segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Dalai-lama encerra giro com evento pop

Dalai-lama encerra giro com evento pop

Líder budista tibetano fala a 6.000 pessoas em palestra gratuita no Anhembi e defende importância do secularismo

Para ele, a corrupção é o 'novo câncer do mundo'; próximas gerações devem zelar pelos valores no futuro

LAURA CAPRIGLIONE
DE SÃO PAULO

"Vocês estão satisfeitos com a distância entre ricos e pobres [no Brasil]?" Nããããão! "Vocês estão satisfeitos com a corrupção [no Brasil?]? Nããããão!
Era o líder máximo do budismo tibetano, o dalai-lama, 76, provocando a platéia de 6.000 pessoas que foram ao Anhembi (zona norte de São Paulo), ouvi-lo falar sobre "Convivência Responsável e Solidária".
Foi o compromisso mais pop do dalai-lama em sua quarta visita ao Brasil, que se encerrou ontem. Também foi o único gratuito (em todos os demais houve venda de ingressos, que chegaram a custar R$ 500).
E foi o único realizado fora do sofisticado complexo do World Trade Center de São Paulo, onde o budista também ficou hospedado.
A diferença de clientela manifestou-se de imediato. Quando subiu ao palco, o dalai-lama foi aplaudido em pé, recebeu assobios e gritos de saudação.
Mas o pessoal mostrou entusiasmo também quando se anunciou a presença do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab. Então, subiu uma vaia forte, que os mais religiosos desaprovaram: "Bem pouco budista essa reação", disse a professora Maria de Lourdes Castanho, 36.

ÉTICA SECULAR
Para um religioso, o monge tibetano surpreendeu ao defender a importância da perspectiva secular.
Segundo ele, apesar de todas as religiões focalizarem a compaixão e a piedade, nenhuma tem condições de ser aceita por toda a humanidade. "Além disso, há muita gente no planeta que não se sente atraída por nenhuma religião", disse.
O caminho para uma cultura de paz passaria, portanto, pelo desenvolvimento e universalização de uma ética secular para combater a corrupção, que ele chamou de "novo câncer do mundo".
O dalai-lama conquistou mais aplausos ao defender a importância da educação para valores desde o jardim da infância até a faculdade.
Para ele, essa é a tarefa das próximas gerações. "Cabe a vocês dar forma ao século 21. Um mundo de compaixão pode ser criado."
"A minha geração logo vai dar tchauzinho e ir embora", disse, atraindo um lamento da platéia: "Aaaahhh".
À tarde, o dalai-lama falou a 2.800 pessoas no World Trade Center sobre a filosofia budista, no seminário "Cultivando emoções construtivas". Foi um discurso em boa parte focado nos iniciados.
O líder religioso, por isso, não fez cerimônia e proferiu-o, em boa parte, em tibetano, que alternava com o inglês.
Com toda a primeira fileira do auditório preenchida por monges convidados, representando os vários monastérios e grupos budistas do Brasil, o 14º dalai-lama, Tenzin Gyatsu, falou sobre a história do budismo, suas várias tradições e lutas internas.
Terminado o compromisso, às 15h30, o religioso se retirou, cercado por agentes da Polícia Federal, que cuidaram da sua segurança (ele é desafeto do governo chinês, por sua luta em prol da autonomia do Tibete). Deveria embarcar para a Índia ontem mesmo. A promessa é que volte em quatro anos.

ANÁLISE

Líder budista busca na ética a convergência das religiões

ALDO PEREIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na maioria dos credos budistas não há Deus único e criador do universo. Alguns também rejeitam a ideia de alma imortal, embora todos professem reencarnação, por continuidade ou transmigração. Não há, pois, como conciliar cristianismo e budismo no plano da metafísica.
O dalai-lama começou seu descontraído sermão de ontem com a reafirmação desses dois pontos em linguagem menos direta. A convergência das religiões precisa então ser buscada na ética.
Nessa linha, aludiu à teoria neurocientífica da plasticidade cerebral (alteração estrutural de neurônios e sinapses por efeito da atividade mental). Evidência, julga ele, de que a sabedoria pode conduzir à erradicação das "emoções destrutivas" comprometedoras da compaixão.
Além da compaixão, o dalai-lama parece interessado noutra convergência coesiva, o ecumenismo, defesa das religiões contra o secularismo.
Nessa linha, revelou ter repudiado filiação à seita dos Chapéus Amarelos. Surpresa, tendo em vista a história de conflito sangrento de Chapéus Amarelos contra Chapéus Pretos, Vermelhos etc.Talvez ainda lembre de um que viu no Tibete. Outra surpresa: o lama apontado como seu mais provável sucessor é Urgyen Trinlay Dorje, karmapa dos Chapéus Pretos.
Para demonstrar que não se esquiva a divergências filosóficas com outras religiões, o dalai-lama desconcertou os não iniciados com hermética digressão fenomenológica em tibetano, que um dos intérpretes traduziu para inglês e outro para português e que pouca gente pode ter entendido.
O tortuoso fluxo de ideias desembocou na conclusão de que só a sabedoria pode anular emoções destrutivas. As quais, presumivelmente, você deve superar para libertar-se da samsara, sucessão de reencarnações purgatórias.
E nesse ponto retornam as divergências. Budismo prega extinção mortificante de todos os desejos, projeto que não fascina espíritos empolgados pela aventura de viver.
Em cena de "Assim Falava Zaratustra" (Friederich Nietzsche, 1844-1900), a serpente e a águia, animais arquetípicos, vêm perguntar se, absorto na contemplação cismarenta do horizonte, o sábio almejava a felicidade.
"Que é felicidade para mim?", responde Zaratustra. "Há muito tempo deixei de almejar felicidade: almejo, sim, a minha obra."

ALDO PEREIRA é autor de "Brumas do Tibete" (Publifolha)
aldopereira.argumento@uol.com.br

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