QUANDO A VIDA cá fora estiver tão
agitada e aborrecida que se não possa viver tranqüilo e satisfeito, há um asilo
para a minha alma — e para o meu corpo, naturalmente.
Não é o céu, como podeis supor. O
céu é bom, mas eu imagino que a paz lá em cima não estará totalmente
consolidada. Já lá houve uma rebelião; pode haver outras. As pessoas que vão
deste mundo, anistiadas ou perdoadas por Deus, podem ter saudades da terra e
pegar em armas. Por pior que a achem, a terra há de dar saudades, quando ficar
tão longe que mal pareça um miserável pontinho preto no fundo do abismo. Ó
pontinho preto, que foste o meu infinito I (exclamarão os bem-aventurados), quem
me dera poder trocar esta chuva de maná pela fome do deserto! O deserto não era
inteiramente mau; morria-se nele, é verdade, mas vivia-se também; e uma ou outra
vez, como nos povoados, os homens quebravam a cabeça uns I aos outros—sem saber
por que, como nos povoados.
Não, devota amiga da minha alma, o
asilo que buscarei, quando a vida for tão agitada como a desta semana, não é o
céu, é o Hospício dos Alienados. Não nego que o dever comum é padecer comumente,
e atacarem-se uns aos outros, para dar razão ao bom Renan, que pôs esta sentença
na boca de um latino: “O mundo não anda senão pelo ódio de dois irmãos
inimigos”. Mas, se o mesmo Renan afirma, pela boca do mesmo latino que “este
mundo é feito para desconcertar o cérebro humano”, irei para onde se recolhem os
desconcertados, antes que me desconcertem a mim.
Que verei no hospício? O que
vistes quarta-feira numa exposição de trabalhos feitos pelos pobres doidos, com
tal perfeição que é quase uma fortuna terem perdido o juízo. Rendas, flores,
obras de lã, carimbos de borracha, facas de pau, uma infinidade de coisas
mínimas, geralmente simples, para as quais não se lhes pede mais que atenção e
paciência. Não fazendo obras mentais e complicadas, tratados de jurisprudência
ou constituições políticas, nem filosofias nem matemáticas, podem achar no
trabalho um paliativo à loucura, e um pouco de descanso à agitação interior.
Bendito seja o que primeiro cuidou de encher-lhes o tempo com serviço, e
recompor-lhe em parte os fios arrebentados da razão.
Mas não verei só isso. Verei um
começo de Epimênides, uma mulher que entrou dormindo, em 14 de setembro do ano
passado, e ainda não acordou. Já lá vai um ano. Não se sabe quando acordará;
creio que pode morrer de velha. como outros que dormem apenas sete ou oito horas
por dia, e ir-se-á para a cova, sem ter visto mais nada. Para isso, não valerá a
pena ter dormido tanto. Mas suponhamos que acorde no fim deste século ou no
começo do outro, não terá visto uma parte da história, mas ouvirá contá-la, e
melhor é ouvi-la que vivê-la. Com poucas horas de leitura ou de oitiva, receberá
notícia do que se passou em oito ou dez anos, sem ter sido nem atriz nem
comparsa, nem público. É o que nos acontece com os séculos passados. Também ela
nos contará alguma coisa. Dizem que, desde que entrou para o hospício, deu
apenas um gemido, e põe algumas vezes a língua de fora. O que não li é se, além
de tal letargia, goza do benefício da loucura. Pode ser, a natureza tem desses
obséquios complicados.
Aí fica dito o que farei e verei
para fugir ao tumulto da vida. Mas há ainda outro recurso, se não puder alcançar
aquele a tempo: um livro que nos interesse, dez, quinze, vinte livros. Disse-vos
no fim da outra semana que ia acabar de ler o Livro de Uma Sogra.
Acabei-o muito antes dos acontecimentos que abalaram o espírito
público.
As letras também precisam de
anistia. A diferença é que, para obtê-la, dispensam votação. É ato próprio; um
homem pega em si, mete-se no cantinho do gabinete, entre os seus livros, e
elimina o resto. Não é egoísmo, nem indiferença; muitos sabem em segredo o que
lhes dói do mal político, mas, enfim, não é seu ofício curá-lo. De todas as
coisas humanas, dizia alguém com outro sentido por diverso objeto,—a única que
tem o seu fim em si mesma é a arte.
Sirva isto para dizer que a
fortuna do livro do Sr. Aluízio Azevedo é que, escrito para curar um mal, ou
suposto mal, perde desde logo a intenção primeira, para se converter em obra de
arte simples. Dona Olímpia é um tipo novo de sogra, uma sogra avant la
lettre. Antes de saber com quem há de casar a filha, já pergunta a si mesma
(p. 112) de que maneira “poderá dispor do genro e governá-lo em sua íntima vida
conjugal”. Quando lhe aparece o futuro genro, consente em dar-lhe a filha, mas
pede-lhe obediência, pede-lhe a palavra, e, para que esta se cumpra, exige um
papel em que Leandro avise à polícia que não acuse ninguém da sua morte, pois
que ele mesmo pôs termo a seus dias; papel que será renovado de três em três
meses. D. Olímpia declara-lhe, com franqueza, que é para salvar a sua
impunidade, caso haja de o mandar matar. Leandro aceita a condição; talvez tenha
a mesma impressão do leitor, isto é, que a alma de D. Olímpia não é tal que
chegue ao crime.
Cumpre-se, entretanto, o plano
estranho e minucioso, que consiste em regular as funções conjugais de Leandro e
Palmira, como a famosa sineta dos jesuítas do Paraguai. O marido vai para
Botafogo, a mulher para as Laranjeiras. Balzac estudou a questão do leito único,
dos leis unidos, e dos quartos separados; D. Olímpia inventa um novo sistema, o
de duas casas, longe uma da outra. Palmira concebe, D. Olímpia faz com que o
genro embarque imediatamente para a Europa, apesar das lágrimas dele e da filha.
Quando a moça concebe a segunda vez, é o próprio genro que se retira para os
Estados Unidos. Enfim, D. Olímpia morre e deixa o manuscrito que forma este
livro, para que o genro e a filha obedeçam aos seus preceitos.
Todo esse plano conjugal de D.
Olímpia responde ao desejo de evitar que a vida comum traga a extinção do amor
no coração dos cônjuges. O casamento, a seu ver, é imoral. A mancebia também é
imoral. A rigor, parece-lhe que, nascido o primeiro filho, devia dissolver-se o
matrimônio, porque a mulher e o marido podem acender em outra pessoa o desejo de
conceber novo filho, para o qual já o primeiro cônjuge está gasto; extinta a
ilusão, é mister outra. D. Olímpia quer conservar essa ilusão entre a filha e o
genro. Posto que raciocine o seu plano, e procure dar-lhe um tom especulativo,
de mistura com particularidades fisiológicas, é certo que não possui noção exata
das coisas, nem dos homens.
Napoleão disse um dia, ante os
redatores do código civil, que o casamento (entenda-se monogamia) não derivava
da natureza, e citou o contraste do ocidente com o oriente. Balzac confessa que
foram essas palavras que lhe deram a idéia da Fisiologia. Mas o primeiro
faria um código, e o segundo enchia um volume de observações soltas e estudos
analíticos. Diversa coisa é buscar constituir uma família sobre uma combinação
de atos irreconciliáveis, como remédio universal, e algo perigoso D. Olímpia,
querendo evitar que a filha perdesse o marido pelo costume do matrimônio,
arrisca-se a fazer-lho perder pela intervenção de um amor novo e
transatlântico.
Tal me parece o livro do Sr.
Aluízio Azevedo. Como ficou dito, é antes um tipo novo de sogra que solução de
problema. Tem as qualidades habituais do autor, sem os processos anteriores,
que, aliás, a obra não comportaria. A narração, posto que intercalada de longas
reflexões e críticas, é cheia de interesse e movimento. O estilo é animado e
colorido. Há páginas de muito mérito, como o passeio à Tijuca, os namorados
adiante, O Dr. César e D. Olímpia atrás. A linguagem em que esta fala da beleza
da floresta e das saudades do seu tempo é das mais sentidas e apuradas do
livro.
2 comentários:
Nesta crônica, em alguma passagem se reconhece o olhar de um Machado presente também em O Alienista - livro que admiro muito.
Grande abraço, Rogel!
assim eu também, os loucos somos todos nós
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