições na contextura superficial do solo.
De fato, as camadas anteriores, que vimos superpostas às rochas graníticas, decaem, por sua vez, sotopondo-se a outras,
mais modernas, de espessos estratos de grés.
Novo horizonte geológico reponta com um traço original e interessante. Mal estudado embora, caracteriza-o notável
significação orográfica, porque as cordilheiras dominantes do Sul ali se extinguem, soterradas, numa inumação estupenda,
pelos possantes estratos mais recentes, que as circundam. A terra, porém, permanece elevada, alongando-se em planuras
amplas, ou avultando em falsas montanhas, de denudação, descendo em aclives fortes, mas tendo os dorsos alargados em
plainos inscritos num horizonte de nível, apenas apontoado a leste pelos vértices dos albardões distantes, que perlongam a
costa.
Verifica-se, assim, a tendência para um aplainamento geral.
Porque neste coincidir das terras altas do interior e a depressão das formações arqueanas, a região montanhosa de
Minas se vai prendendo, sem ressaltos, à extensa zona dos tabuleiros do norte.
A Serra do Grão-Mogol, raiando as lindes da Bahia, é o primeiro espécimen dessas esplêndidas chapadas imitando
cordilheiras, que tanto perturbam aos geógrafos descuidados; e as demais que a convizinham, da do Cabral mais próxima, à
da Mata da Corda alongando-se para Goiás, modelam-se de maneira idêntica. Os sulcos de erosão que as retalham são cortes
geológicos expressivos. Ostentam em plano vertical, sucedendo-se a partir da base, as mesmas rochas que vimos se substituírem
em alongado roteiro pela superfície: embaixo os rebentos graníticos decaídos pelo fundo dos vales, em cômoros esparsos; à
meia encosta, inclinadas, as placas xistosas mais recentes; no alto, sobrepujando-as, ou circuitando-lhes os flancos em vales
monoclínicos, os lençóis de grés, predominantes e oferecendo aos agentes meteóricos plasticidade admirável aos mais
caprichosos modelos. Sem linhas de cumeadas, as maiores serranias nada mais são que planuras altas, extensas rechãs
terminando de chofre em encostas abruptas, na molduragem golpeante do regime torrencial sobre o terreno permeável e
móvel. Caindo por ali há séculos as fortes enxurradas, derivando a princípio em linhas divagantes de drenagem, foram
pouco a pouco reprofundando-as, talhando-as em quebradas que se fizeram canyons, e se fizeram vales em declive, até
orlarem de escarpamentos e despenhadeiros aqueles plainos soerguidos. E consoante a resistência dos materiais trabalhados
variaram nos aspectos: aqui apontam, rijamente, sobre as áreas de nível, os últimos fragmentos das rochas enterradas,
desvendando-se, em fraguedos que mal relembram, na altura, o antiqüíssimo “Himalaia brasileiro”, desbarrancado em
desintegração contínua, por todo o curso das idades; adiante, mais caprichosos, se escalonam em alinhamentos incorretos de
menires colossais, ou em círculos enormes, recordando na disposição dos grandes blocos superpostos, em rimas, muramentos
desmantelados de ciclópicos coliseus em ruínas; ou então, pelos visos das escarpas, oblíquos e sobranceando as planuras
que, interpostos, ladeiam, lembram aduelas desconformes, restos da monstruosa abóbada da antiga cordilheira, desabada...
Mas desaparecem de todo em vários pontos.
Estiram-se então planuras vastas. Galgando-as pelos taludes, que as soerguem dando-lhes a aparência exata de tabuleiros
suspensos, topam-se, a centenas de metros, extensas áreas ampliando-se, boleadas, pelos quadrantes, numa prolongação
indefinida, de mares. É a paragem formosíssima dos campos gerais, expandida em chapadões ondulantes — grandes tablados
onde campeia a sociedade rude dos vaqueiros...
Atravessemo-la.
Adiante, a partir de Monte Alto, estas conformações naturais se bipartem: do rumo firme do norte a série do grés figurase
progredir até ao platô atenoso do Açuruá, associando-se ao calcário que aviva as paisagens na orla do grande rio, prendendoas
às linhas dos cerros talhados em diáclase, tão bem expressos no perfil fantástico do Bom Jesus da Lapa; enquanto para
nordeste, graças a degradações intensas (porque a Serra Geral segue por ali como anteparo aos alísios, condensando-os em
diluvianos aguaceiros) se desvendam, ressurgindo, as formações antigas.
Desenterram-se as montanhas.
Reponta a região diamantina, na Bahia, revivendo inteiramente a de Minas, como um desdobramento ou antes um
prolongamento, porque é a mesma formação mineira rasgando, afinal, os lençóis de grés, e alteando-se com os mesmos
contornos alpestres e perturbados, nos alcantis que irradiam da Tromba ou avultam para o norte nos xistos huronianos das
cadeias paralelas de Sincorá.
Deste ponto em diante, porém, o eixo da Serra Geral se fragmenta, indefinido. Desfaz-se. A cordilheira eriça-se de
contrafortes e talhados de onde saltam, acachoando, em despenhos, para o levante, as nascentes do Paraguaçu, e um dédalo
de serranias tortuosas, pouco elevadas mas inúmeras, cruza-se embaralhadamente sobre o largo dos gerais, cobrindo-os.
Transmuda-se o caráter topográfico, retratando o desapoderado embater dos elementos, que ali reagem há milênios entre
montanhas derruídas, e a queda, até então gradativa, dos planaltos começa a derivar em desnivelamentos consideráveis.
Revela-os o S. Francisco, no vivo infletir com que torce para o levante, indicando do mesmo passo a transformação geral da
região.
Esta é mais deprimida e mais revolta.
Cai para os terraços inferiores, entre um tumultuar de morros, incoerentemente esparsos. Último rebento da serra
principal, a da Itiúba reúne-lhe alguns galhos indecisos, fundindo as expansões setentrionais das da Furna, Cocais e Sincorá.
Alteia-se um momento, mas descai logo para todos os rumos: para o norte, originando a corredeira de quatrocentos quilômetros
a jusante do Sobradinho; para o sul, em segmentos dispersos que vão até além do Monte Santo; e para leste, passando sob as
chapadas de Jeremoabo, até se desvendar no salto prodigioso de Paulo Afonso.
E o observador que seguindo este itinerário deixa as paragens em que se revezam, em contraste belíssimo, a amplitude
dos gerais e o fastígio das montanhas, ao atingir aquele ponto estaca surpreendido...
A entrada do sertão
Está sobre um socalco do maciço continental, ao norte.
Demarca-o de uma banda, abrangendo dous quadrantes, em semicírculo, o Rio de S. Francisco; e de outra, encurvando
também para sudeste, numa normal à direção primitiva, o curso flexuoso do Itapicuruaçu. Segundo a mediana, correndo
quase paralelo entre aqueles, com o mesmo descambar expressivo para a costa, vê-se o traço de um outro rio, o Vaza-Barris,
o Irapiranga dos tapuias, cujo trecho de Jeremoabo para as cabeceiras é uma fantasia de cartógrafo. De fato, no estupendo
degrau, por onde descem para o mar ou para jusante de Paulo Afonso as rampas esbarrancadas do planalto, não há situações
de equilíbrio para uma rede hidrográfica normal. Ali reina a drenagem caótica das torrentes, imprimindo naquele recanto da
Bahia facies excepcional e selvagem.
Terra ignota
Abordando-o, compreende-se que até hoje escasseiem sobre tão grande trato de território, que quase abarcaria a Holanda
(9º11’ — 10º20’ de lat. e 4º — 3º, de long. O.R.J.), notícias exatas ou pormenorizadas. As nossas melhores cartas, enfeixando
informes escassos, lá têm um claro expressivo, um hiato, Terra ignota, em que se aventura o rabisco de um rio
problemático ou idealização de uma corda de serras.
É que transpondo o Itapicuru, pelo lado do sul, as mais avançadas turmas de povoadores estacaram em vilarejos minúsculos
— Maçacará, Cumbe ou Bom Conselho — entre os quais o decaído Monte Santo tem visos de cidade: transmontada a Itiúba,
a sudoeste, disseminaram-se pelos povoados que a abeiram acompanhando insignificantes cursos de água, ou pelas raras
fazendas de gado, estremados todos por uma tapera obscura — Uauá; ao norte e a leste pararam às margens do S. Francisco,
entre Capim Grosso e Santo Antônio da Glória.
Apenas naquele último rumo se avantajou uma vila secular, Jeremoabo, balizando o máximo esforço de penetração em
tais lugares, evitados sempre pelas vagas humanas, que vinham do litoral baiano procurando o interior.
Uma ou outra o cortou, rápida, fugindo, sem deixar traços.
Nenhuma lá se fixou. Não se podia fixar. O estranho território, a menos de quarenta léguas da antiga metrópole, predestinava-
se a atravessar absolutamente esquecido os quatrocentos anos da nossa história. Porque enquanto as bandeiras do
sul lhe paravam à beira e envesgando, depois, pelos flancos da Itiúba, se lançavam para Pernambuco e Piauí até ao Maranhão,
as do levante, repelidas pela barreira intransponível de Paulo Afonso, iam procurar no Paraguaçu e rios que lhe demoram ao
sul, linhas de acesso mais praticáveis. Deixavam-no de permeio, inabordável, ignoto.
É que mesmo trilhando o último daqueles rumos, adstritas a itinerário menos longo, as salteava impressionadoramente
o aspecto estranho da terra, repontando em transições imprevistas.
Deixando a orla marítima e seguindo em cheio para o ocidente, tinham, transcorridas poucas léguas, amolentada ou
desinfluída a atração das entradas aventurosas, e extinta a miragem do litoral opulento. Logo a partir de Camaçari as
formações antigas cobrem-se de escassas manchas terciárias, alternando com exíguas bacias cretáceas, revestidas do terreno
arenoso de Alagoinha que mal esgarçam, a leste, as emersões calcárias de Inhambupe. A vegetação em roda transmuda-se,
copiando estas alternativas com precisão de um decalque. Rarefazem-se as matas, ou empobrecem. Extinguem-se, por fim,
depois de lançarem rebentos esparsos pelo topo das serranias; e estas mesmo, aqui e ali, cada vez mais raras, ilham-se ou
avançam em promontório nas planuras desnudas dos campos, onde uma flora característica — arbustos flexuosos
entressachados de bromélias rubras — prepondera exclusiva em largas áreas, mal dominada pela vegetação vigorosa irradiante
da Pojuca sobre o massapé feraz das camadas cretáceas decompostas.
Deste lugar em diante, reaparecem os terrenos terciários esterilizadores, sobre os mais antigos que, entretanto, depois,
dominam em toda a zona centralizada em Serrinha. Os morros do Lopes e do Lajedo aprumam-se, à maneira de disformes
pirâmides de blocos arredondados e lisos; e os que se sucedem, beirando de um e outro lado as abas das serras da Saúde e
da Itiúba, até Vila Nova da Rainha e Juazeiro, copiam-lhes os mesmos contornos das encostas estaladas, exumando a
ossatura partida das montanhas.
O observador tem a impressão de seguir torneando a truncadura malgradada da borda de um planalto.
Calca, de fato, estrada três vezes secular, histórica vereda por onde avançavam os rudes sertanistas nas suas excursões
para o interior.
Não a alteraram nunca.
Não a variou, mais tarde, a civilização, justapondo aos rastros do bandeirante os trilhos de uma via férrea.
Porque o caminho em cuja longura de cem léguas, da Bahia ao Juazeiro, se entroncam numerosíssimos desvios para o
poente e para o sul, jamais comportou, a partir de seu trecho médio, variante apreciável para leste e para o norte.
Calcando-o, em demanda do Piauí, Pernambuco, Maranhão e Pará, os povoadores, consoante vários destinos, dividiamse
em Serrinha. E progredindo para Juazeiro, ou volvendo à direita, pela estrada real do Bom Conselho que desde o século
XVII os levava a Santo Antônio da Glória e Pernambuco — uns e outros contorneavam sempre, evitando-a sempre, a
paragem sinistra e desolada, subtraindo-se a uma travessia torturante.
De sorte que aquelas duas linhas de penetração, que vão interferir o S. Francisco em pontos afastados — Juazeiro e
Santo Antônio da Glória — formavam, desde aqueles tempos, as lindes de um deserto.
Em caminho para Monte Santo
No entanto quem se abalança a atravessá-lo, partindo de Queimadas para nordeste, não se surpreende a princípio.
Recurvo em meandros, o Itapicuru alenta vegetação vivaz; e as barrancas pedregosas do Jacurici debruam-se de pequenas
matas. O terreno, areento e chão, permite travessia desafogada e rápida. Aos lados do caminho ondulam tabuleiros rasos. A
pedra, aflorando em lajedos horizontais, mal movimenta o solo, esgarçando a tênue capa das areias que o revestem.
Vêem-se, porém, depois, lugares que se vão tornando crescentemente áridos.
Varada a estreita faixa de cerrados, que perlongam aquele último rio, está-se em pleno agreste, no dizer expressivo dos
matutos: arbúsculos quase sem pega sobre a terra escassa, enredados de esgalhos de onde irrompem, solitários, cereus
rígidos e silentes, dando ao conjunto a aparência de uma margem de deserto. E o facies daquele sertão inóspito vai-se
esboçando, lenta e impressionadoramente...
Galga-se uma ondulação qualquer — e ele se desvenda ou se deixa adivinhar, ao longe, no quadro tristonho de um
horizonte monótono em que se esbate, uniforme, sem um traço diversamente colorido, o pardo requeimado das caatingas.
Intercorrem ainda paragens menos estéreis, e nos trechos em que se operou a decomposição in situ do granito, originando
algumas manchas argilosas, as copas virentes dos ouricurizeiros circuitam — parênteses breves abertos na aridez geral — as
bordas das ipueiras. Estas lagoas mortas, segundo a bela etimologia indígena, demarcam obrigatória escala ao caminhante.
Associando-se às cacimbas e caldeirões, em que se abre a pedra, são-lhe recurso único na viagem penosíssima. Verdadeiros
oásis, têm, contudo, não raro, um aspecto lúgubre: localizados em depressões, entre colinas nuas, envoltas pelos mandacarus
despidos e tristes, como espectros de árvores; ou num colo de chapada, recortando-se com destaque no chão poento e pardo,
graças à placa verde-negra das algas unicelulares que as revestem.
Algumas denotam um esforço dos filhos do sertão. Encontram-se, orlando-as, erguidos como represas entre as encostas,
toscos muramentos de pedra seca. Lembram monumentos de uma sociedade obscura. Patrimônio comum dos que por ali se
agitam nas aperturas do clima feroz, vêm, em geral, de remoto passado. Delinearam-nos os que se afoitaram primeiro com
as vicissitudes de uma entrada naquelas bandas. E persistem indestrutíveis, porque o sertanejo, por mais escoteiro que siga,
jamais deixa de levar uma pedra que calce as suas junturas vacilantes.
Mas transpostos estes pontos — imperfeita cópia das barragens romanas remanescentes na Tunísia, — entra-se outra
vez nos areais exsicados. E avançando célere, sobretudo nos trechos em que se sucedem pequenas ondulações, todas da
mesma forma e do mesmo modo dispostas, o viajante mais rápido tem a sensação da imobilidade. Patenteiam-se-lhe, uniformes,
os mesmos quadros, num horizonte invariável que se afasta à medida que ele avança. Raras vezes, como no povoado
minúsculo de Cansanção, larga emersão de terreno fértil se recama de vegetação virente.
Despontam vivendas pobres; algumas desertas pela retirada dos vaqueiros que a seca espavoriu; em ruínas, outras;
agravando todas no aspecto paupérrimo, o traço melancólico das paisagens...
Nas cercanias de Quirinquinquá, porém, começa a movimentar-se o solo. O pequeno sítio ali erecto alevanta-se já sobre
alta expansão granítica, e atentando-se para o norte divisa-se região diversa — riçada de vales e serranias, perdendo-se ao
longe em grimpas fugitivas. A Serra de Monte Santo, com um perfil de todo oposto aos redondos contornos que lhe desenhou
o ilustre Martius, empina-se, a pique, na frente, em possante dique de quartzito branco, de azulados tons, em relevo sobre a
massa gnáissica que constitui toda a base do solo. Dominante sobre a várzea que se estende para sudeste, com a linha de
cumeadas quase retilínea, o seu enorme paredão, vincado pelas linhas dos estratos, expostas pela erosão eólia, afigura-se
cortina de muralha monumental. Termina em crista altíssima, extremando-lhe o desenvolvimento no rumo de 13º NE, a
cavaleiro da vila que se lhe erige no sopé. Centraliza um horizonte vasto. Observa-se, então, que atenuados para o sul e leste,
os acidentes predominantes da terra progridem avassalando os quadrantes do norte.
O sítio do Caldeirão, três léguas adiante, ergue-se à margem dessa sublevação metamórfica; e alcançando-o, e transpondoo,
entra-se, afinal, em cheio, no sertão adusto...
Primeiras impressões
É uma paragem impressionadora.
As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos
estupendos. O regime torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas, e embatendo
naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas
daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários,
revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, mal cobertos por uma flora tolhiça — dispondo-se
em cenários em que ressalta, predominante, o aspecto atormentado das paisagens.
Porque o que estas denunciam — no enterroado do chão, no desmantelo dos cerros quase desnudos, no contorcido dos
leitos secos dos ribeirões efêmeros, no constrito das gargantas e no quase convulsivo de uma flora decídua embaralhada em
esgalhos — é de algum modo o martírio da terra, brutalmente golpeada pelos elementos variáveis, distribuídos por todas as
modalidades climáticas. De um lado a extrema secura dos ares, no estio, facilitando pela irradiação noturna a perda instantânea
do calor absorvido pelas rochas expostas às soalheiras, impõe-lhes a alternativa de alturas e quedas termométricas repentinas;
e daí um jogar de dilatações e contrações que as disjunge, abrindo-as segundo os planos de menor resistência. De outro, as
chuvas que fecham, de improviso, os ciclos adurentes das secas, precipitam estas reações demoradas.
As forças que trabalham a terra atacam-na na contextura íntima e na superfície, sem intervalos na ação demolidora,
substituindo-se, com intercadência invariável, nas duas estações únicas da região.
Dissociam-na nos verões queimosos, degradam-na nos invernos torrenciais. Vão do desequilíbrio molecular, agindo
surdamente, à dinâmica portentosa das tormentas. Ligam-se e completam-se. E consoante o preponderar de uma e outra, ou
o entrelaçamento de ambas, modificam-se os aspectos naturais. As mesmas assomadas gnáissicas caprichosamente cindidas
em planos quase geométricos, à maneira de silhares, que surgem em numerosos pontos, dando, às vezes, a ilusão de encontrarse,
de repente, naqueles ermos vazios, majestosas ruinarias de castelos — adiante se cercam de fraguedos, em desordem,
mal seguros sobre as bases estreitas, em ângulo de queda, incumbentes e instáveis, feito loggans oscilantes, ou grandes
desmoronamentos de dólmens; e mais longe desaparecem sob acervos de blocos, com a imagem perfeita desses “mares de
pedra” tão característicos dos lugares onde imperam os regimes excessivos. Pelas abas dos cerros, que tumultuam em roda
— restos de velhíssimas chapadas corroídas — se derramam ora em alinhamentos relembrando velhos caminhos de geleiras,
ora esparsos a esmo, espessos lastros de seixos e lajes fraturadas, delatando idênticas violências. As arestas dos fragmentos,
onde persistem ainda cimentados ao quartzo os cristais de feldspato, são novos atestados desses efeitos físicos e mecânicos
que despedaçando as rochas, sem que se decomponham os seus elementos formadores, se avantajaram ao vagar dos agentes
químicos em função dos fatos meteorológicos normais.
Deste modo se tem a cada passo, em todos os pontos, um lineamento incisivo de rudeza extrema. Atenuando-o em parte,
deparam-se várzeas deprimidas, sedes de antigos lagos, extintos agora em ipueiras apauladas, que demarcam os pousos dos
vaqueiros. Recortam-nas, no entanto, abertos em caixão, os leitos as mais das vezes secos de ribeirões que só se enchem nas
breves estações das chuvas. Obstruídos, na maioria, de espessos lastros de blocos entre os quais, fora das enchentes súbitas,
defluem tênues fios de águas são uma reprodução completa dos uedes que marginam o Saara. Despontam-lhes, em geral,
normais às barrancas, estratos de um talcoxisto azul-escuro em placas brunidas reverberando a luz em fulgurar metálico —
e sobre elas, cobrindo extensas áreas, camadas menos resistentes de argila vermelha, cindidas de veios de quartzo,
interceptando-lhes, discordantes, os planos estratigráficos. Estas últimas formações, silurianas talvez, cobrem de todo as
demais à medida que se caminha para NE e apropriam-se a contornos mais corretos. Esclarecem a gênese dos tabuleiros
rasos, que se desatam, cobertos de uma vegetação resistente, de mangabeiras, até Jeremoabo.
Para o norte, porém, inclinam-se mais fortemente as camadas. Sucedem-se cômoros despidos, de pendores resvalantes,
descaindo em quebradas onde enxurram torrentes periódicas, solapando-os; e pelos seus topos divisam-se, alinhadas em
fileiras, destacadas em lâminas, as mesmas infiltrações quartzosas, expostas pela decomposição dos xistos em que se embebem.
À luz crua dos dias sertanejos aqueles cerros aspérrimos rebrilham, estonteadoramente — ofuscantes, num irradiar
ardentíssimo...
As erosões constantes quebram, porém, a continuidade desses estratos que ademais, noutros pontos, desaparecem sob
as formações calcárias. Mas o conjunto pouco se transmuda. À feição ruiniforme destas, casa-se bem à dos outros acidentes.
E nos trechos em que elas se estiram, planas, pelo solo, desabrigadas de todo ante a acidez corrosiva dos aguaceiros
tempestuosos, crivam-se, escarificadas, de cavidades circulares e acanaladuras fundas, diminutas mas inúmeras, tangenciandose
em quinas de rebordos cortantes, em pontas e duríssimos estrepes que impossibilitam as marchas.
Deste modo, por qualquer vereda, sucedem-se acidentes pouco elevados mas abruptos, pelos quais tornejam os caminhos,
quando não se justapõem por muitas léguas aos leitos vazios dos ribeirões esgotados. E por mais inexperto que seja o
observador — ao deixar as perspectivas majestosas, que se desdobram ao Sul, trocando-as pelos cenários emocionantes
daquela natureza torturada, tem a impressão persistente de calcar o fundo recém-sublevado de um mar extinto, tendo ainda
estereotipada naquelas camadas rígidas a agitação das ondas e das voragens...
Um sonho de geólogo
É uma sugestão empolgante.
Vai-se de boa sombra com um naturalista algo romântico1 imaginando-se que por ali turbilhonaram, largo tempo, na
idade terciária, as vagas e as correntes.
Porque, a despeito da escassez de dados permitindo uma dessas profecias retrospectivas, no dizer elegante de Huxley,
capaz de esboçar a situação daquela zona em idades remotas, todos os caracteres que sumariamos reforçam a concepção
aventurosa.
Alentam-na ainda: o estranho desnudamento da terra; os alinhamentos notáveis em que jazem os materiais fraturados,
orlando, em verdadeiras curvas de nível, os flancos de serranias; as escarpas dos tabuleiros terminando em taludes a prumo,
que recordam falésias; e até certo ponto, os restos da fauna pliocena, que fazem dos caldeirões enormes ossuários de
mastodontes, cheios de vértebras desconjuntadas e partidas, como se ali a vida fosse, de chofre, salteada e extinta pelas
energias revoltas de um cataclismo.
Há também a presunção derivada de situação anterior, exposta em dados positivos. As pesquisas de Fred. Hartt, de fato,
estabelecem, nas terras circunjacentes a Paulo Afonso, a existência de inegáveis bacias cretáceas; e sendo os fósseis que as
definem idênticos aos encontrados no Peru e México e contemporâneos dos que Agassiz descobriu no Panamá — todos
estes elementos se acolchetam no deduzir-se que vasto oceano cretáceo rolou as suas ondas sobre as terras fronteiras das
duas Américas, ligando o Atlântico ao Pacífico. Cobria, assim, grande parte dos estados setentrionais brasileiros, indo bater
contra os terraços superiores dos planaltos, onde extensos depósitos sedimentários denunciam idade mais antiga, o paleozóico
médio.
Então, destacadas das grandes ilhas emergentes, as grimpas mais altas das nossas cordilheiras mal apontavam ao norte,
na solidão imensa das águas...
Não existiam os Andes, e o Amazonas, largo canal entre as altiplanuras das Guianas e as do continente, separava-as,
ilhadas. Para as bandas do sul o maciço de Goiás — o mais antigo do Mundo — segundo a bela dedução de Gerber, o de
Minas e parte do planalto paulista, onde fulgurava, em plena atividade, o vulcão de Caldas, constituíam o núcleo do continente
futuro...
Porque se operava lentamente uma sublevação geral: as massas graníticas alteavam-se ao norte arrastando o conjunto
geral das terras numa rotação vagarosa em torno de um eixo, imaginado por Em. Liais entre os chapadões de Barbacena e a
Bolívia. Simultaneamente, ao abrir-se a época terciária, se realiza o fato prodigioso do alevantamento dos Andes; novas
terras afloram nas águas; tranca-se, num extremo, o canal amazônico, transmudando-se no maior dos rios; ampliam-se os
arquipélagos esparsos, e ganglionam-se em istmos, e fundem-se; arredondam-se, maiores, os contornos das costas; e integrase,
lentamente, a América.
Então os terrenos da extrema setentrional da Bahia, que se resumiam nos cachopos de quartzito de Monte Santo e visos
da Itiúba, esparsos pelas águas, avolumaram-se, num ascender contínuo. Mas nesse vagaroso altear-se, enquanto as regiões
mais altas, recém-desvendadas, se salpintavam de lagos, toda a parte média daquela escarpa permanecia imersa. Uma
corrente impetuosa, de que é forma decaída a atual da nossa costa, enlaçava-a. E embatendo-a longamente, enquanto o resto
do país, ao sul, se erigia já constituído, e corroendo-a, e triturando-a, remoinhando para oeste e arrebatando todos os
materiais desagregados, modelava aquele recanto da Bahia até que ele emergisse de todo, seguindo o movimento geral das
terras, feito informe amontoado de montanhas derruídas.
O regime desértico ali se firmou, então, em flagrante antagonismo com as disposições geográficas: sobre uma escarpa,
onde nada recorda as depressões sem escoamento dos desertos clássicos.
Acredita-se que a região incipiente ainda está preparando-se para a Vida: o líquen ainda ataca a pedra, fecundando a
terra. E lutando tenazmente com o flagelar do clima, uma flora de resistência rara por ali entretece a trama das raízes,
obstando, em parte, que as torrentes arrebatem todos os princípios exsolvidos — acumulando-os pouco a pouco na conquista
da paragem desolada cujos contornos suaviza — sem impedir, contudo, nos estilos longos, as insolações inclementes e as
águas selvagens, degradando o solo.
Daí a impressão dolorosa que nos domina ao atravessarmos aquele ignoto trecho de sertão — quase um deserto — quer
se aperte entre as dobras de serranias nuas ou se estire, monotonamente, em descampados grandes...
II
Do alto de Monte Santo
Do alto da Serra de Monte Santo atentando-se para a região, estendida em torno num raio de quinze léguas, nota-se,
como num mapa em relevo, a sua conformação orográfica. E vê-se que as cordas de serras ao invés de se alongarem para o
nascente, medianas aos traçados do Vaza-Barris e Itapicuru, formando-lhes o divortium aquarum, progridem para o norte.
Mostram-se as serras Grande e do Atanásio, correndo, e a princípio distintas, uma para NO e outra para N e fundindose
na do Acaru, onde abrolham os mananciais intermitentes do Bendegó e seus tributários efêmeros. Unificadas, aliam-se às
de Caraíbas e do Lopes e nestas de novo se embebem, formando-se as massas do Cambaio, de onde irradiam as pequenas
cadeias do Coxomongó e Calumbi, e para o noroeste os píncaros torreantes do Caipã. Obediente à mesma tendência, a do
Aracati, lançando-se a NO, à borda dos tabuleiros de Jeremoabo, progride, descontínua, naquele rumo e, depois de entalhadas
pelo Vaza-Barris em Cocorobó, inflete para o poente, repartindo-se nas da Canabrava e Poço de Cima, que a prolongam.
Todas traçam, afinal, elíptica curva fechada ao sul por um morro, o da Favela, em torno de larga planura ondeante onde se
erigia o arraial de Canudos — e daí para o norte de novo se dispersam e descaem até acabarem em chapadas altas à borda do
S. Francisco.
Deste modo, no ascender para o norte, procurando o chapadão que o Parnaíba escava, aquele talude dos planaltos
parece dobrar-se num ressalto, perturbando toda a área de drenagem do S. Francisco abaixo da confluência do Patamoté,
num traçado de torrentes sem nome, inapreciáveis na mais favorável escala, e impondo ao Vaza-Barris um curso tortuoso do
qual ele se liberta em Jeremoabo, ao infletir para a costa.
Este é um rio sem afluentes. Falta-lhe conformidade com o declive da terra. Os seus pequenos tributários, o Bendegó e
o Caraíbas, volvendo águas transitórias, dentro dos leitos rudemente escavados, não traduzem as depressões do solo. Têm a
existência fugitiva das estações chuvosas. São, antes, canais de esgotamento, abertos a esmo pelos enxurros — ou correntes
velozes que, adstritas aos relevos topográficos mais próximos, estão, não raro, em desarmonia com as disposições orográficas
gerais. São rios que sobem. Enchem-se de súbito; transbordam, reprofundam os leitos, anulando o obstáculo do declive
geral do solo; rolam por alguns dias para o rio principal; e desaparecem, volvendo ao primitivo aspecto de valores em
torcicolos, cheios de pedras, e secos.
O próprio Vaza-Barris, rio sem nascentes em cujo leito viçam gramíneas e pastam os rebanhos, não teria o traçado atual
se corrente perene lhe assegurasse um perfil de equilíbrio, através de esforço contínuo e longo. A sua função como agente
geológico é revolucionária. As mais das vezes cortado, fracionando-se em gânglios estagnados, ou seco, à maneira de larga
estrada poenta e tortuosa, quando cresce, empanzinado, nas cheias, captando as águas selvagens que estrepitam nos pendores,
volve por algumas semanas águas barrentas e revoltas, extinguindo-se logo em esgotamento completo, vazando, como o
indica o dizer português, substituindo-lhe com vantagem a antiga denominação indígena. É uma onda tombando das vertentes
da Itiúba, multiplicando a energia da corrente no apertado dos desfiladeiros, e correndo veloz entre barrancos, ou entalada
em serras, até Jeremoabo.
Vimos como a natureza, em roda, lhe imita o regime brutal — calcando-o em terreno agro, sem os cenários opulentos
das serras e dos tabuleiros ou dos sem-fins das chapadas — mas feito um misto em que tais disposições naturais se baralham,
em confusão pasmosa: planícies que de perto revelam séries de cômoros, retalhados de algares; morros que o contraste das
várzeas faz de grande altura e estão poucas dezenas de metros sobre o solo, e tabuleiros que em sendo percorridos mostram
a acidentação caótica de boqueirões escancelados e brutos. Nada mais dos belos efeitos das denudações lentas, no remodelar
os pendores, no desapertar os horizontes e no desatar — amplíssimos — os gerais pelo teso das cordilheiras, dando aos
quadros naturais a encantadora grandeza de perspectivas em que o céu e a terra se fundem em difusão longínqua e
surpreendedora de cores...
Entretanto, inesperado quadro esperava o viandante que subia, depois desta travessia em que supõe pisar escombros de
terremotos, as ondulações mais próximas de Canudos.
Do alto da Favela
Galgava o topo da Favela. Volvia em volta o olhar, para abranger de um lance o conjunto da terra. — E nada mais
divisava recordando-lhe os cenários contemplados. Tinha na frente a antítese do que vira. Ali estavam os mesmos acidentes
e o mesmo chão, embaixo, fundamente revolto, sob o indumento áspero dos pedregais e caatingas estonadas... Mas a reunião
de tantos traços incorretos e duros — arregoados divagantes de algares, sulcos de despenhadeiros, socavas de bocainas,
criava-lhe perspectivas inteiramente novas. E quase compreendia que os matutos crendeiros, de imaginativa ingênua,
acreditassem que “ali era o céu...”
O arraial, adiante e embaixo, erigia-se no mesmo solo perturbado. Mas vistos daquele ponto, de permeio a distância
suavizando-lhes as encostas e aplainando-os — todos os serrotes breves e inúmeros, projetando-se em plano inferior e
estendendo-se, uniformes, pelos quadrantes, davam-lhe a ilusão de uma planície ondulante e grande.
Em roda uma elipse majestosa de montanhas...
A Canabrava, a nordeste, de perfil abaulado e simples; a do Poço de Cima, próxima, mais íngreme e alta; a de Cocorobó,
no levante, ondulando em seladas, dispersa em esporões; as vertentes retilíneas do Calumbi ao sul; as grimpas do Cambaio,
no correr para o poente; e, para o norte, os contornos agitados do Caipã — ligam-se e articulam-se no infletir gradual
traçando, fechada, a curva desmedida.
Vendo ao longe, quase de nível, trancando-lhe o horizonte, aquelas grimpas altaneiras, o observador tinha a impressão
alentadora de se achar sobre platô elevadíssimo, páramo incomparável repousando sobre as serras.
Na planície rugada, embaixo, mal se lobrigavam os pequenos cursos d’água, divagando, serpeantes...
Um único se distinguia, o Vaza-Barris. Atravessava-a, torcendo-se em meandros. Presa numa dessas voltas via-se uma
depressão maior, circundada de colinas... E atulhando-a, enchendo-a toda de confusos tetos incontáveis, um acervo enorme
de casebres.
III
O clima
Dos breves apontamentos indicados, resulta que os caracteres geológicos e topográficos, a par dos demais agentes
físicos, mutuam naqueles lugares as influências características de modo a não se poder afirmar qual o preponderante.
Se, por um lado, as condições genéticas reagem fortemente sobre os últimos, estes, por sua vez, contribuíram para o
agravamento daquelas; — e todas persistem nas influências recíprocas. Deste perene conflito feito num círculo vicioso
indefinido, ressalta a significação mesológica do local. Não há abrangê-la em todas as modalidades. Escasseiam-nos as
observações mais comuns, mercê da proverbial indiferença com que nos volvemos às cousas desta terra, com uma inércia
cômoda de mendigos fartos.
Nenhum pioneiro da ciência suportou ainda as agruras daquele rincão sertanejo, em prazo suficiente para o definir.
Martius por lá passou, com a mira essencial de observar o aerólito, que tombara à margem do Bendegó e era já, desde
1810, conhecido nas academias européias, graças a F. Mornay e Wollaston. Rompendo, porém, a região selvagem, desertus
australis, como a batizou, mal atentou para a terra recamada de uma flora extravagante, silva horrida no seu latim alarmado.
Os que o antecederam e sucederam, palmilharam, ferretoados da canícula, as mesmas trilhas rápidas, de quem foge. De sorte
que sempre evitado, aquele sertão, até hoje desconhecido, ainda o será por muito tempo.
O que se segue são vagas conjecturas. Atravessamo-lo no prelúdio de um estio ardente e, vendo-o apenas nessa quadra,
vimo-lo sob o pior aspecto. O que escrevemos tem o traço defeituoso dessa impressão isolada, desfavorecida, ademais, por
um meio contraposto à serenidade do pensamento, tolhido pelas emoções da guerra. Além disto os dados de um termômetro
único e de um aneróide suspeito, misérrimo arsenal científico com que ali lidamos, nem mesmo vagos lineamentos darão de
climas que divergem segundo as menores disposições topográficas, criando aspectos díspares entre lugares limítrofes. O de
Monte Santo, por exemplo, que é, ao primeiro comparar, muito superior ao de Queimadas, diverge do dos lugares que lhe
demoram ao norte, sem a continuidade que era lícito prever de sua situação intermédia. A proximidade das massas montanhosas
torna-o estável, lembrando um regime marítimo em pleno continente: escala térmica oscilando em amplitudes insignificantes;
firmamento onde a transparência dos ares é completa e a limpidez inalterável; e ventos reinantes, o SE no inverno e o NE no
estio — alternando-se com rigorismo raro. Mas está insulado. Para qualquer das bandas, deixa-o o viajante num dia de
viagem. Se vai para o norte, salteiam-se transições fortíssimas: a temperatura aumenta; carrega-se o azul dos céus; embaciamse
os ares: e as ventanias rolam desorientadamente de todos os quadrantes — ante a tiragem intensa dos terrenos desabrigados,
que dali por diante se estiram. Ao mesmo tempo espelha-se o regime excessivo: o termômetro oscila em graus
disparatados passando, já em outubro, dos dias em 35º à sombra para as madrugadas frias.
No ascender do verão acentua-se o desequilíbrio. — Crescem a um tempo as máximas e as mínimas, até que no fastígio
das secas transcorram as horas num intermitir inaturável dos dias queimosos e noites enregeladas.
A terra desnuda tendo contrapostas, em permanente conflito, as capacidades emissiva e absorvente dos materiais que a
formam, do mesmo passo armazena os ardores das soalheiras e deles se esgota, de improviso. Insola-se e enregela-se, em 24
horas. Fere-a o sol e ela absorve-lhe os raios, e multiplica-os, e reflete-os, e refrata-os, num reverberar ofuscante: pelo topo
dos cerros, pelo esbarrancado das encostas, incendeiam-se as acendalhas da sílica fraturada; rebrilhantes, numa trama vibrátil
de centelhas; a atmosfera junto ao chão vibra num ondular vivíssimo de bocas de fornalha em que se pressente visível, no
expandir das colunas aquecidas, a efervescência dos ares; e o dia, incomparável no fulgor, fulmina a natureza silenciosa, em
cujo seio se abate, imóvel, na quietude de um longo espasmo, a galhada sem folhas da flora sucumbida.
Desce a noite, sem crespúsculo, de chofre — um salto da treva por cima de uma franja vermelha do poente — e todo
este calor se perde no espaço numa irradiação intensíssima, caindo a temperatura de súbito, numa queda única, assombrosa...
Ocorrem, todavia, variantes cruéis. Propelidas pelo nordeste, espessas nuvens, tufando em cumulus, pairam ao entardecer
sobre as areias incendidas. Desaparece o Sol e a coluna mercurial permanece imóvel, ou, de preferência, sobe. A noite
sobrevém em fogo; a terra irradia como um Sol escuro, porque se sente uma dolorosa impressão de faúlhas invisíveis; mas
toda a ardência reflui sobre ela, recambiada pelas nuvens. O barômetro cai, como nas proximidades das tormentas; e mal se
respira no bochorno inaturável em que toda a adustão golfada pela soalheira se concentra numa hora única da noite.
Por um contraste explicável, este fato jamais sucede nos paroxismos estivais das secas, em que prevalece a intercadência
de dias esbraseados e noites frigidíssimas, agravando todas as angústias dos martirizados sertanejos.
Copiando o mesmo singular desequilíbrio das forças que trabalham a terra, os ventos ali chegam, em geral, turbilhonando
revoltos, em rebojos largos. E, nos meses em que se acentua, o nordeste grava em tudo sinais que lhe recordam o rumo.
Estas agitações dos ares desaparecem, entretanto, por longos meses, reinando calmarias pesadas — ares imóveis sob a
placidez luminosa dos dias causticantes. Imperceptíveis exercem-se, então, as correntes ascensionais dos vapores aquecidos
sugando à terra a umidade exígua; e quando se prolongam esboçando o prelúdio entristecedor da seca, a secura da atmosfera
atinge a graus anormalíssimos.
Higrômetros singulares
Não a observamos através do rigorismo de processos clássicos, mas graças a higrômetros inesperados e bizarros.
Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneiro frouxo de
tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham
circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores
rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira
alta, sobranceando a vegetação franzina.
O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão e protegido por ela — braços largamente abertos, face volvida
para os céus — um soldado descansava.
Descansava... havia três meses.
Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da Mannlicher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a
farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta
pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido.
Não compartira, por isto, a vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez
juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão:
livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos,
rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes...
E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de
um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme — o mais
vulgar dos trágicos analistas da matéria — lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante,
numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares.
Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimens empalhados, de museus. O pescoço apenas mais alongado
e fino, as pernas ressequidas e o arcabouço engelhado e duro.
À entrada do acampamento, em Canudos, um deles, sobre todos, se destacava impressionadoramente. Fora a montada
de um valente, o alferes Wanderley; e abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro. Ao resvalar, porém, estrebuchando
malferido, pela rampa íngreme, quedou, adiante, a meia encosta, entalado entre fraguedos. Ficou quase em pé, com as patas
dianteiras firmes num ressalto da pedra... E ali estacou feito um animal fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase
curvetear, no último arremesso da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as
rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas crinas ondulantes...
Quando aquelas lufadas, caindo a súbitas, se compunham com as colunas ascendentes, em remoinhos turbilhonantes, à
maneira de minúsculos ciclones, sentia-se, maior, a exsicação do ambiente adusto; cada partícula de areia suspensa do solo
gretado e duro irradiava em todos os sentidos, feito um foco calorífico, a surda combustão da terra.
Fora disto — nas longas calmarias, fenômenos óticos bizarros.
Do topo da Favela, se a prumo dardejava o Sol e a atmosfera estagnada imobilizava a natureza em torno, atentando-se
para os descampados, ao longe, não se distinguia o solo.
O olhar fascinado perturbava-se no desequilíbrio das camadas desigualmente aquecidas, parecendo varar através de um
prisma desmedido e intáctil, e não distinguia a base das montanhas, como que suspensas. Então, ao norte da Canabrava,
numa enorme expansão dos plainos perturbados, via-se um ondular estonteador; estranho palpitar de vagas longínquas; a
ilusão maravilhosa de um seio de mar, largo, irisado, sobre que caísse, e refrangesse, e ressaltasse a luz esparsa em cintilações
ofuscantes...
IV
As secas
Marcadores:
EUCLIDES DA CUNHA - OS SERTÕES
OS SERTÕES de EUCLIDES DA CUNHA
FOTO DE F. ASZMANN
O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas. Mas ao derivar para as terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo tempo que descamba para a costa oriental em andares, ou repetidos socalcos, que o despem da primitiva grandeza afastando-o consideravelmente para o interior.
De sorte que quem o contorna, seguindo para o norte, observa notáveis mudanças de relevos: a princípio o traço contínuo e dominante das montanhas, precintando-o, com destaque saliente, sobre a linha projetante das praias, depois, no segmento de orla marítima entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, um aparelho litoral revolto, feito da envergadura desarticulada das serras, riçado de cumeadas e corroído de angras, e escancelando-se em baías, e repartindo-se em ilhas, e desagregando-se em recifes desnudos, à maneira de escombros do conflito secular que ali se trava entre os mares e a terra; em seguida, transposto o 15º paralelo, a atenuação de todos os acidentes — serranias que se arredondam e suavizam as linhas dos taludes, fracionadas em morros de encostas indistintas no horizonte que se amplia; até que em plena faixa costeira da Bahia, o olhar, livre dos anteparos de serras que até lá o repulsam e abreviam, se dilata em cheio para o ocidente, mergulhando no âmago da terra amplíssima lentamente emergindo num ondear longínquo de chapadas...
quarta-feira, 28 de setembro de 2011
NATURAIS DE MANAUS
Product Description
Fonte: Wikipedia. Páginas: 50. Capítulos: Rogel Samuel, Ulysses Bittencourt, Antonio Pizzonia, José Aldo, Caio Fábio D'Araújo Filho, Aurélio Michiles, Antônio Calmon, Delano Riker, Milton Hatoum, Ronaldo Souza, Kid Mahall, Gilmar Britto, Gilberto Mestrinho, Agnello Bittencourt, Carlos Souza, José Augusto Branco, Artur César Ferreira Reis, Vivaldo Lima Filho, Marcelo Mourão Gomes, Daniel Pellizzari, Fábio Bala, Arthur Virgílio Neto, Malvino Salvador, Ana Lúcia Torre, Hiziel de Souza Soares, Adrino Aragão, Aníbal Beça, Jefferson Peres, Helder Agostini, Marco Antônio Chico Preto, Larissa Ramos, Manoel Santiago, Fábio Pereira de Lucena Bittencourt, Serafim Corrêa, Samuel Benchimol, Paulino de Brito, José Bernardo Cabral, Eliana Printes, José Kairala, Chiquilito Erse, Elísio de Albuquerque, José Ricardo dos Santos Silva, Leopoldo Peres Sobrinho, Manoel Henriques Ribeiro, Luiz Ruas, Francisco Xavier de Albuquerque, Edson Piola, Cinthia Régia Gomes do Livramento, Emanuel Bouzon, Claudio Santoro, Gilmar Popoca, Astrid Cabral, Sandro Viana, Manoel Severiano Nunes, José Melo de Oliveira, Jorge de Morais, Leila Silva, Jefferson Praia, João Bosco Ramos de Lima, Raimundo Gomes de Araújo Parente, Róbson Ferreira da Silva, Angelus Figueira, Roberto Gesta de Melo, Ivens Bastos de Araújo, Márcio Souza, Vinícius Cantuária, Priscila Riker, Paulo Emmanuel, Luiz Bacellar, Therezinha Ruiz, Ninimbergue dos Santos Guerra, Marcelo Serafim, Josué Neto, Belarmino Lins, Gabrielle Costa de Sousa, Eduardo Koiak, Danielle Costa de Souza, Jacson Damasceno Rodrigues, José das Graças Procópio da Silveira, Conceição Freitas, Wilson Lisboa, Artur Virgílio Filho, Sabino Castelo Branco, Walzenir Falcão, Júlio Barata, Paulo Jobim Filho, Valéria Santarém Lira, Djalma Limongi Batista, Petrarca Maranhão, Cosme Alves Netto, Andrezza Chagas, Benjamin Sanches. Excerto: Rogel Samuel (Manaus, 2 de janeiro de 1943) é um ensaísta, poeta, crítico literário e romancista brasileiro. Natural do Estado do Amazonas,...
À VENDA EM amazon.co.uk
Ben Jonson
O LAMENTO DE ECO POR NARCISO
Lenta, água fresca, qual minha lágrima salgada;
Porém mais lenta ainda, ó fraca fonte boa;
Ouve, a música transporta a voz magoada;
Ela chora a separação enquanto entoa:
Definhai ervas e flores;
Desabai chuvas de dores,
Beleza, nossa nunca fostes;
Oh, antes fosse minha sina,
Qual neve liquefeita em costa de colina,
Cair em gotas, gota a gota:
Da natureza o orgulho é um narciso sem vida.
- Ben Jonson ((Inglaterra,1572-1637)
terça-feira, 27 de setembro de 2011
HUMBERTO DE CAMPOS - MEMÓRIAS 8
HUMBERTO DE CAMPOS - MEMÓRIAS 8
TIO FELICIANO
TIO Feliciano – Feliciano Gomes de Farias Veras –, a quem conheci em Parnaíba, foi, parece, o primeiro da família que ali aportou. Estivera, antes, no Maranhão, no comércio. Acumulara pequeno capital e fora estabelecer-se, ainda solteiro, naquela cidade piauiense. À medida que juntava dinheiro, comprava prédios. Ao fim de algum tempo era o maior proprietário urbano, recolhendo mensalmente um rendimento apreciável. Aproximando-se a velhice, abandonou o comércio e foi nomeado tesoureiro da Alfândega. Aposentou-se, afinal, nesse cargo, e recolheu-se à sua grande quinta, nos Campos, da qual tirava, ainda, alguma renda, com a verba de cocos, mangas e cajus. Era tido, por isso, como usurário, quando não era senão um homem prático e precavido, que se não sente na obrigação de dar a estranhos aquilo que lhe pertence. Dizia-se que passava a noite com o lápis e um pedaço de papel debaixo da rede, fazendo um traço cada vez que escutava, entre o barulho do vento no coqueiral, um estrondo na terra, e que, pela manhã, ordenava ao criado:
– Ó seu João! Vá juntar 22 cocos que caíram esta noite!
Casou-se. Eà história do seu casamento, contada por ele com a sua ironia impiedosa e com a sua voz de velho tenor fatigado, não faltava graça nem pitoresco:
– Esta senhora – começava, referindo-se à mulher, a quem não dava senão este tratamento respeitoso, mas que sublinhava com um tom de sar-casmo inclemente – esta senhora havia nascido na fartura e na opulência. Quando veio ao mundo, foi lavada em bacia de prata, na qual foram ati¬rados anéis e outras joias de ouro e brilhante, para que tivesse felicidade e fortuna. Esta senhora gostou de mim, e eu dela. Mas o pai e a mãe estavam esperando o imperador Carlos Magno ou um dos Doze Pares de França para lhe dar a filha em casamento. Quem era, meu caro senhor, quem era o pobre sr. Feliciano Veras para casar com a filha do ilustre sr. Mirandinha?
Essa oposição despertou nesta senhora o desejo de contrariar a família. Já era teimosa nesse tempo. Ocerto é que o sr. Feliciano Veras contratou uns remadores de confiança, alugou uma canoa que ficou ali no porto dos Tucuns, e foi raptar a filha do ilustre sr. Mirandinha... Mal o sr. Feliciano Veras apareceu no canto da rua, esta senhora saiu de casa e deitou a correr no rumo dos Tucuns. Tinha mais pressa em ser raptada do que eu em raptá-la. Corria tanto que eu quase não conseguia alcançá-la. Tomamos a canoa e subimos o rio. Pela madrugada desembarcamos em um casebre de palha desabitado, num braço do Parnaíba que eu nem sei mais aonde fica. Despachei os homens e fiquei só, com esta senhora. Quando amanheceu, vimos nas paredes do casebre pedaços de peixe seco, enfiados na palha. Lavei o peixe no rio, assei, e foi esse o nosso banquete de núpcias. No dia seguinte fomos casar em Araioses... Edesde esse dia, meu caro senhor, lá se foi o sossego da vida do sr. Feliciano Veras!...
Alto, forte, gordo, moreno, olhos azuis, cabeça quase inteiramente branca, mas sem o menor sinal de calvície – estigma que não assinalou jamais nenhum dos Veras –, tio Feliciano vivia, então, a sua vida de capitalista. Na sua chácara dos Campos, a casa confortável possuía um alpendre vasto e aberto, deitando para o jardim estrelado de rosas. Era ali, numa rede larga, que ele, o camisolão de dormir passado por cima da calça de brim pardo, consumia, antes de se aposentar, todas as suas tardes, lendo e bufando até anoitecer. Assinante de diversos jornais do Rio de Janeiro e do Maranhão, estava sempre ao corrente dos acontecimentos políticos e familiarizado com os nomes mais em evidência nas letras do país e do mundo. Eera aí que passava o dia inteiro, já depois de aposentado, e dava audiência, proferindo com humorismo sentenças bizarras, fora da lei mas dentro do bom senso e do bom humor. Quando o fizeram delegado de Polícia, um dia, apareceu-lhe um caboclo:
– Seu coronel, eu venho me queixar contra o meu vizinho o Antô¬nio Malaquias.
– Que fez o Antônio Malaquias, meu amigo?
– Tocou fogo no meu roçado.
Meu tio voltou-se para o interior da casa, pedindo uma caixa de fósforos. Trouxeram-lha. Eele, para o queixoso:Me mó r i a s 91
– Aqui está, meu amigo. Leve esta caixa de fósforos, e, por minha conta, toque fogo no roçado do Malaquias!
O seu tormento de toda a vida foi o conflito entre a sua misantropia e a afeição que a mulher dedicava aos parentes. Sem filhos, sem relações sociais que o caráter do marido não permitia, a senhora, pianista exímia, sentia, evidentemente, necessidade de desafogo, para o espírito e para o coração. Buscava-o, naturalmente, na intimidade dos seus, atraindo-os para a sua companhia. Ele, porém, não compreendia isso. E desforrava-se, nas suas palestras pitorescas e coloridas, com ironias e ditos joviais, emitidos sem sorrir, e falando sempre alto, e soprando, como quem chega na carreira, cansado. Conta-se que, certa vez, um dos cunhados que se achava no Maranhão, lhe telegrafou, urgente: “Apareceu aqui epidemia febre amarela. Sigo aí primeiro vapor”. Meu tio leu o aviso, tomou um pedaço de papel e respondeu, no mesmo instante: “Não venha. Aqui grassando peste bubônica”. E soprou com força, para desabafar.
Não podendo mais suportar a cidade e as relações que a vida urbana determina, entregou o velho Feliciano Veras a um dos parentes da mulher a chácara de Parnaíba, e embarcou para a vila de Araioses, onde mandou construir uma pequena casa de moradia. Elegeram-no prefeito municipal, e ele prestou consideráveis serviços à localidade, mandando edificar o mercado com dinheiro quase todo do seu bolso, pois que ele era mais rico do que o município.
– Ah, meu amigo – contava-me ele, mais tarde, no Rio de Janeiro –, eu nem lhe digo nada! Promovi uma festa para inaugurar o mercado. Mandei contratar uma banda de música de Parnaíba e comprar uma bandeira verde-amarela no Maranhão. E o meu maior trabalho, meu amigo, consistiu em convencer as caboclas de que não se dançava o Hino Brasileiro nem se podia fazer saia com aquela chita do pavilhão nacional!...
A sua permanência em Araioses não foi, todavia, demorada. Vivia lá sossegado, e quase feliz, entre gente simples, quando lhe surgiram visitas de Parnaíba, amigas e parentes da senhora, que não tinham notícias dela. Tímido como quase todos os ironistas, meu tio não fechou a porta. Recebeu-os. Dias depois, porém, entregava a casa aos visitantes, e, mandando construir outra, com apenas um quarto e uma cozinha em uma pequena ilha solitária do delta do Parnaíba, transferiu-se para aí com a esposa, indo viver, os dois, no mais absoluto isolamento. Opróprio vaqueiro residia em uma ilha próxima. Naquela em que ele morava só havia dois seres humanos: ele e a mulher. Quando algum parente ou amigo aparecia por lá a negócio, sob a condição de regressar no mesmo dia, era infalível a sua declaração:
– Daqui não saio senão puxado por Deus pelo cós da calça. Eaqui ficarei até o dia em que ouvir o canto do galo do meu vizinho... Não quero sair nem morto. Se aqui morrer, enterrem-me no pátio da casa, em pé, e de braços abertos. Depois, abandonem a ilha. Quero o silêncio! Quero a paz! Quero a solidão!
E soprava:
– Ufff!... Ufff!...
Um dia, o rio começou a encher, a subir, a transbordar. Os irmãos residentes em Parnaíba lembraram-se do velho misantropo e tratam de ir em seu socorro. Meu tio Franklin toma uma lancha e ruma para a ilha solitária. Aágua está a poucos metros da casa, mas o rebelado não aceita o auxílio:
– Não vou, meu amigo; não vou! – dizia, soprando. – Só sairei daqui quando puser um pé no batente da porta e outro na proa da canoa... Se quiser fundear a sua lancha ao largo, pode fundear. Mas daqui não saio.
E não saiu. O rio chegou ao pátio da casa, devastando tudo com a sua correnteza sinistra e gorgolejante. Mas o velho coronel Feliciano preferia morrer nas águas barrentas do Parnaíba a sofrer a intimidade impertinente dos que se metiam na sua casa.
Em 1915, estava ele no Rio de Janeiro, onde viera submeter a senhora a uma intervenção cirúrgica. Nessa viagem gastou duas ou três dezenas de contos de réis, alguns dos quais com o carro de fogo, nome que ele dava, pitorescamente, ao automóvel. Integrou-se na civilização. Arejou o espírito, atormentado por quarenta e tantos anos de cizânia doméstica. E regressou para Parnaíba, instalando-se, de novo, na sua chácara dos Campos.
A viagem fora-lhe, porém, fatal. O conhecimento de uma grande cidade, os exemplos que vira na pensão de que fora hóspede, e os conselhos recebidos daqueles que o marido hostilizava a vida inteira, deram ânimo à pobre e enferma senhora para romper com o velho companheiro.
Em Parnaíba, separaram-se, vivendo cada um em um lado da casa: ela, com os parentes; ele, sozinho. Em torno do ancião septuagenário uivaram todos os ódios e insultos. Ao fim de dois anos de velhice atormentada, ela morria. Quando o corpo estava pronto para ser conduzido ao cemitério, o médico, seu sobrinho e meu primo, Dr. Mirocles Veras, foi convidá-lo:
– Meu tio, o enterro de minha tia já vai sair... Osenhor não quer despedir-se dela?
– Não, meu amigo; muito obrigado... – respondeu no seu leito de doente.
E soprando, na sua dispneia de cardíaco:
– Já me havia despedido dela... Despedi-me em vida.
Ela morreu, e ele não a viu. O enterro saiu da mesma casa em que as duas almas agonizavam separadamente há dois anos, e ele não o acompanhou, nem quis olhar. Dias depois, chegava, porém, a sua vez. As síncopes, alarmantes, sucediam-se. Recuperando, de uma destas, os sentidos, pôs-se a recitar:
– “Quem passou... pela vida... em branca nuvem... e em plácido... dossel... adormeceu...”.
Outra síncope lhe interceptou a voz. Não concluiu. No dia seguinte saía da mesma casa em que morrera a mulher, e pela mesma porta, outro caixão.
Era o dele.
LIMA BARRETO - As enchentes
As chuvaradas de verão, quase todos os anos, causam no nosso Rio de Janeiro, inundações desastrosas.
Além da suspensão total do tráfego, com uma prejudicial interrupção das comunicações entre os vários pontos da cidade, essas inundações causam desastres pessoais lamentáveis, muitas perdas de haveres e destruição de imóveis.
De há muito que a nossa engenharia municipal se devia ter compenetrado do dever de evitar tais acidentes urbanos.
Uma arte tão ousada e quase tão perfeita, como é a engenharia, não deve julgar irresolvível tão simples problema.
O Rio de Janeiro, da avenida, dos squares, dos freios elétricos, não pode estar à mercê de chuvaradas, mais ou menos violentas, para viver a sua vida integral.
Como está acontecendo atualmente, ele é função da chuva. Uma vergonha!
Não sei nada de engenharia, mas, pelo que me dizem os entendidos, o problema não é tão difícil de resolver como parece fazerem constar os engenheiros municipais, procrastinando a solução da questão.
O Prefeito Passos, que tanto se interessou pelo embelezamento da cidade, descurou completamente de solucionar esse defeito do nosso Rio.
Cidade cercada de montanhas e entre montanhas, que recebe violentamente grandes precipitações atmosféricas, o seu principal defeito a vencer era esse acidente das inundações.
Infelizmente, porém, nos preocupamos muito com os aspectos externos, com as fachadas, e não com o que há de essencial nos problemas da nossa vida urbana, econômica, financeira e socia
Vida urbana, 19-1-1915
Lima Barreto"
(http://www.brasilcultura.com.br/cultura/as-enchentes/)
segunda-feira, 26 de setembro de 2011
ALDA LARA
Mãe Negra" - José Bernardo Salazar
Museu de Arte do Parlamento de São Paulo
Pela estrada desce a noite
Mãe-Negra, desce com ela…
Nem buganvílias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guisos,
nas suas mãos apertadas.
Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.
Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro…
Tem voz de noite, descendo,
de mansinho, pela estrada…
Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?…
Que é feito desses meninos
que ela ajudou a criar?…
Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?…
Mãe-Negra não sabe nada…
Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo
Mãe-Negra!…
Os teus meninos cresceram,
e esqueceram as histórias
que costumavas contar…
Muitos partiram p’ra longe,
quem sabe se hão-de voltar!…
Só tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaço,
bem quieta bem calada.
É a tua a voz deste vento,
desta saudade descendo,
de mansinho pela estrada.
Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque, nasceu em Benguela, Angola, a 9 de Junho de 1930 e faleceu em Cambambe a 30 de Janeiro de 1962.
T. S. ELIOT
As palavras se movem, a música se move
As palavras se movem, a música se move
Apenas no tempo; mas só o que vive
Pode morrer. As palavras, após a fala, alcançam
o silêncio. Apenas pelo modelo, pela forma,
As palavras ou a música podem alcançar
O repouso, como um vaso chinês que ainda se move
Perpetuamente em seu repouso.
Não o repouso do violino, enquanto a nota perdura,
Não apenas isto, mas a coexistência,
Ou seja, que o fim precede o princípio,
E que o fim e o princípio sempre estiveram lá
Antes do princípio e depois do fim.
E tudo é sempre agora. As palavras se distendem,
estalam e muita vez se quebram, sob a carga,
Sob a tensão, tropeçam, escorregam, perecem,
Apodrecem com a imprecisão, não querem manter-se no lugar,
Não querem ficar quietas. Vozes estridentes,
Irritadas, zombeteiras, ou apenas tagarelas,
Sem cessar as acuam. A Palavra no deserto
É mais atacada pelas vozes da tentação,
A sombra soluçante da funérea dança,
O clamoroso lamento da quimera inconsolada.
Tradução de Ivan Junqueira
colocado,junto com o original, em http://nothingandall.blogspot.com/
domingo, 25 de setembro de 2011
EDGAR MORIN
À 90 ans il est l’intellectuel français le plus reconnu à l’étranger, docteur honoris causa de 28 universités à travers le monde ! Il n’a pas été facile de caler un rendez-vous dans son agenda de grand voyageur. Edgar Morin nous reçoit chez lui à Paris en plein déménagement. Les souvenirs remontent sans brouiller sa curiosité pour le monde.
De retour du Maroc, vous partez bientôt au Brésil. Êtes-vous souvent en voyage ?
En ce moment, je suis plutôt en déménagement, car je dois quitter mon appartement. C’est aussi un autre voyage. Quitter un lieu où il y a tellement de souvenirs qui me lient ! Partir c’est mourir un peu, alors il faut ressusciter après. Cette année j’ai 90 ans, et tous les dix ans, quelque chose change dans ma vie, quelque chose meurt et quelque chose renaît. Quand j’avais dix ans, en 1931, ma mère est morte, quand j’ai eu vingt ans, j’ai pris le risque mortel de la Résistance. À trente ans, je suis rentré au CNRS. Je ne vais pas vous faire toute la liste, mais tous les dix ans ma vie change.
Une définition du voyage ?
Le voyage c’est surtout le décentrement, c’est à dire regarder d’une autre façon l’Hexagone. En restant en France, on est prisonnier d’une vision close, on ne se voit pas « vu de loin ». L’idée est de retrouver ce que faisait Montesquieu dans les Lettres Persanes, essayer de se voir avec le regard des autres.
Est-ce que vous voyagez encore pour le simple plaisir ?
Je lie mon plaisir à mes voyages. Invité à des conférences dans le monde entier, j’ai le plaisir d’exprimer mes idées, mais aussi de découvrir quelque chose qui me touche, m’émeut. Pas seulement la beauté des paysages, mais aussi la bonté des gens, la vitalité des peuples, la nourriture. Je crois que je suis amoureux du monde parce que partout où j’ai été, j’ai trouvé des voluptés, des ivresses, des joies, des émerveillements. … AR08
Magie maya au quai Branly
Magie maya au quai Branly
Au musée du Quai-Branly, 160 pièces des collections nationales du Guatemala éclairent d’un jour nouveau l’histoire de cette civilisation. A découvrir jusqu'au 2 octobre.
photos: cc Ilhuicamina
texte: VINCENT NOCE
Au Quai-Branly, deux jumeaux de la mythologie maya, entourés du dieu de la pluie et de monstres cosmiques, sont portés par les flots. D’un tourbillon surgit la tête de leur père décapité, vomissant une vague de sang. Ces images modelées en stuc ont été extraites de la jungle, il y a trois ans à peine, au nord du Guatemala, où se joue en ce moment la plus excitante exploration des Amériques. Exceptionnellement, le musée national a prêté à son homologue parisien 160 pièces pour évoquer deux mille années d’une histoire qui doit désormais être sérieusement révisée à la lumière de ces découvertes.
Ainsi, relate l’archéologue américain Richard Hansen, cette frise confirme-t-elle une légende rapportée par les missionnaires espagnols un millénaire et demi plus tard, mais dont l’authenticité a été sérieusement mise en doute. «Longtemps, les Mayas de l’époque étaient pratiquement assimilés à une population primitive de chasseurs-cueilleurs. Aujourd’hui, nous mettons au jour les cités les plus vastes jamais vues sur le continent américain !» s’exclame Richard Hansen, de passage à Paris pour l’exposition.
Responsable de cette région limitrophe du Mexique, il a conduit les fouilles de 51 cités, dont le site de Mirador, capable de rivaliser avec celui, déjà mieux connu, de Tikal. Richard Hansen ne manque pas d’enthousiasme : il en a besoin pour vivre dans ce bassin isolé, au milieu des moustiques, des tarentules et des serpents, pour lesquels il dit avoir le plus grand respect. La nuit, dans les ruines, les caméras accrochent le regard des jaguars, que les Mayas vénéraient comme une divinité.
Pyramides. Ayant survécu de justesse à l’explosion d’un petit avion qui s’est écrasé dans la forêt tropicale, Hansen a trouvé une formule quand on le compare à Indiana Jones : «J’ai une vie beaucoup plus excitante, puisque lui arrive toujours à sauter avant le crash.» Il est plus proche de Mel Gibson, auquel il a servi de conseiller technique pour le tournage d’Apocalypto. Il avait attrapé le virus quand, étudiant en stage au sein du complexe de Mirador, il a trouvé dans un temple des poteries «préclassiques», qui faisaient remonter sa datation d’un millier d’années en arrière. «A la fin de cette période préclassique [soit de 350 avant JC à 250 après JC, ndlr], les Mayas édifiaient des pyramides de 40 à 72 mètres de haut, les monuments les plus élevés jamais découverts sur le continent américain.»
Ils ont bâti des plateformes, qui nécessitaient l’extraction de millions de mètres cubes de remblai. Les archéologues ont exhumé une stèle taillée dans une dalle de grès rose de plus de six tonnes, qui avait été transportée sur une distance relativement longue. Une monumentalité dont l’expo parvient difficilement à rendre compte… Pour Richard Hansen, les Mayas seraient même les inventeurs de l’autoroute, ayant dressé un réseau de voies qui pouvaient dépasser les 40 mètres de large, sur des chaussées de 4 mètres de haut, favorisant les échanges à travers l’isthme méso-américain.
Une ville comme Mirador aurait pucompter jusqu’à 200 000 habitants. «Tout ceci supposait une société extrêmement complexe et hiérarchisée, qui n’a rien à voir avec l’image qu’on en avait jusqu’à maintenant.» Il n’y avait pas, pour autant, d’«empire maya», mais plutôt une constellation de cités et de petits royaumes qui se faisaient la guerre ou nouaient des alliances selon les périodes, ou même disparaissaient brutalement sans qu’on sache bien pourquoi, se partageant une aire couvrant plusieurs pays d’Amérique centrale. Même provenant du seul Guatemala, les sculptures du Quai-Branly témoignent de la richesse de cette société, des armes aux instruments de musique, des terres cuites aux sculptures, taillées dans des pierres extrêmement dures qui prenaient une résonance symbolique.
Calendrier. Ainsi de ce plat en jade, qui arbore des supports en forme de seins. Ou de ce couteau particulièrement ouvragé en silex, orné d’un profil de jaguar, qui a dû demander une quarantaine d’années de travail. Les décors, dans lesquels les animaux et le maïs sont omniprésents, montrent le raffinement atteint à cette période, même si certaines figures sont assez effrayantes, comme ce fantôme cadavérique en nacre ou les têtes monstrueuses qui surmontent les statues.
Les Mayas ont encore aujourd’hui gardé une culture vivante, mais cette civilisation antique s’est effondrée à la fin du premier millénaire pour des motifs encore mal éclaircis. Peut-être victime de sa propre férocité, envers les hommes aussi bien que la nature.
En même temps, les Mayas composent un des très rares peuples à avoir inventé ex nihilo une langue écrite, tout en établissant des modèles mathématiques et cosmogoniques complexes. Et, en effet, le 21 décembre 2012 correspond au terme d’un grand cycle dans leur calendrier. Mais Richard Hansen n’a pas encore trouvé l’inscription annonçant la fin du monde pour cette date.
S’il y a du nouveau, on vous préviendra.
FALECE ALENCAR E SILVA
SONETO DE EVOCAÇÃO
Alencar e Silva
Que me fez evocar tua face ausente
e teus olhos e encantos já mudados
e cantar este canto em que ressurges
esculpida em martírio e solidão?
Foi a flor que colhi sem cheiro algum?
O som que me chegou anoitecendo?
A lua que lembrando uma outra Ofélia
me fez buscar tua face de afogada?
Pobre amada, o mistério se desvenda
e se faz claro como o fio de prantos
que abre rios de luas em teu rosto:
esta canção nasceu de tua presença
de fonte dolorosa e ave ferida
que canta enquanto mais lhe punge a vida.
(Território noturno)
Escreveu o BLOG DO CORONEL:
O poeta Joaquim Alencar e Silva nasceu em Fonte Boa (AM), e forma com Jorge Tufic e o finado Farias de Carvalho, todos de 1930, uma tríade respeitável e premiada da poesia nacional. Hoje, residindo no Rio de Janeiro, Alencar e Silva não terá o encontro pessoal de seus amigos daqui, mas segue lembrado e homenageado.
Iniciou os estudos nessa cidade do rio Solimões e os secundários encerrou no Colégio Estadual do Amazonas, ao lado da Praça da Polícia. Na mesma praça que ainda conserva o "mulateiro-sede" do Clube da Madrugada, agremiação de muito imortância para o poeta. Dissertando sobre A Poesia amazonense do século XX, Assis Brasil revela que Alencar escrevia desde a adolescência e, entre poemas e primeiros livros publicados, manteve "ativa colaboração em jornais de Manaus", citando A Tarde, de Aristophano Antony, e A Crítica, de Umberto Calderaro.
A lição sobre o jornalismo literário, Alencar e Silva aprendeu em O Jornal, "onde o Clube da Madrugada mantinha um importante suplemento".
Na década de 1970 muda-se para o Rio de Janeiro, onde obtém o bacharelado em Direito pela Faculade Nacional de Direito.
Publicou os livros Painéis (1952); Lunamarga (1965); Território noturno (1982); Sob vésper (1986); Poesia reunida (1987); Noturno após o mar (1988); Ouro, Incenso e Mirra (1994), entre outras manifestações literárias.
Alencar e Silva, pelo conjunto de sua obra, ocupa a Cadeira 23, de Cruz e Souza, da Academia Amazonense de Letras. Assumiu-a em sessão de 5 de agosto de 1992, saudado pelo poeta Max Carphentier, sob a presidência do saudoso Oyama Ituassu.
sábado, 24 de setembro de 2011
PALESTINOS
O orgulho e a emoção brotavam dos milhares de palestinos reunidos em Ramallah. “Este é o dia mais feliz da minha vida”, dizia um membro da Autoridade Palestina. Há muitos anos que não se via palestinos tão felizes e cheios de orgulho, fazendo corpo com seu presidente. Não temos ilusões. “Sabemos que isso é só um começo, um passo curto em uma história muito longa, mas não é um passo vazio, não é um passo violento, é um passo que nos legitima, que nos faz visíveis aos olhos do mundo".
Eduardo Febbro - Direto de Jerusalém e Ramallah, na Cisjordânia
sexta-feira, 23 de setembro de 2011
quinta-feira, 22 de setembro de 2011
NERUDA
Nós calávamos
Saber é uma dor. E o soubemos:
cada dado saído de sua sombra
deu-nos padecimento necessário:
o rumor transformou-se nas verdades,
a porta escura foi cheia de luz,
e se retificaram essas dores.
A verdade foi a vida nessa morte.
Era pesado o saco do silêncio.
E ainda custava sangue levantá-lo:
eram tantas as pedras do passado.
Porém foi assim de valoroso o dia:
com uma faca de ouro abriu a sombra
e entrou a discussão como uma roda
rodando pela luz restituída
até ponto polar do território.
Agora as espigas que coroaram
a grandeza do sol e sua energia:
de novo o camarada respondeu
à interrogação do camarada.
Caminho, aquele, duramente errado
voltou, com a verdade a ser caminho.
Pablo Neruda
________________________
Amélia Pais
http://barcosflores.blogspot.com
http://cristalina.multiply.com
quarta-feira, 21 de setembro de 2011
O gramático de Humberto de Campos
O gramático
Humberto de Campos
Alto, magro, com os bigodes grisalhos a desabar, como ervas selvagens pela face de um abismo, sobre os cantos da funda boca munida de maus dentes, o professor Arduíno Gonçalves era um desses homens absorvidos completamente pela gramática. Almoçando gramática, jantando gramática, ceando gramática, o mundo não passava, aos seus olhos, de um enorme compêndio gramatical, absurdo que êle justificava repetindo a famosa frase do Evangelho de João:
— No princípio era o VERBO!
Encapado pela gramática, e às voltas, de manhã à noite, com os pronomes, com os adjetivos, com as raízes, com o complicado arsenal que transforma em um mistério a simplicíssima arte de escrever, o ilustre educador não consagrava uma hora sequer às coisas do seu lar. Moça e linda, a esposa pedia-lhe, às vezes, sacudindo-lhe a caspa do paletó esverdeado pelo tempo:
— Arduíno, põe essa gramatiquice de lado. Presta atenção aos teus filhos, à tua casa, à tua mulher! Isso não te põe para diante!
Curvado sobre a grande mesa carregada de livros, o cabelo sem trato a cair, como falripas de aniagem, sobre as orelhas e a cobrir o colarinho da camisa, o notável professor retirava dos ombros a mão cariciosa da mulher, e pedia-lhe, indicando a estante:
— Dá-me dali o Adolfo Coelho.
Ou:
— Apanha, aí, nessa prateleira, o Gonçalves Viana.
Desprezada por esse modo, Dona Ninita não suportou mais o seu destino: deixou o marido com as suas gramáticas, com os seus dicionários, com os seus volumes ponteados de traça, e começou a gozar a vida passeando, dançando e, sobretudo, palestrando com o seu primo Gaudêncio de Miranda, rapaz que não conhecia O padre Antônio Vieira, o João de Barros, o frei Luís de Sousa, o Camões, o padre Manuel Bernardes, mas que sabia, como ninguém, fazer sorrir as mulheres.
— Êle não prefere, a mim, aquela porção de alfarrábios que o rodeiam? Então, que se fique com eles!
E passou a adorar o Gaudêncio, que a encantava com a sua palestra, com o seu bom-humor, com as suas gaiatices, nas quais não figuravam, jamais, nem Garcia de Rezende, nem Gomes Eanes de Azurara, nem Rui de Pina, nem Gil Vicente, nem, mesmo, apesar do seu mundanismo, D. Francisco Manuel de Melo.
Assim viviam, o professor, com seus puristas e Dona Ninita com o seu primo, quando, de regresso, um dia, ao lar, o desventurado gramático surpreendeu a mulher nos braços musculosos, mas sem estilo, de Gaudência de Mianda. Ao abrir0se a porta, os dois culpados empalideceram, horrorizados. E foi com o pavor no coração que o rapaz se atirou aos pés do espôso traído, pedindo súplice, de joelho:
— Me perdôe, professor!
Grave, austero, sereno, duas rugas profundas sulcando a testa ampla, o ilustre educador encarou o patife, trovejando, indignado:
— Corrija o pronome, miserável! Corrija o pronome!
E, entrando no gabinete, começou, cantarolando, a manusear os seus clássicos...
(*) Esta engraçada anedota com que Humberto de Campos divertiu os leitores de "O Imparcial" e, depois, os do livro "Os Gansos do Capitólio", vem condensada em meia dúzia de linhas no texto da 'Fisiologia do Casamento", de Honoré de Balzac, sendo ai o protagonista um membro da Academia Francesa.
(Foi mantida a gramática da época).
JOAQUIM NABUCO VISITA RENAN
IN Minha Formação
http://historiadosamantes.blogspot.com/2009/09/joaquim-nabuco-minha-formacao.html
Ainda
conservo esses curtos pequenos autógrafos: “C’est moi qui serai enchanté de causer
avec vous. Tous les jours vers 10 heures, vous êtes sûr de me trouver. Votre très
affectueux et dévoué – E. Renan. Rue Vanneau, 29.” Três dias depois, eu subia os
quatro andares do nº 29 da rua Vanneau e penetrava no mesmíssimo modesto
“apartamento” que Carvalho Moreira me havia fotografado em sua carta. Dentro de
minutos me aparecia Renan. Na minha vida tenho conversado com muito homem de
espírito e muito homem ilustre; ainda não se repetiu, entretanto, para mim, a
impressão dessa primeira conversa de Renan. Foi uma impressão de encantamento;
imagine-se um espetáculo incomparável de que eu fosse espectador único, eis aí a
impressão. Eu me sentia na pequena biblioteca, diante dos deslumbramentos
daquele espírito sem rival, prodigalizando-se diante de mim, literalmente como Luís
II da Baviera na escuridão do camarote real, no teatro vazio, vendo representar os
Niebelungen em uma cena iluminada para ele só.
Dessa entrevista não saí só fascinado, saí reconhecido. Renan deu-me cartas
para os homens de letras que eu desejava conhecer: para Taine, Scherer, Littré,
Laboulaye, Charles Edmond, que devia apresentar-me a George Sand, Barthélemy
Saint-Hilaire, por intermédio de quem eu conheceria monsieur Thiers. As nossas
relações tornaram-se desde o primeiro dia afetuosas, e, naturalmente, quando
imprimi o meu Amour et Dieu, mandei-lhe um dos primeiros exemplares. Aqui está a
carta que ele me escreveu:
“Sèvres, 15 août 1874. Cher Monsieur, J’ai tardé plus que je n’aurais dû à
vous dire tout ce que je pense de vos excellents vers. Je voulais les relire et, puis,
j’espérais quelque vendredi vous voir à Paris. Oui, vous êtes vraiment poète. Vous
avez l’harmonie, le sentiment profond, la facilité pleine de grâce. Si vous voulez venir
après demain, lundi, vers trois ou quatre heures, rue Vanneau, vous serez de me
trouver; nous causerons. Je suis prêt à faire tout ce que vous voudrez pour la Revue
et les Débats. Malheureusement ces recueils sont depuis longtemps brouilles avec la
poésie. Ce sont des vers comme les vôtres qui pourraient les réconcilier. Croyez à
mês sentiments les plus affectueux et les plus dévoués. – E. Renan.”
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