AS FLORES VESTIDAS DE BRANCO 
ROGEL SAMUEL 
  
  
Na rua sou abordado. A mulher que me pede dinheiro. Geralmente nunca 
paro, nessas ocasiões. 
Eu vinha de um concerto. A Filarmônica do Rio de Janeiro, de Florentino 
Dias, que melhorou muito. Concerto pela paz, com distribuição de muitas 
flores brancas por moças vestidas de branco, como castas noivas e com a 
presença do cônsul americano e de sua família. Encontrei meu amigo C. no 
foyer. Conversamos sobre política e música. Falamos sobre Menininha 
Lobo, uma grande pianista brasileira. Digo: Cassar sempre me lembra os 
anos sessenta. O Congresso é o contrário das ditaduras. Ele não me 
compreende e se irrita, acha que defendo Jader. Vejo que nossa conversa 
se torna cada vez mais ácida e rapidamente me despeço, pois o concerto 
vai começar. O começo foi fraco, a Abertura "Salvador Rosa", de Carlos 
Gomes. Depois a orquestra foi ficando maior, foi "esquentando", e no fim 
apresentou uma Quinta Sinfonia de Tchaikovsky que emocionou. Conheço a 
orquestra desde o tempo do falecido amigo Nathanael Caixeiro. "Nata", 
violinista da orquestra, professor de filosofia e história, e tradutor. 
Traduzia de várias línguas. Tinha coleção de violinos. Mas era pobre, 
morava mal. O apartamento dava para um viaduto horrível, o Paulo de 
Frontin. Eu o conheci em Campo Grande, quando professor do Estado. Logo 
encontramos um ponto de apoio nas nossas conversas: a música. Nata 
também pintava, e muito bem. Assinava ironicamente "Petit-grand", porque 
era baixinho. Teve morte antológica. Um domingo cedo foi levar o cão 
para passear. Depois, como sempre fazia, ia praticar o violino, sentado 
na cama. Sua mulher foi fazer um café. Quando voltou, ele estava morto, 
segurava o violino e o arco, braços abertos na cama. Sou abordado na rua 
por mulher diferente, não exatamente mendiga, vestida de classe média 
baixa, uma viúva, ou abandonada pelo marido. Noto que suas mão tremem, 
pálidas. A rua deserta, me pede dinheiro, envergonhada de pedir. "Tenho 
de comprar comida pra minha casa", ela diz, e abre dois sacos plásticos 
de supermercado, onde posso ver bananas. "Não tenho mais dinheiro", diz 
ela, e começa a chorar. Parece doente. Suas lágrimas eram reais. Ela 
sofria. Via-se a pedir dinheiro e sofria. Soluçava para dentro, por sua 
desgraça. Os sinos, à distância, tocam. A desgraça, a fome. Lembrei-me 
de que, na Sala Cecília Meireles, tocou-se a "Valsa das Flores". Das 
flores brancas, alvas, puras, castas. Meu pensamento fugia, voava pelo 
espaço. Uma menina passou, sorrindo. Era como se estivesse vestida de 
branco. Sorriu. Sento-me no bar e me ponho a ler Alfonsina Storni: 
               Tu me queres alva, 
               me queres de espuma, 
               me queres de nácar, 
               que seja açucena 
               mais casta que todas. 
               De perfume suave; 
               corola fechada. 
               Nem raio de lua 
               filtrado me toque. 
               Nem a margarida 
               seja minha irmã. 
               Tu me queres nívea, 
               Tu me queres branca, 
               tu me queres casta. 
               Tu, que as taças todas 
               já tiveste à mão. 
               Os lábios corados 
               de frutos e mel. 
               Tu, que no banquete 
               coberto de pâmpanos, 
               as carnes gastaste 
               festejando a Baco. 
               Tu, que nos jardins 
               escuros do engano, 
               lascivo e vermelho 
               correste no abismo. 
               Ó tu, que o esqueleto, 
               não sei por que graça 
               ou por que milagre 
               conservas intacto, 
               só me queres branca, 
               (que Deus te perdoe!) 
               só me queres casta, 
               (que Deus te perdoe!) 
               só me queres alva. 
               Foge para o bosque, 
               vai para a montanha, 
               purifica a boca, 
               vive na humildade. 
               Segura com as mãos 
               a terra orvalhada. 
               Alimenta o corpo 
               de raiz amarga. 
               Bebe a água das rochas, 
               dorme sobre a geada, 
               renova os tecidos 
               com salitre e água. 
               Conversa com os pássaros, 
               lava-te na aurora. 
               E já quando as carnes 
               ao corpo te voltem, 
               e quando hajas posto 
               nas carnes a alma 
               que, pelas alcovas 
               ficou enredada. 
               Então, homem puro, 
               pretende-me nívea, 
               pretende-me branca, 
               pretende-me casta. 
(Trad. de Oswaldo Orico) 
 
 
Nenhum comentário:
Postar um comentário