segunda-feira, 8 de outubro de 2007

filosofar em ipanema

filosofar em ipanema





Ipanema deslumbrante nesta manhã. Início de Primavera. Vou direto, dentro de um táxi, para a livraria, onde me espera a antologia "Rios", ali lançada. Há tempos não venho a Ipanema. Nada há para fazer aqui. Nisso reside o ponto: a gratuidade. Andar, sem objetivo. Muito raro. Sempre vamos a um lugar para fazer algo, comprar um livro, almoçar, ou mesmo passear (o que também percorre o núcleo das ações visando a um fim). Encontramo-nos num limite. O afastamento da natureza, onde era exigido o exercício pleno dos sentidos, o artificialismo da vida tecnológica, uma espécie de inteligência sem alma. Nosso mundo é o mundo eletrônico dos microcomputadores, porta-vozes de uma felicidade sem alma, anestésica, onde tudo funciona sem nervo. Fomos transformados em objetos da ciência da comunicação, imanente ao todo. Nosso mundo é o da imanência, do imediatismo. A realidade não estaria na medida em que se pode transcendê-la. A transcendência pertence à categoria humana antiga, arcaica, da consciência em relação às coisas. A vacuidade do olhar que vê o vídeo revela a imanência existencial do homem não mais exercendo o seu poder de transcendência.

Ora, o objeto se define como o emprego que a tecnologia moderna faz das coisas, tornadas úteis, práticas, aperfeiçoadas, interrompendo-se a continuidade harmoniosa e natural em que se encontravam. O olhar que vê o objeto não é o mesmo olhar que vê a coisa dada na natureza, assim como o olhar que vê o vídeo não é igual ao olhar que vê a flor. Olhar a flor mostra a redenção do olhar capaz de transcendência. O vídeo fez o olhar desaprender, não mais saber decodificar a flor como apenas flor, flor sem conceito, flor de flor, dado único, irrepetível, espantoso no universo. O que caracterizava o filósofo antigo era o seu espanto, o pathos, a surpresa do fato. Olhava o mundo com surpresa. Nós olhamos um mundo velho, com olhos gastos. Não nos surpreende o olhar. A flor que é flor, agora, só a que vem pronta, cheia de semiologia, não a flor nascida na margem da estrada, única, linda, e espantosa. Espantar-se com o haver a flor é ter aptidão filosófica. O olhar já não pára na margem da estrada, para a contemplação silenciosa da flor. Pois a contemplação pertence a um passado historio, arcaico, desusado, heróico, remoto, quase pré-histórico. A contemplação não é possível, mas a tecnologia, que traduz tudo, fato matematizado. A técnica, o esquecimento do olhar. Por isso os aposentados, os "inativos", nada mais tendo a fazer, se deixam cair em depressão, adoecem e morrem, para alegria dos sistemas previdenciários.

A técnica prepara o homem para aceitar a imanência, que submete o sujeito ao jugo do objeto. Envolve-o num sistema de significados. Ensina-o a (não)-ser "feliz", ou seja, ativo. Em tempo de crise, o homem do Estado pós-científico, pós-moderno, pós-11-de-setembro, se submete sem protesto ao mundo dos objetos sem experimentar um horror a reificação. A tecnologia, como instrumentalização das coisas, se converte em instrumentalização dos homens — condição primordial do viver moderno, dizia o velho Marcuse. O homem instrumentalizado, instrumento da técnica. Sua cultura é a de massa, da TV. A sociedade fica assim desprovida de si, do seu caráter societário, assiste-se a uma anestesia da sociedade, provocada pela "racionalização", palavra que Max Weber utiliza para caracterizar a forma capitalista de atividade econômica, a forma de troca própria do sistema de comércio burguês, que aparece a partir do século XII e que se desenvolve no Renascimento ao nível do Direito Romano, imagem da organização imperialista da sociedade romana, estabelecida no Direito Privado que nasce em substituição à idéia da vida pública grega.

Na medida em que nós possamos ver o homem também como uma coisa, seu absurdo não é menor do que o das pedras, mas ele não é sempre redutível à realidade inferior que nós atribuímos as coisas. Pois o problema que se avista na reificação é o da incomunicabilidade, o absurdo de viver no mundo despovoado de sentido social, de não participar da história, de não compreender o todo, de ignorar as causas das decisões dos acontecimentos. O homem pós-pós-moderno se encontra num limite. O afastamento da natureza, onde era exigido o exercício pleno dos sentidos, o artificialismo da vida tecnológica, uma espécie de inteligência sem alma.

Hoje a dominação se acha legitimada como poder científico-militar. Há desarmonia? — Então isso é o Terrorismo. Filosoficamente falando, estamos numa fase de barbárie. Os poetas estão desaparecendo do cenário central das decisões. O fato da invasão militar aparece não só como irracionalidade do comportamento político, mas como loucura mesmo. Loucura é a incapacidade de se comunicar eficazmente com o outro. Cortando a comunicação, a loucura corta a ligação com o continente racional.

Os motivos sociais do nosso tempo estão mascarados por imperativos militares, onde se identificam técnica, dominação, racionalidade, produtividade, guerra, grupos de extermínio, narcotráfico, destruição do meio ambiente e sendo mais uma possibilidade, como disse Ernest Bloch, do que uma atualidade. "O olho, que tudo vê, não se vê" diz o aforismo de Wittgenstein. Em breve vamos ver que estamos na encruzilhada. A filosofia grega era objetiva. Descartes, no classicismo, pensou uma filosofia do sujeito: Seu Discurso sobre o método, que é um texto dedicado a orientar a razão para dentro do sujeito, o demonstra classicamente. Esse caminho chega ao idealismo alemão, pois Kant, com sua crítica da razão, e Hegel, com o desenvolvimento do pensamento negativo (o objeto é o que o sujeito não é) chegaram ao conceito de subjetividade-objetiva, fundindo dialeticamente sujeito e objeto. A história da filosofia poderia ter parado aí. Não parou. Nietzsche quebra a estabilidade. O problema do sujeito atinge, então, um nível nunca visto, pois o problema não está além, mas aquém. "O que quer aquele que diz que nada quer?". Entretanto, para as sociedades pós-modernas, o homem mesmo ainda é desconhecido. Mas será possível ainda falar de pós-modernidade depois de 11 de setembro?

E eu continuo a filosofar, andando sem destino, pelas ruas de Ipanema.

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