terça-feira, 23 de outubro de 2007


Dr. Tito



Rogel Samuel





Mas era Dr. Tito um dos homens mais elegantes que já se viu.

Alto, magro, bigodes grisalhos, as pontas arqueavam para cima, extremamente bem vestido, bem talhado terno, com colete, a gravata presa por uma pepita de ouro, chapéu de feltro — ele andava em Manaus com tal elegância como se desfilasse num bulevar parisiense — Dr. Tito Bettencourt era o dentista de nossa família.

Inspirava confiança, homem civilizado, galante, cortês. Sabia como discretamente parar na rua as pessoas para a rápida conversa, social. Para cada uma, uma frase diferente. E tirava, levantava discretamente o chapéu, para as pessoas que só conhecia de vista:

— Como vai a nossa D. Edília? perguntava, ao encontrar minha mãe. Meus cumprimentos à sua família, - e partia ele, muito digno, soberbo, jovial apesar da sua idade.

Ele não era dr. Bodecker, de Ledo Ivo, em «Rilke vai ao Dentista».

Rilke vai ao dentista.
Nenhum dos seus anjos o acompanha.
Ou todos os anjos do mundo o acompanham.
É outono em Berlim. As folhas das tílias
caem como os pássaros silenciosos.
O homem não foi feito para as pequenas dores.

Protegido do frio por um espesso sobretudo
(presente da princesa Maria von Thurn und Taxis)
Rilke se encaminha para o consultório do dr. Bodecker.
As ruas iguais aos mares sucessivos
o conduzem à vida, não à Morte.

(E como gostaria eu de ser o poeta Rainer Maria Rilke.)

Mas no consultório, vestia-o um avental de linho alvíssimo, impecável.

À minha relutância em abrir a boca, brincava:

— Vamos jovem, homem é homem, bicho é bicho.

E Dr. Tito a broca começava.

Na época não havia motor, aquilo, aquela engenhoca era pedalada, aquele instrumento de tortura funcionava como funcionava uma máquina de costura.

Então Dr. Tito cantava uma valsa.

Era sempre a mesma valsa, o «Danúbio azul», que ele lalarilava, feliz, cantando no ritmo de suas alegres pedaladas.

Quando a dor aumentava, ele elevava o volume de sua voz, de sua valsa. E continuava a embrocação. Os nossos gritos eram sufocados pela sua voz.

Não tinha enfermeira, nem assistente, nada, ninguém. Trabalhava sozinho, no seu consultório, na rua Sete de Setembro. A sala de espera do consultório, sem nenhuma ostentação, se constituía de umas cadeiras e um sofá de palhinha. De lá era possível ouvir a valsa, o Dr. Tito cantando o «Danúbio azul».

Quando terminava, ele aparecia, feliz, na porta, apertava a mão de alguns homens, curvava-se às senhoras, em deferência, e dizia, entusiasmado, para alguma criança presente:

— «Oh, meu grande amigo! Que prazer em vê-lo aqui!»

Dr. Tito morava perto, numa imensa casa, que freqüentávamos nos aniversários. A casa, em estilo antigo, tinha um pátio interno. Mas as lembranças me fogem, pois vêm de um outro mundo, de um mundo mítico, remoto.

No consultório, nunca me lembro de que tivesse perdido a paciência, o sorriso, a temperança, a amabilidade.

E gostávamos dele, nós crianças, apesar de seus alicates, suas brocas, suas garras e de sua valsa.

O «Danúbio azul».

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