O piano 
Rogel Samuel 
Sim, Guiomar Novaes foi uma das melhores pianistas do Século XX e da 
minha infância. Quando a Philips estava elaborando a coleção "Grandes 
Pianistas", tentou inclui-la, mas esbarrou no problema da baixa 
qualidade das gravações da Vox dos anos 20. Nelson Freire possui o 
Steinway que pertenceu à grande dama. Segundo Freire, que está na 
coleção - o único brasileiro na coleção - além de Guiomar, outros 
brasileiros/as poderiam estar incluídos. Como Magdalena Tagliaferro e 
Jacques Klein. Sou vizinho de um, Arthur Moreira Lima. 
Quando eu era menino acordava com a vizinha tocando Chopin. Não tocava 
mal. Meu pai foi meu primeiro e último professor de piano, que não toco. 
Desde cedo não toco, ouço. Gosto de ouvir e sonhar. Sonhar é voar na 
imaginação das paisagens sonoras. Não posso imaginar como seria um mundo 
sem música. Não seria meu mundo. Não seria silencioso, pois o silêncio 
também é música. 
Meu pai viajava pelos grandes rios da Amazônia e me levava com ele. Às 
vezes, entrava num lago, ancorava, e ali passava a noite, ao abrigo de 
alguma tempestade. No Amazonas se chamava aquilo de lago, que se entrava 
por um "furo", ligado ao grande Rio. Havia pássaros monstruosamente 
belos como deuses coloridos, bailando entre as grandes árvores sagradas. 
Antes da noite cair completamente, meu pai subia no teto da lancha e 
tocava violino. O silêncio era tão que o violino soava nas estrelas. 
Certa vez, ele viajou muito tempo com um adolescente meio índio, que 
fazia de marinheiro. Durante aquele tempo ele estudava, diariamente, e 
durante várias horas por dia, certa música de Bach. Muitos anos depois, 
um dia ele chegou num vilarejo onde havia uma festa com alguns músicos 
tocando. Um dos músicos se aproximou dele e perguntou: "Sr. Samuel, o 
senhor não se lembra de mim?" Era o jovem marinheiro. "O Sr. ainda toca 
aquela musiquinha?" e o homem tocou maravilhosamente Bach ao violão... 
Tenho tudo que posso de Guiomar Novaes. Os melhores discos são com 
Kemplerer. Ela fez sucesso naquela época de ouro da música mundial. 
Estavam todos vivos, os grandes: Rubinstein, Schnabel etc. 
Minha amiga U.A. diz que minhas crônicas são "crônicas de saudade de 
Manaus". Ela me mandou um poema sobre seus 70 anos. Tomei um susto: não 
podia acreditar. Sim, havia muitos discos de Guiomar Novaes na minha 
infância. Assim como Bidu Sayão, cantando o terceiro poema de "La bonne 
chanson", de Verlaine, que um dia traduzi livremente assim: 
A lua branca 
luzir no bosque 
de cada ramo 
parte uma voz 
sob a folhagem... 
Ó bem amada. 
Lago reflete 
profundo espelho 
a silhueta 
do colmo negro 
o vento chora... 
delírio, é a hora. 
vasta e macia 
tranqüilidade 
sente descer 
do firmamento 
o astro irisa... 
estranha é a hora. 
 
 
3 comentários:
Você não toca... e eu me meti a aprender depois dos 40. Coragem insana de quem não tem vergonha de se retornar aos cueiros. Belas crônicas vejo aqui e me atraí pelo piano da Guiomar, definitivamente a(o) maior pianista brasileiro. Pena que tenha tão pouco material sobre ele, pena que não possamos comprar seus discos no Brasil. Consegui comprar UM CD até agora.
A sensibilidade é somente para quem tem a alma pura e bela. Ao ouvir uma música que tão bem tocada o espírito se enobrece e pedi mais canções que iluminam a alma.Parabéns por ser mais um a apreciar a alma humana. Peço com gentileza caso os tenha os nomes dos avós de Guiomar novaes, pois estou construindo a minha arvore genealogica e preciso muito destes nomes, agradeço desde já.
marafalleiro@hotmail.com
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