A SEMANA - 20 DE SETEMBRO DE 1892
Toda esta semana foi feita pelo
telégrafo. Sem essa invenção, que põe o nosso século tão longe daqueles em que
as notícias tinham de correr os riscos das tormentas e vir devagar como o tempo
anda para os curiosos, sem essa invenção esta semana viveria do que lhe desse a
cidade. Certamente, uma boa cidade como a nossa não deixa os filhos sem pão;
fato ou boato, eles teriam algo que debicar. Mas, enfim, o telégrafo incumbiu-se
do banquete.
A maior das notícias para nós, a
única nacional, não preciso dizer que é a morte de Carlos Gomes. O telégrafo
no-la deu, tão pronto se fecharam os olhos do artista e deu mais a notícia do
efeito produzido em todo aquele povo do Pará, desde o chefe do Estado até o mais
singelo cidadão. A triste nova era esperada — e não sei se piedosamente
desejada. Correu aos outros Estados, ao de São Paulo, à velha cidade de
Campinas. A terra de Carlos Gomes deseja possuir os restos queridos de seu
filho, e os pede; São Paulo transmite o desejo ao Pará, que promete devolvê-los.
Não atenteis somente para a linguagem dos dois Estados, um dos quais reconhece
implicitamente ao outro o direito de guardar Carlos Gomes, pois que ele aí
morreu, e o outro acha justo restituí-lo àquele onde ele viu a luz. Atentai,
mais que tudo, para esse sentimento de unidade nacional, que a política pode
alterar ou afrouxar, mas que a arte afirma e confirma, sem restrição de espécie
alguma, sem desacordos, sem contrastes de opinião. A dor aqui é brasileira.
Quando se fez a eleição do presidente da República, o Pará deu o voto a um filho
seu, certo embora de que lhe não caberia o governo da União; divergiu de São
Paulo. A república da arte é anterior às nossas constituições e superior às
nossas competências. O que o Pará fez pelo ilustre paulista mostra a todos nós
que há um só paraense e um só paulista, que é este Brasil.
Agora que ele é morto, em plena
glória, acode-me aquela noite da primeira representação da Joana de
Flandres, e a ovação que lhe fizeram os rapazes do tempo, acompanhados de
alguns homens maduros, certamente, mas os principais eram rapazes, que são
sempre os clarins do entusiasmo. Ia à frente de todos Salvador de Mendonça, que
era o profeta daquele caipira de gênio. Vínhamos da Ópera Nacional, uma
instituição que durou pouco e foi muito criticada, mas que, se mereceu acaso o
que se disse dela, tudo haverá resgatado por haver aberto as portas ao jovem
maestro de Campinas. Tinha uma subvenção à Ópera Nacional; dava-nos partituras
italianas e zarzuelas, vertidas em português, e compunha-se de senhoras que não
duvidavam passar da sociedade ao palco, para auxiliar aquela obra. Cantava o
fundador, D. José Amat, cantava o Ribas, cantavam outros. Nem foi só Carlos
Gomes que ali ensaiou os primeiros vôos; outros o fizeram também, ainda que só
ele pôde dar o surto grande e arrojado...
Aí estou eu a repetir coisas que
sabeis — uns por as haverdes lido, outros por vos lembrardes delas; mas é que há
certas memórias que são como pedaços da gente, em que não podemos tocar sem
algum gozo e dor, mistura de que se fazem saudades. Aquela noite acabou por uma
aurora, que foi dar em outro dia, claro como o da véspera, ou mais claro talvez;
e porque esse dia se fechou em noite, novamente se abriu em madrugada e sol,
tudo com uma uniformidade de pasmar. Afinal tudo passa, e só a terra é firme: é
um velho estribilho do Eclesiastes, de que os rapazes mofam, com muita
razão, pois ninguém é rapaz senão para ler e viver o Cântico dos
Cânticos, em que tudo é eterno. Também nós ríamos muito dos que então
recordavam o tempo em que foram cavalos da Candiani, e riam então dos que
falavam de outras festas do tempo de Pedro I. É assim que se vão soldando os
anéis de um século.
Ao contrário, a história parece
querer dessoldar alguns dos seus anéis e deitá-los ao mar — ao Mar Negro, se é
certo o que nos anuncia o mesmo telégrafo, portador de boas e más novas. Não
trato da deposição do sultão, conquanto o espetáculo deva ser interessante; eu,
se dependesse de uma subscrição universal, daria meu óbolo para vê-lo realizado
com todas as cerimônias, tal qual o Doente imaginário. A diferença entre
a peça francesa e a peça turca é que o homem doente parece doente
deveras, — semilouco, dizem os telegramas.
As deposições da nossa terra não
digo que sejam chochas, mas são lúgubres de simplicidade. O teatro de Sergipe
está agora alugado para esta espécie de mágicas; não há quinze dias deu
espetáculo, e já anuncia (ao dizer do País) nova representação. As
mágicas desse teatro pequeno, mas elegante, compõem-se em geral de duas partes —
uma que é propriamente a deposição, outra que é a reposição. Poucos personagens:
o deposto, o substituto, coros de amigos. Ao fundo, a cidade em festa. Este
ceticismo de Aracaju, rasgando as luvas com aplausos a ambos os tenores, não
revela da parte daquela capital a firmeza necessária de opinião. Tudo, porém,
acharia compensação na majestade do espetáculo; infelizmente este é pobre e
simples; meia dúzia de homens saem de uma porta, entram por outra, e está
acabado. É uma empresa de poucos meios.
Que abismo entre Aracaju e
Istambul! Que diferença entre as duas portas sergipenses e a Sublime Porta! Lá
são as potências que depõem, presididas pelo pontífice do islamismo, tudo
abençoado por Alá e por Maomé, que é o profeta de Alá. Nas ruas sangue, muito
sangue derramado, sangue de ódio e de fanatismo. Ouvem-se rugidos da Ilha de
Creta e da Macedônia. Na platéia o mundo inteiro. Mas o principal não é isso. O
principal espetáculo, o espetáculo único é o desmembramento da Turquia, também
notificado pelo telégrafo. Esse é que, se se fizer, dará a este século um ocaso
muito parecido com a aurora. Os alfaiates levaram muito tempo a medir e cortar a
bela fazenda turca para compor o terno que a civilização ocidental tem de
vestir: e, porque as medidas políticas diferem das comuns, vê-lo-emos talvez
brigar por dois centímetros. As tesouras brandidas; e, primeiro que se acomodem,
haverá muito olho furado. O desfecho é previsto; alguém ficará com um pano de
menos, mas a Turquia estará acabada, e a história terá dessoldado alguns elos
que já andavam frouxos, se é que isto não é continuar a mesma cadeia.
Pode suceder que nada haja, assim
como não voará o castelo do Balmoral, com a rainha Vitória e o czar Nicolau
dentro. Esta outra comunicação telegráfica desde logo me pareceu fantástica;
cheira a imaginação de repórter ou de chancelaria. Nem é crível que tal tragédia
se represente às barbas da sombra Shakespeare, sem que este seja consultado
quando menos para lhe pôr a poesia e os relatórios policiais não têm.
Enfim, melhor que atentados,
deposições e desmembramentos, é a notícia que nos trouxe o telégrafo, ainda o
telégrafo, sempre o telégrafo. Porfírio Díaz abriu o congresso mexicano,
apresentando-lhe a mensagem em que anuncia a redução dos impostos. Estas duas
palavras raramente andam juntas; saudemos tão doce consórcio. Só um amor
verdadeiro as poderia unir. Que tenham muitos filhos é o meu mais ardente
desejo.
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