terça-feira, 28 de abril de 2015

Comerei teu corpo no crânio da tua cabeça



Comerei teu corpo no crânio da tua cabeça

São versos que jamais esqueci. Eu os li citados num livro antigo, do poeta Narciso Lobo, meu amigo, já falecido. Canção de vitória indígena que diz:

“Comerei teu corpo no crânio da tua cabeça 
Sobre tuas cinzas dançarei 
E exultarei!”

Narciso os cita. Narciso faleceu cedo, aos 59 anos, depois de lutar contra o vírus de várias doenças, o vírus da morte.

Ele envelheceu muito, antes de morrer. Quando o conheci, ele era um rapaz bem jovem e lépido, e escrevia belos poemas.

No momento em que escrevo, não encontro o seu livro onde cita os versos.

O crânio como recipiente é chamado de “capala”, no budismo tibetano. Inúmeras deidades têm capalas nas mãos. Os Protetores (os Mahakalas) costumam ter um colar de 50 crânios humanos no pescoço, e eu já tive um damaru, um tambor ritual, feito de duas metades de crânios, um masculino e outro feminino. Enfim, meditar em cemitérios, mesmo visualizados, e usar crânios humanos é uma prática comum ao budismo tântrico. Em Katmandu, conheci um grande lama tibetano, Ponlop Rinpochê, que almoçava usando uma capala humana como prato. Era um modo de acostumar-se com a ideia da morte, disse.

Comer numa capala humana – dizia ele – nos traz a presença da morte, aquilo que sempre queremos evitar.

Há uma meditação do budismo que diz: “A morte é certa, a vida é incerta”. Repetindo este lema dia e noite transforma nossa percepção dos problemas da vida. Os grandes problemas da vida são um nada, diante da imensidão arrasadora da morte.

A “fome é um não, que não admite explicação”, escreveu Cassiano Ricardo. Eu diria “a morte não tem explicação”:

A morte é um não, que não admite explicação.

A morte sempre está além da compreensão humana.

Diz Cassiano:

“A máscara
da fome
é um feroz não”.

– “ ... a fome dá muita raiva (disse Benedita da Silva), ainda mais quando os filhos também estão famintos. Você fica pensando: ‘Quero comer, não estou conseguindo, que raiva'. Isso, quando você consegue pensar, porque, quando você fica muito tempo sem comer, não pensa”.

O poema de Cassiano continua:

A fome ri.
A fome esculpe, cinzela
as suas criaturas
(ou caricaturas?)

– “Com o tempo, – diz Benedita da Silva – comecei a vender pastéis, salgadinhos, melhorando de vida. Mas a fome te marca. Hoje, tenho 60 anos e tudo isso aconteceu há 40 anos. E olha que não foi lá no Nordeste não, foi aqui no Chapéu Mangueira, na Zona Sul do Rio.

Ela diz: – 'A fome é indigna'. A fome é um Não.

Um não que não
aceita explicação.

Mas o cântico indígena te dá o contrário, é a ode da vitória sobre a morte, a vitória sobre os inimigos:

“Comerei teu corpo no crânio da tua cabeça 
Sobre tuas cinzas dançarei 
E exultarei!”

Alguém já escreveu: “Com certeza, é melhor comer os inimigos que abandonar aos corvos e às gralhas o fruto da vitória!”

A antropofagia no Brasil era um ritual macabro. Como se vê no filme “Como era gostoso o meu francês”, de Nelson Pereira dos Santos.

Quando se diz: “Comerei teu corpo no crânio da tua cabeça / Sobre tuas cinzas dançarei / E exultarei!” – afirma-se a vitória sobre o outro, sobre os adversários. Por isso Narciso Lobo o cita no início de seu livro, naquela época da ditadura militar que ele sofreu na pele. Narciso sofreu no corpo, também, a discriminação da sexualidade.

Dele cito de cor um poema-síntese:

“Seu Joaquim ali da esquina
tem um filho que é todo errado:
canhoto, comunista e viado”.

Na vida profissional, Narciso foi um vencedor. Doutor em comunicação, chegou a Reitor da Universidade.

“Sobre tuas cinzas dançarei
E exultarei!”

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