terça-feira, 9 de outubro de 2012

As águas mitológicas

NEUZA MACHADO: O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE

Essas “águas”, que vêem de “desconhecidas origens Numas”, águas mitológicas, são especiais, porque provêem do devaneio interno. O narrador Ribamar de Sousa a designa como uma “narrativa animal” porque ela é uma projeção da matéria primitiva que vigorou/vigora no imaginário-em-aberto do homem do final do século XX. Refiro-me àquela matéria inovadora que surge entropicamente depois do repouso fervilhante, intimamente relacionada com os juízos de descoberta, de que nos fala Bachelard, em seu livro A Dialética da Duração.
“O galho quebrado diz: “Não passarás”, em outras palavras, não havia/não há ainda permissão para que se infringisse/infrinja as leis que comandaram/comandam o mundo dito social. Mas, para “além da Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio se separa” e “pode-se banhar e pescar”. A imaginação, como diria Bachelard, oculta “a tonalidade profunda do devaneio criador” , pois ela está resguardada pelas lembranças de antigas leituras foucaultianas, bachelardianas e outras. Além da “Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio”, que separa o substancialmente dito (“gêneses lineares”) do não-dito (o que não possui história), propicia o momento da infração ficcional, porque, daquele lado, pode-se “banhar” no rio das ditosas ou amargas lembranças imperecíveis e “pescar” novíssimos juízos. As “gêneses lineares” versus a “força do não-dito”: Michel Foucault desenvolve um assunto interessante sobre a genealogia do poder e do saber.
“O galho quebrado” da genealogia númica impediu, ao longo da história patriarcal, que a árvore se fortalecesse e permanecesse socialmente altiva, como as “de 70 metros de altura”. “A genealogia é cinza”, diz Michel Foucault. Enquanto forma documental, o estudo da procedência de uma ramificação familiar e/ou tribal poderá ser aniquilado por reelaborações não confiáveis. A genealogia deve/deveria construir seus “monumentos ciclópicos”, não a golpes de “grandes erros benfazejos” mas com “pequenas verdades inaparentes estabelecidas por um método severo”; a genealogia deveria deixar de ser cinza.
Foi a partir da “Curva do Tucumã”, a curva onde se reencontram as diferentes cenas e onde elas desempenham papéis distintos, que os Numas/Numes ficcionais se infiltraram, avançaram e atravessaram as leis da história do homem ocidental, premiando os atuais leitores pós-modernos e futuros com uma númica e criativa cena: as indiazinhas Numas em interlúdio amoroso à beira das majestosas águas, eternas, do pensamento mitificado, a construir monumentos ciclópicos. Os Numas/Numes passaram “além de si mesmos” e não respeitaram seus próprios limites mágicos, e com isto, enquanto divindades aéreas e/ou aquáticas, interiorizadas, atravessaram “o rio e a ordem que o rio exercia na floresta” (atravessaram as lembranças do primeiro narrador Ribamar e o texto que seria apresentado aos leitores).
Necessito de uma explicação: Em um primeiro momento, refleti o assunto pelo ponto de vista da interpretação primária, respaldada pelo próprio texto ficcional em questão. Com esta atitude, reconheço, submeti-me ao risco de uma desconexa contra-afirmação metodológica, como proclamei anteriormente. Para uma interpretação reflexivo-fenomenológica e explícita do mítico relacionamento das indiazinhas Numas/Numes, interpretação esta que seja respeitada pelos meus pares intelectuais, submissos às teorias literárias estrangeiras (a maior parte, pelo menos), exige-se, para o esclarecimento do assunto, um repensar à moda do fim da modernidade (Era Moderna) e o início da pós-modernidade (do século XX para cá).
Até meados do século passado (século XX), a questão, no âmbito da criação ficcional, não poderia ser exposta nitidamente. Os pensadores fenomenólogos, como, por exemplo, Nietzsche, Heidegger, Deleuze, Foucault, Vattimo, perceberam que a artística interpretação literária da realidade (arte literária) teria de acompanhar a situação real de quem a produzisse. O escritor-artista, fosse ele ficcionista ou poeta, teria de mostrar uma de suas faces ao mundo ─ neste romance, por exemplo, a de criador literário ─, ou seja, o seu modo de estar no mundo. O escritor-ficcionista do século XX sofreu esta exigência cogitativa e cognitiva ao ver-se obrigado a abandonar a forma exemplar/linear dos narradores ficcionais tradicionais em proveito de um diferenciado propósito narrativo-ficcional. Os narradores do século XX (não confundi-los jamais com os narradores épicos), narradores esses do caos vivencial do homem em transição, secular e milenar, exigiram, para si mesmos (e para os pósteros) uma renovada forma de expressão literária/ficcional (sem absolutismo), que os representasse, orientando-os para uma não-convencionada atitude ante as regras imperialistas, cerceadoras, do mundo moderno. Por exemplo, neste romance especialmente, esta idéia de uma renovada literatura ficcional já se revela sublinearmente.


SOBRE "O AMANTE DAS AMAZONAS" DE R. SAMUEL

Nenhum comentário: