NA
MORTE DOS RIOS
Rogel
Samuel
"Desde
que no Alto Sertão um rio seca, / a vegetação em volta, embora de unhas, /
embora sabres, intratável e agressiva / faz alto à beira daquele leito tumba. /
Faz alto à agressão nata: jamais ocupa / o rio de ossos areia, de areia
múmia." - escreveu João Cabral de Melo Neto. É verdade que ele nunca
acusou recebimento de um livro que lhe mandei pelo correio. Talvez não tenha
gostado, nem tenha lido. Era minha dissertação de mestrado, versava sobre as
águas. Na sua obra. Cabral para mim é sempre uma fixação. Eu não me canso de
lê-lo. Nunca o vi, pessoalmente. Assisti à uma entrevista na televisão. Mas
como os maiores poetas têm dificuldade de falar! Cabral era claudicante. Cheio
de "não é verdade?". Lembro-me de Drummond. Um dia, quando éramos
aluno da FNFi, e como estudássemos sua obra, conseguimos que Drummond aceitasse
a vir, na nossa sala, para conversar. Ele exigiu que ninguém soubesse, e que
pudesse entrar pela porta dos fundos! Incrível: um dos maiores poetas entrou pela porta dos fundos da nossa
faculdade de letras. Mas Drummond não dizia coisa com coisa. Parecia um
funcionário público (que era), conversando. Trazia um guarda-chuva preto e
vestia um terno cinzento. Sério, magro, seco, quase mal humorado. Disse, por exemplo,
que perdia belas imagens e versos que lhe ocorriam no caminho de casa para o
trabalho. Parece que ele andava de ônibus, de Copacabana para o Centro, no Rio.
Quando eu lhe perguntei por que ele não tinha consigo um caderninho de notas,
ele respondeu que "não ficava bem alguém ficar escrevendo". Lembro-me
de que nossa professora, D. Cleonice Berardinelli, que ia passando no corredor,
o viu e, espantada, logo entrou na sala. Drummond, o gênio da nossa poesia,
discorria singelamente, prosaicamente sobre sua obra. Nenhum brilho, nada de
demonstrações de grandeza. Disse: "não sei por que fazem tanto barulho
pela minha poesia, eu não vejo nada de especial nela" (as palavras eram
mais ou menos assim). Disse horrores sobre o verso "no meio do caminho
tinha uma pedra". E no fim, quando se despediu, eu lhe pedi um autógrafo.
Ele logo se irritou comigo ao ver, na folha de rosto do seu livro, após o seu
nome, que eu tinha escrito, a mão: (1920 - ..... ). "Esse aqui já está
esperando a minha morte!", disse. A última vez que o vi, foi em
Copacabana. Eu bebia um cafezinho num botequim do Posto Seis que existe até
hoje, quando ele passou. A cabeça pensativa, meio cabisbaixo. Eu fiquei
extático, boquiaberto, imóvel,
reverente, e mentalmente me curvava à Grande Poesia que passava.
Mas
João Cabral nunca o vi.
Tenho lido
sua obra, nesses áridos dias.
Empaquei na
"Conversa em Londres, 1952", da qual transcrevo alguns dos versos:
Durante
que vivia em Londres,
amigo
inglês me perguntou:
concretamente
o que é o Brasil
que
até se deu um Imperador?
Disse-lhe
que há uma Amazônia
e
outra sobrando no planalto;
...............................................
Porém
como a nenhum britânico
convence
conversa impressionista
[ele
disse]...
"Posso
dizer minha opinião?
O
Brasil é o Império britânico
de
si mesmo, ...
é
fácil ler nesse mapa,
Colônias...
e
a Londres, certo mais monstruosa,
que
no Brasil não é cidade,
é
região, é esponja...
a
de Minas, Rio, São Paulo
que
vos arrebata até a chuva."
Talvez ele não tenha gostado das minha
leitura da sua obra, que não é lá grande coisa. Talvez nem a tenha lido. Mas
nenhum amazonense, lá onde há água tanta, soube dizer das águas quanto o árido
João Cabral nordestino. Nordeste da seca, Nordeste dos "territórios mais
mendigos". A Amazônia é (pasme) nordestina. A família da minha mãe, por
exemplo, é nordestina. Até 1919, no Amazonas, 150 mil emigrantes nordestinos já
tinham chegado, fugidos da seca. A Amazônia do Planalto, não. É paulista,
mineira, carioca. "Você não se separa do que é Nordeste", diz o
poema. Toda favela, toda periferia urbana é Nordeste. "Desde que no Alto
Sertão um rio seca, o homem ocupa logo..." Não. Nunca. Cabral nunca
agradeceria um elogio. "Porque o sertanejo fala pouco: as palavras de pedra
ulceram a boca".
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