domingo, 11 de novembro de 2007

O piano


Rogel Samuel


Sim, Guiomar Novaes foi uma das melhores pianistas do Século XX e da
minha infância. Quando a Philips estava elaborando a coleção "Grandes
Pianistas", tentou inclui-la, mas esbarrou no problema da baixa
qualidade das gravações da Vox dos anos 20. Nelson Freire possui o
Steinway que pertenceu à grande dama. Segundo Freire, que está na
coleção - o único brasileiro na coleção - além de Guiomar, outros
brasileiros/as poderiam estar incluídos. Como Magdalena Tagliaferro e
Jacques Klein. Sou vizinho de um, Arthur Moreira Lima.
Quando eu era menino acordava com a vizinha tocando Chopin. Não tocava
mal. Meu pai foi meu primeiro e último professor de piano, que não toco.
Desde cedo não toco, ouço. Gosto de ouvir e sonhar. Sonhar é voar na
imaginação das paisagens sonoras. Não posso imaginar como seria um mundo
sem música. Não seria meu mundo. Não seria silencioso, pois o silêncio
também é música.
Meu pai viajava pelos grandes rios da Amazônia e me levava com ele. Às
vezes, entrava num lago, ancorava, e ali passava a noite, ao abrigo de
alguma tempestade. No Amazonas se chamava aquilo de lago, que se entrava
por um "furo", ligado ao grande Rio. Havia pássaros monstruosamente
belos como deuses coloridos, bailando entre as grandes árvores sagradas.
Antes da noite cair completamente, meu pai subia no teto da lancha e
tocava violino. O silêncio era tão que o violino soava nas estrelas.
Certa vez, ele viajou muito tempo com um adolescente meio índio, que
fazia de marinheiro. Durante aquele tempo ele estudava, diariamente, e
durante várias horas por dia, certa música de Bach. Muitos anos depois,
um dia ele chegou num vilarejo onde havia uma festa com alguns músicos
tocando. Um dos músicos se aproximou dele e perguntou: "Sr. Samuel, o
senhor não se lembra de mim?" Era o jovem marinheiro. "O Sr. ainda toca
aquela musiquinha?" e o homem tocou maravilhosamente Bach ao violão...
Tenho tudo que posso de Guiomar Novaes. Os melhores discos são com
Kemplerer. Ela fez sucesso naquela época de ouro da música mundial.
Estavam todos vivos, os grandes: Rubinstein, Schnabel etc.
Minha amiga U.A. diz que minhas crônicas são "crônicas de saudade de
Manaus". Ela me mandou um poema sobre seus 70 anos. Tomei um susto: não
podia acreditar. Sim, havia muitos discos de Guiomar Novaes na minha
infância. Assim como Bidu Sayão, cantando o terceiro poema de "La bonne
chanson", de Verlaine, que um dia traduzi livremente assim:
A lua branca
luzir no bosque
de cada ramo
parte uma voz
sob a folhagem...

Ó bem amada.

Lago reflete
profundo espelho
a silhueta
do colmo negro
o vento chora...

delírio, é a hora.

vasta e macia
tranqüilidade
sente descer
do firmamento
o astro irisa...

estranha é a hora.

3 comentários:

Isaias Malta disse...

Você não toca... e eu me meti a aprender depois dos 40. Coragem insana de quem não tem vergonha de se retornar aos cueiros. Belas crônicas vejo aqui e me atraí pelo piano da Guiomar, definitivamente a(o) maior pianista brasileiro. Pena que tenha tão pouco material sobre ele, pena que não possamos comprar seus discos no Brasil. Consegui comprar UM CD até agora.

Unknown disse...

A sensibilidade é somente para quem tem a alma pura e bela. Ao ouvir uma música que tão bem tocada o espírito se enobrece e pedi mais canções que iluminam a alma.Parabéns por ser mais um a apreciar a alma humana. Peço com gentileza caso os tenha os nomes dos avós de Guiomar novaes, pois estou construindo a minha arvore genealogica e preciso muito destes nomes, agradeço desde já.

Unknown disse...

marafalleiro@hotmail.com