segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Família do profeta Gentileza não recebe direitos autorais

Família do profeta Gentileza não recebe direitos autorais

Produtos com referências à obra do artista se multiplicam sem que haja remuneração


Nascido José Datrino, o homem que pregou nas ruas de 1961 a 1995, quando morreu, hoje é tema de artigos em revistas de arte internacionais
Foto: Divulgação
Nascido José Datrino, o homem que pregou nas ruas de 1961 a 1995, quando morreu, hoje é tema de artigos em revistas de arte internacionais Divulgação
RIO - O profeta Gentileza tinha uma maneira própria de definir o sistema econômico baseado no comércio de produtos com objetivo de auferir lucros: “capeta-lismo”. Empresário do setor de transporte de carga em Niterói, José Datrino (1917-1996), nascido em Cafelândia, no interior paulista, tornou-se Gentileza após uma epifania à véspera do Natal de 1961. Teve a visão do que acreditou ser o fim dos tempos, vendeu todos os bens e virou pregador de rua. Costurou um manto branco, pintou nele dizeres sobre bondade e beleza, deixou a barba crescer e decidiu cruzar o país. Foi chamado de louco e tomou eletrochoque, porque repetia que “o mundo é uma escola de amor”. No viaduto do Caju, Zona Portuária do Rio, resistem, em verde, amarelo e azul, pintados sobre o concreto cinza, 56 aforismos, entre eles o de número 44, que diz: “Não pense em dinheiro. Ele é o capeta. Cega a Humanidade e leva para o abismo”.
O capitalismo, como o demônio, também se imiscui nas menores coisas. Peças produzidas a partir de frases e da criação gráfica do profeta Gentileza se multiplicam cada vez mais no comércio e são até exportadas. Geram mais riqueza do que gentileza, porque não pagam nenhum centavo à família daquele que criou uma sentença quase onipresente. Pode-se ver a inscrição “Gentileza gera gentileza” em sandálias, tênis, camisetas, cangas, guarda-sóis, canetas, bolsas, bonés, “mousepads”, ímãs e adesivos, entre dezenas de produtos. São vendidos ou customizados por empresas de pequeno porte ou artistas alternativos, como se a obra fosse de domínio público. Sem pagamento de direito de autor ou de marca. Estão tanto em lojas do Leblon e de Ipanema, na Zona Sul, como em bancas do camelódromo da Rua Uruguaiana ou na estação do metrô da Cinelândia, no Centro.
Família nunca entrou na justiça
Os produtos, os produtores e os preços são tantos e em tal volume que se torna impossível dimensionar o tamanho do mercado. Uma sandália com a inscrição “Gentileza gera gentileza” pode custar R$ 40. Uma loja de Ipanema, daquelas que vendem a moda de rua requintada, comercializava por R$ 100 um tênis All Star com a expressão do profeta customizada, ou seja, aplicada por meio de tela na lona do original de fábrica. Uma saída de praia ou camiseta pode ser comprada na Rua Uruguaiana por R$ 15, uma bolsa por R$ 10, um adesivo por R$ 6 e um ímã de geladeira por R$ 5. No shopping Leblon, uma caneta sai por R$ 5.
— Outro dia um rapaz chegou no nosso bar e disse que queria cerveja com desconto. Eu disse que não podia dar desconto, porque o preço da cerveja já é o mais barato da região. Ele insitiu, mostrou a cueca e lá estava escrito: “Gentileza gera gentileza” — conta Maria Alice Datrino, 68 anos, a mais velha dos cinco filhos de Gentileza, que mora e administra um bar em Guadalupe.
Os herdeiros legais do profeta já passam de três dezenas.
— Outro dia vi uma camiseta e disse para a dona da loja que era criação do meu pai. Ela respondeu que eu não devia me preocupar, já que era uma fábrica de fundo de quintal — diz Maria Alice.
Biógrafo, autor do livro “Univvverrsso Gentileza” (Mundo das Ideias, 2009) e professor do Departamento de Artes da UFF, Leonardo Guelman aponta como um “contrassenso” a assimilação das obras de Gentileza pelo comércio:
— Não foi à toa que ele falava do capeta-capital. Porque a gentileza à qual o profeta se refere não se opõe à violência. É claro nos escritos dele que a violência é um fenômeno superficial da exclusão. Ele acreditava que o dinheiro fazia com que as pessoas perdessem a fraternidade. Gentileza, na obra dele, opõe-se à ganância.
A filha mais velha afirma que, por diversas vezes, a família pensou em entrar na Justiça para pedir compensação econômica em defesa do direito autoral da obra do pai:
— Mas ele sempre dizia que o dinheiro era um mal. Nunca recebemos um tostão de ninguém. Só em 2009, quando foi ao ar a novela “Caminho das Índias”, cada um dos cinco filhos recebeu R$ 3.850, porque havia o personagem do Paulo José, que foi inspirado em meu pai.
A família Datrino está protegida em tudo o que for relacionado ao direito de autor, no entender de Vinicius Bogéa Câmara, diretor de Marcas do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI):
— Pela Convenção de Berna, o direito do autor independe de qualquer tipo de registro.
Assim, a obra de Gentileza, apesar de ser em locais públicos, sem ter sido registrada, tem autor reconhecido. Qualquer uso de sua produção pode ter exigida a citação do autor e o pagamento de direitos autorais. Os Datrino nunca foram à Justiça tentar alguma indenização, nem exigir que Gentileza seja identificado como o autor da frase que se prolifera por aí.
Questão diferente é a tentativa da transformação das letras e da frase de Gentileza em uma marca registrada, definida nas leis que regem a propriedade industrial. Um dos netos do profeta, Vagner Datrino, entrou com um pedido de registro no INPI de marca registrada de produto para exploração no setor de comércio de roupas e publicidade. Se obtivesse o registro da marca, ninguém poderia usá-la sem sua licença ou sem o pagamento dos devidos royalties nesses setores. O processo foi arquivado porque não tinha a participação de todos os herdeiros legais de Gentileza.
— No caso da marca, quem registrá-la primeiro para um fim específico tem o direito de usá-la — esclarece o diretor de marcas do INPI, Vinicius Bogéa Câmara.
A designer e consultora editorial Eliane Stephan diz que a obra de Gentileza tem de ser entendida como um conjunto:
— O trabalho de lettering (desenho da letra) é interessante enquanto composição, sempre usando faixas horizontais nas cores verde e amarela, para separar cada linha dos seus textos, além de alguns símbolos criados para separar ou pontuar palavras. São uma espécie de tábua de mandamentos. Não podem ter seu entendimento reduzido à criação de letras somente, desvinculado da mensagem.

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