quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Pela cidade

Rogel Samuel

Caminho pela calçada. Atravesso a rua. Desço no Metrô. Todo Metrô se
parece. O do Rio não é triste. Nem lúgubre, como o de Paris. Parece o de
Frankfurt. No percurso encontro meu amigo H. Não o via há anos. Físico e
filósofo, ex-companheiro da FNFi. Estudamos juntos, depois trabalhamos
no Colégio Estadual Amaro Cavalcante. "Tenho traduzido a Metafísica de
Aristóteles do grego", ele diz. É verdade. Professor aposentado. Mal
vestido. Mal-tratado. Vive da aposentadoria. Sempre foi assim. Nunca
conseguiu uma conexão prática com a vida. Por isso penso como eram bons
os antigos mecenas. Há gênios que não podem viver sem mecenas. Meu
amigo foi um deles. Conversamos sobre Carneiro Leão, sobre Kant. Ele lê
Kant em alemão, Gorki em russo, etc. Nunca soube ganhar dinheiro. Anda
feito mendigo. Conheci muita gente assim, na minha geração. Um dia,
encontrei Anísio Teixeira e me dirigi a ele, pensando que fosse o
porteiro da Faculdade. Foi a primeira pessoa que encontrei, no Rio.
Anísio foi meu professor de Filosofia da Educação. O único professor
que, após as aulas, recebia palmas da classe. Nunca vi isso nem antes.
Nem depois. A última aula, já cassado, foi sobre o conceito de liberdade
na educação. Naquela faculdade assisti a Álvaro Vieira Pinto. Havia
efervescência cultural para a vida, na minha geração. Mas o mundo em que
vivíamos desapareceu em 64. No Metrô, conversamos sobre Carneiro Leão e
sobre Heidegger. A conversa seria interminável, se tivéssemos tempo.
Adoro conversar. Continuo minha caminhada para Botafogo. Caminho pela
Voluntários da Pátria. Há muito barulho. Entro numa velha loja de disco.
Compro, usado, o CD da Sinfonia 9 de Schubert, a "grande", na magnífica
interpretação de Solti, que já conheço. Georg Solti fez melhor do que
Bernstein. Solti é um dos grandes maestros, como Hermann Scherchen, como
Mravinsky. Mais adiante, na calçada, um sebo. Encontro um livro de
Barthes, que me custa CR$ 2,00. Continuo pela Marquês de Caravelas.
Entro no Aurora. Está vazio. A noite vai cair. Peço uma caipirinha e me
ponho a ler Barthes. Ninguém me importuna. Estou, como num café
parisiense, onde é bom para ler. Onde é bom estar só, consigo mesmo.
Parece que nós, brasileiros, não agüentamos a solidão. Uma pessoa só,
num bar, é olhada com desconfiança. Ou pior: com pena. Uma vez fui
encontrado por uma amiguinha num bar que foi logo disparando: "coitado,
sozinho". Tive de engolir, mas desde então jurei para mim mesmo (e para
minha amiga Annie Girault) que ainda vou morar em Paris. Nem que seja
numa mansarda no norte da cidade, onde tão barato é viver. Mas o Aurora
é um velho bar. Tem cem anos. O livro, que já li, se torna maravilhoso,
ali. Outro dia fui à Adega Flor de Coimbra, na Rua Teotônio Regadas, na
Lapa. No mesmo lugar morou Portinari. Ao lado, a Sala Guiomar Novaes,
atrás da Sala Cecília Meireles. Era freqüentada por Villa Lobos, Manuel
Bandeira. Na Sala Guiomar Novaes estão as "mãos", em bronze, da
pianista. Constato que eram bem pequenas. Quem toca é uma pianista que,
famosa, não sei dizer. Às vezes é boa. Às vezes é "dura". Na minha
frente estava um agradável senhor, com quem converso antes do concerto,
sobre a iluminação, o apagão etc. No programa havia uma certa "Terceira
balada", de J. A. Almeida Prado, primeira audição mundial. Foi o melhor
do programa. A balada era uma improvisação livre sobre o tema da música
banal: "Parabéns para você". Depois vi que o autor era aquele agradável
senhor com quem conversei sobre banalidades. Na volta não pude ir pela
calçada e entrar no Metrô, como gostaria. A noite tinha caído.
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Carta recebida:
Prezado Rogel,
Há algum tempo, C, grande amigo, falou-me de seu site e chegou a
enviar-me algumas crônicas. Outros amigos e colegas de trabalho também o
fizeram. Por razões de mudança de cidade e de provedor, deixei de
receber notícias e crônicas de seu site. Em julho, recebi uma crônica,
através de um amigo, e fiquei imensamente tocada. Nasci em S. João
del-Rei, sob os cheiros dos romaninhos, incensos e toques de sinos.
Fiquei a pensar sobre o olhar de luto, os mistérios, as paixões e a dor
que, desde criança, tomavam conta dos meus sentidos. Gostaria que você
soubesse que suas palavras me tocaram visceralmente...

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