sexta-feira, 19 de outubro de 2007

A Lembrança de Valquíria (2)


A Lembrança de Valquíria (2)


(novas páginas do antigo diário)





Rogel Samuel





Palavras. Palavras entrecortadas. Curiosa angústia. Eu ponho tudo em jogo, eu não estou com ela. Que faço aqui? Novo grupo de policiais acaba de chegar, as imediações estão um campo de guerra, um campo selvagem. Quando a porta se abriu, nós nos precipitamos pela saída dos fundos. Eu ainda pensei que a porta resistiria, mas cedeu de uma vez, uma invasão começou. Depois começa a lavrar o incêndio. Armários despencam aos tiros, granadas, rebentam estrondos. "Sim, fui uma juventude agredida", disse Val, anos depois. O silêncio aquece o inverno longo. Você coloca sua marca, a marca de seus dedos em tudo o que faz. Você traz no corpo o seu sinal.

Na estação, o garoto olha para trás, e corria, assustadíssimo. A fome passa. Estou bem disposto, a viagem de trem me reanima, a vida volta a seus trilhos, volta ao natural. Sinto-me de novo participante, cidadão, digo que isso é passageiro. Não sei dar linearidade a esta narrativa, ela vai-se desenrolando de dentro – a sua ordem é desordem assim, parece impossível, fico diante do que sai de minhas lembranças, fico impotente, como sob flashes atordoantes. Os olhos dela me chegam, me abraçam. Às vezes, penso que é ela quem me reencontra, seu fantasma comigo — a minha morte — um salto surpreendente. Eu tenho de usar de muita habilidade para prosseguir o tema doloroso, o tema fundamental, o propósito verbal de minha existência devastada, não mais estando disposto à lastimação solitária de origem. Minha lembrança. Recebo minha lembrança no seio de sua vacuidade. A emancipação desaparece, por momentos. Mas nada pode ser dito. Vivo disto. Sobrevivo disto. Vivi com o principal de meus dias de paz. «Quem colhe o mel dos deuses», diz a voz, «não mais se cura». Sei que amanha acordo melhor. Bela sensação de claridade, de espaço, daquele espaço em que passamos nossos corpos e nos estabelecemos — quero abraçar este espaço — rematar o real nele contido - recortá-lo para o recriar. Hei de contar, de cantar a mais bela canção de amor aqui, mais bela que alguém já pode viver. Val me telefonou dizendo que Ricardo... Mas isso resiste à clareza de uma narração, de uma explicação, tenho de avançar a palmo. Com teimosia, mas com cautela. Estou perdido. Melhor seria se eu pudesse logo contar certos detalhes, tornar seguro o caminho. A situação está na reta final. Mas não, não há mais ninguém, senão você, vem você, você prossegue, sim. Todos se colocaram na ausência. Sinto-me ainda na ilha, mergulho para esquecer, deixar para trás o som de suas praias, sempre nos meus ouvidos. Não, devo clamar, duvidar. Naquele tempo vivia numa ilha. Lá estava Val, também. Tínhamos uma casa na ilha. O principal de mim estava lá. Eu amava ou não tinha outra escolha. Ali era um ser todo dissolvido — um ser úmido, onde os sentimentos mais estranhos assustavam, assaltavam, chegavam com seu trânsito nervoso, a violentação de suas multiplicidades — de não sei quantos desagradáveis motivos nervosos difíceis de aturar.



* * *



A tarde ia desaparecendo. Um calor brando, silencioso. Valquíria aparece. Jovem. Máxima. Ela aparece jovem. Reencontro a Valquíria adolescente na Valquíria de hoje. Estou decididamente envolvido na sua substância material. Desde sempre nos envolvemos, nos identificamos. Ela vive, dança no meu ser, à vontade. Tento compreender isso, tento a resposta. Sua voz vem de longe, do tempo. Sua voz. Quando se convive, durante toda uma vida, mesmo com intervalos, com essa voz, nunca se pode sobreviver sem ela. Pessoa que se ama sempre. Estou sempre prestes a procurá-la, de novo. Por isso nunca a liberto. Sempre fui a ela, onde ela estiver. Seu timbre sempre adquire o som de um fundo que conheço mas não sei dizer de onde. Agora é o tom do amor desfeito. Refaço. Tento. Nós corremos paralelos, juntos, nos unimos em tempos sucessivos. Eu sempre. Tenho-a em meus braços? Ou ela me domina? Agora, como depois. Como sempre antes de sempre, depois, depois de depois. Nós nos deitávamos, era a comunhão, ela tão presente, como se fosse ela o mais sólido e absurdo elo da vida. Sem ela, vivo em abstrato. Se opacifica. Eu sou agora Val. Ela cheira a floresta. Nós sempre corremos em vias paralelas, nos unimos no tempo. O bom contato de seu corpo, de sua materialidade, de seu cheiro de mato moreno, de seu calor algo que eu podia beber o insaciável. Estrada. Depois a estrada. As palmeiras, eucaliptos, rubor essencial que sempre a eterniza. E eu sei que posso ficar até o sangue correr de meus dedos, aqui, a falar e a repetir sobre ela, interminável, inesgotável, solitariamente.

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