quarta-feira, 7 de novembro de 2007


a sinfonia patética


Ouço a Sinfonia chamada 'Patética', a no 6. É gravação antiga, mas excelente, onde Karl Böhm conduz a London Symphony Orchestra. Ela já foi chamada de "Sinfonia Suicídio', pois pouco tempo depois, Tchaikovsky bebeu um copo de cólera, um copo de água não fervida. Outros viram nela conturbações sexuais de Tchaikovsky. O que é tolice, a sexualidade não se expressa em música, mas o sentimento. Talvez se ouça ali a angústia existencial do compositor, que na Abertura Fantasia Romeu e Julieta transparece. É comum ouvir-se falar da sexualidade de Tchaikovsky, da surdez de Beethoven etc, como se os acidentes, os atributos tivessem algo a ver com a arte de suas composições. O amor proibido, a tristeza, a emoção melhor aparece em "Tristão e Isolda", de Wagner, compositor que não tinha problema psicológico. Ouça a desolação do Quinteto para clarinete de Brahms, o Opus 115, uma de suas obras finais. Ou o "Réquiem", de Mozart, composto mesmo no seu leito de morte, sobrenatural e mórbido, com a "Lacrymosa", tão diferente da alegria afirmativa de suas outras obras anteriores. São músicas perigosas, que fazem muito mal à saúde do corpo e da alma, que podem até matar, como disse e proibiu o médico de Karajan, vendo que o maestro estava emocionalmente doente. São reflexões sobre a dor, sobre a dor da miséria da humana condição, sobre a morte. São a própria Dor. A paixão levada ao extremo. Mas a relação entre arte e biografia não tem, contudo, uma direta relação. Há artistas que não são suicidas, nem necessariamente românticos. Há os funcionários públicos, como o genial Drummond. Há os bem casados, os bem nascidos, os felizes, os saudáveis. O gênio, entretanto, não tem um parafuso a menos, mas dez a mais. Seu mais popular tema é o amor. Seu exemplo máximo é "Tristão e Isolda". As partes desta notável ópera explicam seu conteúdo, é a "Confissão de Amor", o "Desejo", o "Olhar" para, no fim, acontecer aquela terrível e lentíssima "Libertação pela morte", a "Morte de amor". Lembro-me de uma passagem do texto em que há sua expressão maior e mais bela, quando Isolda diz que, "para matar-me basta que me olhes nos olhos..." Por quê diz ela aquilo? Porque se ela vir a aguda angústia do fundo dos olhos do amado, aquilo vai penetrar o seu ser através dos olhos, vai entrar como lâmina, descendo para apunhalar seu coração. Dizia Bruno Walter que, quem nunca viveu uma paixão extrema, não consegue regê-la. A ópera em três atos tem música e libreto de Wagner, baseada no drama de Gottfried von Strassburg, que deriva da lenda celta de Tristão. A música do primeiro ato descreve um barco em que a princesa Isolda viaja, com sua aia Brangane, vindo da Irlanda, conquistada pelos exércitos do Rei de Cornualles. Seu tema é a Guerra, o Terror. Isolda viaja ao país do conquistador, Rei Marke, para converter-se em sua esposa. Pesa-lhe a grande tristeza, esmaga-a o seu destino. Isolda se sente sufocada, pede ar, e, naquele momento, com amplidão teatral, sua aia abre as cortinas do palco e então aparece a outra parte do navio, onde está o amado Tristão, que era sobrinho do próprio rei de Cornualles, e fora encarregado pelo tio de dar escolta a Isolda. A beleza reside naquela estranha música, que vem em ondas. São as Oleosas Ondas do Destino, da Vida e da Morte. É a Abertura em Ondas, inexplicavelmente impressionista, que hipnoticamente nos arrasta, nos amarra nas suas malhas, nas suas vagas, nos sufocam, nos levam ao terror, ao calafrio, ao Medo. É aquela música lenta, demasiadamente lenta, que tem peso, que nos puxa um mar, um oceano, mas de chumbo sem fundo, de pesadelo, de escuridão inatravessável, impenetrável. Oh, talvez seja aquela a mais sublime e incômoda música que já se ouviu, que já compôs, que já se dispôs, a música dos nossos medos e de nossas lamentações, dos velados dedos das tétricas parcas. A abertura de Tristão e Isolda é aquele prelúdio ao nihilismo da inocuidade do amor, da voz do silêncio da incomunicabilidade. A idéia, entretanto, de que a pessoa física do autor tenha a ver com a obra é enganadora. Lembro-me do caso de amigo que, estando em Londres, foi assistir à conferência de Antony Burgess. Ele havia acabado de ler "A laranja mecânica", e de assistir ao filme horrorshow de Stanley Kubrick de 1971. Mas qual foi sua surpresa quando um senhor de meia idade entrou na sala, desajeitado num paletó e gravata, acompanhado pela matrona gorda sua esposa: Sim, aquele era o autor de "A Clockwork Orange".

Um comentário:

Isaias Malta disse...

Um tema recorrente: O homem e o mito, é o que cerca os gênios. A recepção deles une alguns fatos pitorescos da vida com a obra e constroem pontes aparentemente necessárias, mas absurdas. Cheguei neste blog através do geocities, do texto do Arnaldo Senise sobre Guiomar Novaes. Um belo blog literário que engrandece a produção lusófona.