segunda-feira, 5 de novembro de 2007

O Naufrágio da Princesa Laura



Rogel Samuel





O naufrágio da «Princesa Laura», na Boiuçu de seis km de largura, me levou às estórias que na minha infância se contavam daquela imensa região, como a do naufrágio da Bitar, o desastre da gaiola Izidoro Antunes, tragédias freqüentes no Amazonas de ontem, como o desaparecimento da Izidoro Antunes, em sua primeira, única e última viagem, tinha acabado de chegar da Inglaterra, moderna, confortável, aparelhada com luz elétrica, estava cheia de mercadorias quando desapareceu. Depois disso o Otero, o Perseverança, o Prompto, a Macau, o Etna, o Colomy, o Júlio de Roque, o Waltin, o Mazaltob, o Ajudante (abalroado), o Manauense (adernado), o Itucumã, o Paes de Carvalho (incendiado), o Miguel, o Paraense, o Mamoriá, a lancha Jaquirana, a Mercedes, o Cruzeiro, a lancha Hilda, o Chamié, o Içá, o Tefé, o Canutama, o Explorador, o Santos Dumont, o Teixeirinha, o São Vicente, o Rio Madeira, o Puruzinho, o Coritiba, o Curty, o Lira Castro, o Purus, o Veneza, o Alagoas, o Ajuricaba, a lancha Amethista, o Barcelos, o Brasília, o Colibri, o Antonio Lemos, o Guaná, o Mondego, o Watrin, o Elias, o Acreano, o Rio Amazonas, o Aripuani, a lancha Felicidade, o Mazagão, o Lauro Sodré, o Amazonas, o Macapá, a lancha Tauary, o Paumary, o Ituxi, o Japurá, o João Augusto, o Tarauacá, o Sabiá, a lancha Tiete, o São Martinho, o lanchão Alagoas, o Douro, o Herman, o Parijós, o Tocantins, o Sertanejo, o Aracy, o rebocador Mário, o Ipixina — todos debaixo d’água, arrastando consigo homens que desapareceram naquelas águas barrentas e escuras, maduras e de fúnebres murmúrios, indecisas, imprecisas e indiferentes, veladas de véus de lama, densas e fundas na dissolução dos líquidos da vida, na horizontalidade daqueles infindáveis rios estendidos no lento movimento do tempo — cadáveres elementares decompostos nos alagados de vitórias-régias, comidos de peixes, lânguidos, mergulhados na matéria dissolvida da planície de salmoura por não temer viajar naquelas águas cheias de paus, troncos, bancos de areia, torrões, pedrais, salões e muiunas, rebojos, ituranas, panolas, panelões, praias, sacados, jupiás, ipuêras, baixios, cambões, caldeirões, esqueletos, praias de duas cabeças, voltas — todos obstáculos e perigos da navegação ordinária, de grande ou de pequeno calado, para navios, motores, canoas, montaria e igarités, tudo, toda uma massa de uma teoria infernal de perigos a evitar, a contornar, a vigiar, a desafiar, a temer. Não navegavam dia e noite? Na Foz do Juruá o Rio Solimões mede doze km de largura e pássaros de vôo curto (o jacamim, o mutum, o cojubim) não conseguem atravessar, morrendo cansados afogados no fundo de ondas pinceladas de amarelo da travessia. Em oito dias de navegação pelo Juruá se chega no Rio Tarauacá e São Felipe, de 45 casas, vila bonita, e arrumada. Nove dias depois se entra no Rio Jordão, de onde não se prossegue senão de canoa pelo Igarapé Bom Jardim, subindo pois e encontrando nosso termo e destino, a ponta do nosso nó, o término, o marco extremo de nós mesmos, o mais longínquo e interno lugar do orbe terrestre — o atingir finalmente o Igarapé do Inferno, limite do fim do mundo onde se encontra, e envolto no peso de sua surpresa e fama, o lendário, o mítico, o infinito Seringal Manixi, personagem do nosso «Amante das Amazonas»...

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Por quarenta anos meu pai navegou pelos rios da Amazônia. Era um grande conhecedor da região. Escreveu: « Um prático de cem anos atrás não saberia navegar no rio para o qual estudou, prestou exames e recebeu carteira de habilitação profissional da Escola de Marinha Mercante do Pará. Esta carteira profissional é apenas para o Rio Amazonas ou um dos seus afluentes. Existem práticos que tiram carteira de habilitação de dois, três ou mesmo quatro rios. Isto é o máximo. A vida humana é curta demais para conhecer todos os afluentes do Amazonas, a Mãe de todos eles. O estudante, para tirar Carteira Profissional, necessita viajar nele durante muitos anos, ao termo dos quais deve conhecer um percurso de mil a duas mil milhas, além das passagens de pedras, naus e praias, a copa mais alta de algumas árvores que servem de referência para a travessia do rio durante as noites sem lua. Poderá, então, levar o destino de centenas de passageiros que confiarem nele. Mesmo assim, todos os anos, naufragam numerosas embarcações de todos os tamanhos e cujas posições serão assinaladas nas “derrotas” dos práticos. Estas “derrotas” são mapas regionais em rolos compridos que assinalam obstáculos — nos rios. No Rio Purus, por exemplo, existem mais embarcações em baixo das águas do que navegando por cima.»

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Ele teve várias lanchas: Solar, Solarina, Solarita, Ananda 1 e 2. Nunca nos deixava viajar em navio de linha, como eram chamados. Sabia dos riscos, imprevistos. Sabia também da irresponsabilidade.

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