quinta-feira, 11 de outubro de 2007
receitas de azul
O famoso verso: 'Tome um pouco de azul, se a tarde é clara', de Carlos Pena Filho, lembra que foi Rimbaud quem inventou a cor das sonoridades vogais. A cor azul fala do som 'O'. Veja a tradução de Onestaldo de Pennafort:
O, fanfarras, clarins, trons de vitória, brados,
O, silêncios azuis de anjos e sóis povoados,
O, clarão vesperal, violáceo, dos seus olhos!
São esses silêncios azuis que só os anjos sabem, os sóis povoados de luz dos seus olhos, clarão vesperal, brados.
Para ele, e não pergunte por quê, o 'O' é azul. Leia a tradução de Augusto de Campos:
O, supremo Clamor cheio de estranhos versos,
Silêncios assombrados de anjos e universos:
— Ó ! Ômega, o sol violeta dos Seus Olhos!
Com a tradução muda o poema todo.
Para fazer-se um soneto azul, se deve, pois, proceder da seguinte forma, diz o poeta Pena Filho:
Tome um pouco de azul, se a tarde é clara
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.
Esse deus — esta musa, a inspiração, desce da 'súbita mão', de que fala Pessoa. Em 1917:
Súbita mão de algum fantasma oculto
Entre as dobras da noite e do meu sono
Sacode-me e eu acordo, e no abandono
Da noite não enxergo gesto ou vulto.
No 'Soneto do Desmantelo Azul', diz Carlos Pena Filho: 'Então, pintei de azul os meus sapatos '. Por onde ele andou?
Brinca de azul Carlos Pena Filho, no 'Soneto do Desmantelo Azul':
Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori, as minhas mãos e as tuas.
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.
E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.
E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
Enfim, Carlos Pena Filho dá a receita: ' Para fazer um soneto':
Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.
Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.
Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.
Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.
O poeta amazonense Sebastião Norões é autor de um famoso soneto — 'Mar da memória' — Lá o azul vem do mar:
Eu quero é o meu mar, o mar azul.
Essa incógnita de anil que se destrança
em ânsias de infinito e me circunda
em grave tom de inquietude langue.
O mar de quando eu era, não agora.
Quando as retinas fixavam tredas
a incompreensível mole líquida e convulsa.
E o pensamento convidava longes,
delimitava imprevisíveis rumos
viagens de herói e de mancebo guapo.
Quando as distâncias fomentavam sonhos.
Rebenta em mim essa aspersão tamanha
que a imagem imatura concebeu
de quando o mar era meu, o mar azul.
Lá o azul do mar está pintado de 'ânsias de infinito', de vôo, de pensamento cujas distâncias fomentavam longes sonhos, o meu mar, o meu mar interior, o tamanho mar de quando ele era meu mar.
Para fazer-se um soneto azul deve-se esperar, fiando-se no azul do ar, da palavra inicial: 'que moldará nas nuvens no momento / de apascentá-las pela tarde pura' (Bacellar), e começar por lembrar 'que o mar era meu, o mar azul' (Norões).
A cor local deve ser a do 'sol de sua cara / e um pedaço de fundo de quintal ' (Bacellar).
Mas nunca o mar foi tão vasto quanto nesses versos azuis de le bateau ivre (Trad. Augusto de Campos):
E das manchas azulejantes dos venenos / ...... / Onde, tingindo azulidades com quebrantos / ......./ E o acordar louro e azul dos fósforos canoros! /.........../ Áureos peixes do mar azul, peixes cantantes... / .................../ Líquens de sol e vômitos de azul escuro.
É de Bacellar o soneto do verão:
No livre azul o sossegado vento
lívido sonha linhas de escultura
que moldará nas nuvens no momento
de apascentá-las pela tarde pura.
Num arrepio de pressentimento
o rufo de asa risca na brancura,
o sol arranca brilhos do cimento
do muro novo, a folha cai. Madura.
Tudo o verão proclama: a tarde limpa,
esmaltada de claro; pela grimpa
do morro verde a cabra lenta vai...
A luz resvala na amplidão sonora.
Por que senti roçar-me a face agora
um beijo, um frêmito, um suspiro, um ai?
Azul é o céu, é o espaço. Azul é profundidade, a transparência, o vazio, a liberdade. No livre azul, no mar azul, um pouco de azul da tarde, perdidos de azul, vertiginosamente azul. O azul onde passa o vento.
Termino com Rimbaud:
No meu torpor, não posso, ó vagas, as esteiras
Ultrapassar das naves cheias de algodões,
Nem vencer a altivez das velas e bandeiras,
Nem navegar sob o olho torvo dos pontões.
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