sábado, 21 de setembro de 2013

CRÔNICA DE MACHADO DE ASSIS

 
A SEMANA - 20 DE SETEMBRO DE 1892
 
Toda esta semana foi feita pelo telégrafo. Sem essa invenção, que põe o nosso século tão longe daqueles em que as notícias tinham de correr os riscos das tormentas e vir devagar como o tempo anda para os curiosos, sem essa invenção esta semana viveria do que lhe desse a cidade. Certamente, uma boa cidade como a nossa não deixa os filhos sem pão; fato ou boato, eles teriam algo que debicar. Mas, enfim, o telégrafo incumbiu-se do banquete.

 

A maior das notícias para nós, a única nacional, não preciso dizer que é a morte de Carlos Gomes. O telégrafo no-la deu, tão pronto se fecharam os olhos do artista e deu mais a notícia do efeito produzido em todo aquele povo do Pará, desde o chefe do Estado até o mais singelo cidadão. A triste nova era esperada — e não sei se piedosamente desejada. Correu aos outros Estados, ao de São Paulo, à velha cidade de Campinas. A terra de Carlos Gomes deseja possuir os restos queridos de seu filho, e os pede; São Paulo transmite o desejo ao Pará, que promete devolvê-los. Não atenteis somente para a linguagem dos dois Estados, um dos quais reconhece implicitamente ao outro o direito de guardar Carlos Gomes, pois que ele aí morreu, e o outro acha justo restituí-lo àquele onde ele viu a luz. Atentai, mais que tudo, para esse sentimento de unidade nacional, que a política pode alterar ou afrouxar, mas que a arte afirma e confirma, sem restrição de espécie alguma, sem desacordos, sem contrastes de opinião. A dor aqui é brasileira. Quando se fez a eleição do presidente da República, o Pará deu o voto a um filho seu, certo embora de que lhe não caberia o governo da União; divergiu de São Paulo. A república da arte é anterior às nossas constituições e superior às nossas competências. O que o Pará fez pelo ilustre paulista mostra a todos nós que há um só paraense e um só paulista, que é este Brasil.

 

Agora que ele é morto, em plena glória, acode-me aquela noite da primeira representação da Joana de Flandres, e a ovação que lhe fizeram os rapazes do tempo, acompanhados de alguns homens maduros, certamente, mas os principais eram rapazes, que são sempre os clarins do entusiasmo. Ia à frente de todos Salvador de Mendonça, que era o profeta daquele caipira de gênio. Vínhamos da Ópera Nacional, uma instituição que durou pouco e foi muito criticada, mas que, se mereceu acaso o que se disse dela, tudo haverá resgatado por haver aberto as portas ao jovem maestro de Campinas. Tinha uma subvenção à Ópera Nacional; dava-nos partituras italianas e zarzuelas, vertidas em português, e compunha-se de senhoras que não duvidavam passar da sociedade ao palco, para auxiliar aquela obra. Cantava o fundador, D. José Amat, cantava o Ribas, cantavam outros. Nem foi só Carlos Gomes que ali ensaiou os primeiros vôos; outros o fizeram também, ainda que só ele pôde dar o surto grande e arrojado...

 

Aí estou eu a repetir coisas que sabeis — uns por as haverdes lido, outros por vos lembrardes delas; mas é que há certas memórias que são como pedaços da gente, em que não podemos tocar sem algum gozo e dor, mistura de que se fazem saudades. Aquela noite acabou por uma aurora, que foi dar em outro dia, claro como o da véspera, ou mais claro talvez; e porque esse dia se fechou em noite, novamente se abriu em madrugada e sol, tudo com uma uniformidade de pasmar. Afinal tudo passa, e só a terra é firme: é um velho estribilho do Eclesiastes, de que os rapazes mofam, com muita razão, pois ninguém é rapaz senão para ler e viver o Cântico dos Cânticos, em que tudo é eterno. Também nós ríamos muito dos que então recordavam o tempo em que foram cavalos da Candiani, e riam então dos que falavam de outras festas do tempo de Pedro I. É assim que se vão soldando os anéis de um século.

 

Ao contrário, a história parece querer dessoldar alguns dos seus anéis e deitá-los ao mar — ao Mar Negro, se é certo o que nos anuncia o mesmo telégrafo, portador de boas e más novas. Não trato da deposição do sultão, conquanto o espetáculo deva ser interessante; eu, se dependesse de uma subscrição universal, daria meu óbolo para vê-lo realizado com todas as cerimônias, tal qual o Doente imaginário. A diferença entre a peça francesa e a peça turca é que o homem doente parece doente deveras, — semilouco, dizem os telegramas.

 

As deposições da nossa terra não digo que sejam chochas, mas são lúgubres de simplicidade. O teatro de Sergipe está agora alugado para esta espécie de mágicas; não há quinze dias deu espetáculo, e já anuncia (ao dizer do País) nova representação. As mágicas desse teatro pequeno, mas elegante, compõem-se em geral de duas partes — uma que é propriamente a deposição, outra que é a reposição. Poucos personagens: o deposto, o substituto, coros de amigos. Ao fundo, a cidade em festa. Este ceticismo de Aracaju, rasgando as luvas com aplausos a ambos os tenores, não revela da parte daquela capital a firmeza necessária de opinião. Tudo, porém, acharia compensação na majestade do espetáculo; infelizmente este é pobre e simples; meia dúzia de homens saem de uma porta, entram por outra, e está acabado. É uma empresa de poucos meios.

 

Que abismo entre Aracaju e Istambul! Que diferença entre as duas portas sergipenses e a Sublime Porta! Lá são as potências que depõem, presididas pelo pontífice do islamismo, tudo abençoado por Alá e por Maomé, que é o profeta de Alá. Nas ruas sangue, muito sangue derramado, sangue de ódio e de fanatismo. Ouvem-se rugidos da Ilha de Creta e da Macedônia. Na platéia o mundo inteiro. Mas o principal não é isso. O principal espetáculo, o espetáculo único é o desmembramento da Turquia, também notificado pelo telégrafo. Esse é que, se se fizer, dará a este século um ocaso muito parecido com a aurora. Os alfaiates levaram muito tempo a medir e cortar a bela fazenda turca para compor o terno que a civilização ocidental tem de vestir: e, porque as medidas políticas diferem das comuns, vê-lo-emos talvez brigar por dois centímetros. As tesouras brandidas; e, primeiro que se acomodem, haverá muito olho furado. O desfecho é previsto; alguém ficará com um pano de menos, mas a Turquia estará acabada, e a história terá dessoldado alguns elos que já andavam frouxos, se é que isto não é continuar a mesma cadeia.

 

Pode suceder que nada haja, assim como não voará o castelo do Balmoral, com a rainha Vitória e o czar Nicolau dentro. Esta outra comunicação telegráfica desde logo me pareceu fantástica; cheira a imaginação de repórter ou de chancelaria. Nem é crível que tal tragédia se represente às barbas da sombra Shakespeare, sem que este seja consultado quando menos para lhe pôr a poesia e os relatórios policiais não têm.

 

Enfim, melhor que atentados, deposições e desmembramentos, é a notícia que nos trouxe o telégrafo, ainda o telégrafo, sempre o telégrafo. Porfírio Díaz abriu o congresso mexicano, apresentando-lhe a mensagem em que anuncia a redução dos impostos. Estas duas palavras raramente andam juntas; saudemos tão doce consórcio. Só um amor verdadeiro as poderia unir. Que tenham muitos filhos é o meu mais ardente desejo.

 

 

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