Num momento em que o fogo rouba da pintura brasileira uma de suas maiores obras-primas, “Samba”, de Di Cavalcanti, vale evocar a impressionante trajetória daquele que muitos consideram, juntamente com Portinari, o maior pintor brasileiro do século XX.
A imagem pública de Di ficou geralmente confinada ao clichê de gordo bonachão e bon vivant, que pintava mulatas em quadros muito coloridos. Mas quem se interessa por arte brasileira sabe que há muito mais.
Como muitos grandes artistas, Di Cavalcanti teve fases fabulosas e também momentos menos inspirados, em que sua produção baixou de qualidade, sobretudo no final de sua vida. Isso não é nada incomum, mesmo entre os maiores talentos, e os muitos quadros infelizes dos últimos dez anos de sua vida não podem deixar esquecer o imenso pintor que foi Di Cavalcanti, e seu destaque na produção brasileira do século XX.
Algo que é menos conhecido, num artista que morreu com quase oitenta anos − e foi famoso durante toda a segunda metade de sua vida −, é que o enorme talento de Di Cavalcanti manifestou-se muito cedo, e que sua obra como ilustrador e desenhista era já admirada por muitos quando Di Cavalcanti tinha apenas vinte anos.
É desse período que datam a carta e a fotografia reproduzidas nesta página.

Sua imagem jovem surpreende. Habituados ao rosto inchado e com uma imensa papada que o artista exibe em todas suas fotos da maturidade, temos dificuldade em reconhecer como Di Cavalcanti o menino engravatado de vinte e um anos com uma pequena mecha rebelde que se descobre neste retrato, dedicado ao poeta Guilherme de Almeida em 1918.
Com vinte anos, Di já fazia plenamente parte da boemia paulistana. Nascido no Rio de Janeiro, a intenção de cursar Direito o trouxe à capital paulista, onde logo se integrou com o grupo de intelectuais e artistas que alguns anos mais tarde organizariam a Semana de Arte Moderna, da qual Di foi um participante destacado.
Nesta carta, escrita no Rio de Janeiro há noventa e cinco anos, Di parece conversar com um amigo chamado Edmundo, que ficou em São Paulo. No terraço do restaurante Campestre, “lugar onde se come a rodo”, segundo o próprio Di, o jovem artista escreve sob o olhar de duas moças chamadas Carla e Marthe, que também mandam recados para Edmundo, um amigo intimo a quem Di presta contas: “não deixo de pensar nas obrigações. Mando-te 170.000 réis, e peço-te um importante favor, meu bom amigo, de entregar cem mil reis a D. Guita, dona da pensão e setenta ao alfaiate. Diga a dona da pensão e ao alfaiate que em breve estarei aí com mais, liquidando tudo”.
As meninas também conhecem Edmundo e a francesa (?) Marthe desenha um tosco raminho de flor e diz: “Senhor Edmundo, diga ao Di para não ser mau”. Marthe era a provável namorada de Di no Rio de Janeiro naquele momento, mas o jovem artista já queria deixar aquela a que se refere como “cidade funambulesca”, onde passa “noites estúpidas”, para voltar para casa: “São Paulo é o Ideal”.
Di Cavalcanti nunca se preocupou em manter um arquivo pessoal e as peças que sobrevivem de sua juventude, − fora os maravilhosos desenhos que fez para ilustrar Oscar Wilde ou os primeiros trabalhos pré-modernistas − são quase inexistentes.
Essa carta terá se salvado por acaso, e a foto permaneceu esquecida por muitas décadas num arquivo fechado. Ressurgem agora para ilustrar um breve momento despreocupado do quase menino Di, com saudades de São Paulo.