segunda-feira, 2 de setembro de 2013

GOVERNO GERAL


HISTÓRIA DO BRASIL DE AFRANIO PEIXOTO

GOVERNO GERAL
A escolha recaiu em Tomé de Sousa, fidalgo já provado em África e na Índia, a quem se deu regimento datado de Almeirim, a 17 de dezembro de 1548, que foi a primeira constituição política do Brasil. O novo governador geral partiu a 1.º de fevereiro de 1549 e chegou à baía de Todos os Santos, para fundar a Cidade do Salvador, a 28 de março do mesmo ano.

Escolheu o sítio dentro da baía, (deixando a “Graça” de Diogo Álvares, a “Barra” de Francisco Pereira Coutinho, que ficou sendo a Vila Velha), na encosta norte, depois da entrada da barra, no lugar hoje compreendido entre o Terreiro de Jesus e a Barroquinha ou largo do Teatro, agora Praça Castro Alves; S. Bento e Carmo já seriam portas da cidade. Começou-se a edificar a 1.º de maio (Rodolfo Garcia, Documentos Históricos, Rio 1937), a princípio cerca de pau a pique, para a proteger contra invasões dos Índios, arruando e levantando casas cobertas de palma, paredes de taipa, dois baluartes do lado do mar e quatro da banda de terra, providos de artilharia. Estava constituído o Estado do Brasil, com fundação de sua capital e o seu primeiro núcleo administrativo. Trouxera Tomé de Sousa consigo os primeiros jesuítas, que viriam servir à educação do novo Estado.
Ultra equinoxialem non peccatur, além da linha tudo era permitido, era máxima que traziam todos os aventureiros ao deixarem a Europa. Largados de Deus e do mundo, nesse mato-grosso da América, ainda os mais puros se desmandavam: (o caso do donatário do Espírito Santo depõe...) Ainda agora a Europa permite certas “facilidades” aos tratos coloniais: como os anzóis, os negócios exóticos têm direito de ser tortos. Pois bem, desde meado do século XVI, os Jesuítas aqui pugnaram, sem um minuto de trégua, e em prol da terra que ajudaram a fazer moralmente, pelos três princípios que estabeleceram: boa imigração européia, liberdade dos naturais, identidade moral de todos.
O Padre Manuel da Nóbrega, o maior deles, e o chefe da primeira hora, dirá: “esta terra é nossa empresa” (Cartas, p. 82). Os reinóis viviam em pecado mortal: “o costume da terra é terem muitas mulheres” (p. 79); “mal empregada esta terra em degredados que cá fazem muito mal” (p. 85). “Parece-me coisa mui conveniente mandar S. A. algumas mulheres que lá têm pouco remédio de casamento a estas partes, ainda que fossem erradas, porque casarão todas muito bem” (p. 80). “Cá há clérigos, mas é a escória que de lá vem”. “Dos sacerdotes ouço cousas feas” (p. 75). “Os clérigos desta terra têm mais ofícios de demônios que de clérigos... Querem-nos mal porque lhes somos contrários a seus maus costumes” (p. 116). “De quantos lá vieram nenhum tem amor a esta terra, todos querem fazer em seu proveito, ainda que seja à custa da terra, porque esperam de se ir” (p. 131).
Os Índios eram boçais, preguiçosos, indomáveis, resistentes à servilidade e ao trabalho regular, intemperantes, viciosos, antropófagos, mas eram “papel branco para neles escrever à vontade” (p. 125). Havia mister educá-los e defendê-los para que se educassem. Os Brancos preavam-nos, ferravam as “peças”, vendiam-nos, usando e abusando deles, como se fossem animais. Para os proteger, chegavam os Padres a fechar os olhos à escravidão negra. Obedeciam a breve de Paulo III, de 1537, que declarava os Índios “entes humanos como os demais homens não podiam ser reduzidos ao cativeiro (ao Cardeal Arcebispo de Toledo, em 28 de maio). Urbano VIII faz a doutrina extensiva ao Brasil. Mas, ainda assim, entrariam em constante conflito com os reinóis predadores até a expulsão dos Jesuítas de S. Paulo em 1640 e de Vieira e Companheiros, no Maranhão, em 1661. Finalmente a extinção da Companhia, mais tarde, prêmio de martírio concedido aos Jesuítas protetores da raça aborígene. Em vinte anos porém, de apostolado, a moral está mudada na terra. Os Índios têm sua mulher, sua família, sua casa, sua roça e já não são antropófagos e têm hábitos civilizados. Os reinóis começam a entrar na regra. Clérigos e leigos sofrem a influência contagiante da moral jesuíta, feita de pureza e tolerância. Amanhece o Brasil.
A identidade moral de todos foi feita pela educação. Desde 49, na Bahia, que o P.e Vicente Rodrigues tem aula para reinóis e índios. O P.e Azpilcoeta Navarro traduz, em tupi, orações e catecismo, para a conversão. O irmão José de Anchieta institui uma gramática da língua da terra, que todos aprendem, para a catequese. Aulas de latim e de casos aos irmãos: o irmão Luiz Carvalho ensina Virgílio, o 2.º livro da “Eneida”, na Bahia dos meados século XVI. Os batismos são sem conta, como os casamentos. Às vezes tornam à barbárie, mas não se esmorece: mais catequese, mais exemplos. O P.e Antônio Rodrigues penetra no sertão e vem, rasgado dos espinhos dos matos, pés chagados das pedras do caminho, à frente de centenas de índios, a entoar a ladainha. A educação dos filhos traz a educação dos pais. À rainha Dona Catarina quererão escrever esses pais para que lhes mande santas mulheres, que lhes façam, às filhas, o que os padres fazem aos filhos.
Esses Jesuítas foram edificadores de casas, igrejas, colégios, até cidades: Bahia, S. Paulo, Rio são fundações deles, em grande parte. Em vinte anos, vemos as palhas que eram a igreja e o colégio da Bahia reconstruídas em taipa, chegarem à pedra e cal, antes da cantaria da Catedral, no Terreiro de Jesus; Piratininga saiu de onde era, para se tornar São Paulo, em torno do Colégio dos Padres, que das alturas de um oiteiro dominava as várzeas do Tietê e do Anhangabaú. Foram médicos, e a medicina, ou o remédio; enfermeiros, assistiam aos abandonados e enterravam os mortos. As epidemias e andaços coloniais eram calamitosos, em raça de corpo aberto, nova aos contágios civilizados. Há trechos de cartas que fazem horror, descrevendo as pestes de 59 a 63. “Contaminou a mor parte da terra” e apenas “escassamente deixou viva a quarta parte dela”, diz o cronista P.e Simão de Vasconcelos, desta pestilência de bexigas. A tudo, a tratar, a preparar para morrer, a ajudar na morte, a enterrar, ocorriam os Padres. E não só contra as doenças e pestes contra a fome e a míngua, “porque esta pobre gente é tão miserável e coitada, diz o P.e Baltasar Fernandes, que espera lhe demos do nosso”, que não tinham muitas vezes, pois, no princípio, viviam de esmolas. Chegavam “a tanta miséria, esse Gentio, que, de fracos e magros, morriam por esses matos.” “Acontecia, diz ainda o P.e Leonardo do Vale, de lançar-se um para beber água e ficar ali, sem mais se poder levantar, e assim morrer.” “A causa desta pobreza, disse o P.e Jorge Rodrigues, é por a terra em si ser pobre.” Mas apelavam para os Padres, que a tudo acudiam.
Eram a “poçanga” da colônia, dizia o gentio, como quem dissesse: a mezinha, o remédio, a salvação. Os Jesuítas Portugueses foram a nossa Providência, ao nascer o Brasil. A epopéia dos “Lusíadas” tem o reverso da “História Trágico-Marítima”, em que se conta o martírio das Navegações, e tem o das “Cartas Jesuíticas”, que são os anais, sofridos, da Colonização. Quem podia testemunhar, testemunhou. Tomé de Sousa, tornando a Portugal, confessou: “o Brasil não era senão os Padres” “que se lá estivessem seria a melhor cousa que el-Rei teria, e senão que nada teria no Brasil...” (Cartas avulsas, p. 19).
O “BRASIL ESQUECIDO”(16)
Depois disso, desse meio século contínuo de preocupações, quase ano a ano, para exploração, reconhecimento, caça aos invasores, feitorias fundadas, tentame das capitanias, governo geral e padres jesuítas provendo ao Brasil, educando a gente para servi-lo... é profundamente injusto e doloroso ouvir, e ler, de um ingrato nativismo, — que vive, ainda hoje, como que a fazer sempre a independência do Brasil — ouvir, e ler, que o Brasil foi esquecido.

A evidência foi outra, documentalmente. Nenhuma nação colonizadora fez mais ou melhor com as suas colônias. A Espanha, a Holanda, a Inglaterra, ainda hoje, não se podem comparar a Portugal. Nenhuma assimilou o indígena. Nenhuma deu identidade moral ao aborígene e ao colonizador, em nação uma e a mesma, idêntica à mãe Pátria, como Portugal. Vimos que não podia fazer muito e não poderia fazer mais: fez tudo o que pôde. Sem gente, sem dinheiro, cercado de invejosos e inimigos. A terra era escassa e quase nada produzia. Apenas pau-brasil, mercadoria pobre. Simonsen dá exemplo de uma nau, do valor aquisitivo de hoje, valendo mais de 1.500 contos, que carregava apenas 1.000 contos de brasil: de especiarias da Índia seriam 10.000 contos. Vir ao Brasil negociar era perder dinheiro e tempo: mas vinham. O mesmo, diz aquele P.e Rui Pereira aludido, quanto ao moral, mas os Jesuítas vieram. E havia Franceses: Dom João III alegou, em 1530, que os prejuízos dados por eles andavam por mais de 100.000 contos, de hoje. Aquele citado historiador calcula que, de 1500 e 1532, o valor do trato do pau-brasil orçaria por 120.000 contos, dos quais a Coroa tinha 30.000. Para Portugal, o Brasil foi deficitário nas primeiras décadas. Simonsen, que descobriu secretas ignorâncias de história no Brasil, com a decifração da economia, diz, cheio de razões e números, que sequer “o lucro da Coroa não cobria as despesas com a defesa do domínio.” (Op. cit., t. I, p. 98).
E não havia só defender, porém explorar e constituir, fundar e produzir. Povoar, sobretudo. Para as Índias era defeso irem mulheres portuguesas(17): mas vieram para aqui, vieram ricos-homens e fidalgos e a arraia miúda misturou-se com os portadores dos nomes mais nobres do reino. E isto sem proveito, como os pais, dignos desse nome, que criam os filhos, sem sequer pensarem no que vão dar, cuidando apenas em fazê-los o melhor possível. Como cumprindo um dever.
Portugal, comparado a qualquer das nações colonizadoras de ontem ou de hoje, foi benemérito; julgado em si, teve a abnegação que só tem, na linguagem humana, um epíteto: foi materno... Como essas criaturas divinas que morrem, ou ficam perpetuamente enfermas, esvaídas de fadiga e fraqueza, por terem a glória de haver criado um filho muito grande... Filho às vezes ingrato: também é da natureza.



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