sexta-feira, 30 de novembro de 2007

AS FLORES VESTIDAS DE BRANCO


ROGEL SAMUEL



Na rua sou abordado. A mulher que me pede dinheiro. Geralmente nunca
paro, nessas ocasiões.
Eu vinha de um concerto. A Filarmônica do Rio de Janeiro, de Florentino
Dias, que melhorou muito. Concerto pela paz, com distribuição de muitas
flores brancas por moças vestidas de branco, como castas noivas e com a
presença do cônsul americano e de sua família. Encontrei meu amigo C. no
foyer. Conversamos sobre política e música. Falamos sobre Menininha
Lobo, uma grande pianista brasileira. Digo: Cassar sempre me lembra os
anos sessenta. O Congresso é o contrário das ditaduras. Ele não me
compreende e se irrita, acha que defendo Jader. Vejo que nossa conversa
se torna cada vez mais ácida e rapidamente me despeço, pois o concerto
vai começar. O começo foi fraco, a Abertura "Salvador Rosa", de Carlos
Gomes. Depois a orquestra foi ficando maior, foi "esquentando", e no fim
apresentou uma Quinta Sinfonia de Tchaikovsky que emocionou. Conheço a
orquestra desde o tempo do falecido amigo Nathanael Caixeiro. "Nata",
violinista da orquestra, professor de filosofia e história, e tradutor.
Traduzia de várias línguas. Tinha coleção de violinos. Mas era pobre,
morava mal. O apartamento dava para um viaduto horrível, o Paulo de
Frontin. Eu o conheci em Campo Grande, quando professor do Estado. Logo
encontramos um ponto de apoio nas nossas conversas: a música. Nata
também pintava, e muito bem. Assinava ironicamente "Petit-grand", porque
era baixinho. Teve morte antológica. Um domingo cedo foi levar o cão
para passear. Depois, como sempre fazia, ia praticar o violino, sentado
na cama. Sua mulher foi fazer um café. Quando voltou, ele estava morto,
segurava o violino e o arco, braços abertos na cama. Sou abordado na rua
por mulher diferente, não exatamente mendiga, vestida de classe média
baixa, uma viúva, ou abandonada pelo marido. Noto que suas mão tremem,
pálidas. A rua deserta, me pede dinheiro, envergonhada de pedir. "Tenho
de comprar comida pra minha casa", ela diz, e abre dois sacos plásticos
de supermercado, onde posso ver bananas. "Não tenho mais dinheiro", diz
ela, e começa a chorar. Parece doente. Suas lágrimas eram reais. Ela
sofria. Via-se a pedir dinheiro e sofria. Soluçava para dentro, por sua
desgraça. Os sinos, à distância, tocam. A desgraça, a fome. Lembrei-me
de que, na Sala Cecília Meireles, tocou-se a "Valsa das Flores". Das
flores brancas, alvas, puras, castas. Meu pensamento fugia, voava pelo
espaço. Uma menina passou, sorrindo. Era como se estivesse vestida de
branco. Sorriu. Sento-me no bar e me ponho a ler Alfonsina Storni:

Tu me queres alva,
me queres de espuma,
me queres de nácar,
que seja açucena
mais casta que todas.
De perfume suave;
corola fechada.
Nem raio de lua
filtrado me toque.
Nem a margarida
seja minha irmã.
Tu me queres nívea,
Tu me queres branca,
tu me queres casta.

Tu, que as taças todas
já tiveste à mão.
Os lábios corados
de frutos e mel.
Tu, que no banquete
coberto de pâmpanos,
as carnes gastaste
festejando a Baco.
Tu, que nos jardins
escuros do engano,
lascivo e vermelho
correste no abismo.

Ó tu, que o esqueleto,
não sei por que graça
ou por que milagre
conservas intacto,
só me queres branca,
(que Deus te perdoe!)
só me queres casta,
(que Deus te perdoe!)
só me queres alva.

Foge para o bosque,
vai para a montanha,
purifica a boca,
vive na humildade.
Segura com as mãos
a terra orvalhada.
Alimenta o corpo
de raiz amarga.

Bebe a água das rochas,
dorme sobre a geada,
renova os tecidos
com salitre e água.
Conversa com os pássaros,
lava-te na aurora.
E já quando as carnes
ao corpo te voltem,
e quando hajas posto
nas carnes a alma
que, pelas alcovas
ficou enredada.
Então, homem puro,
pretende-me nívea,
pretende-me branca,
pretende-me casta.
(Trad. de Oswaldo Orico)

quarta-feira, 28 de novembro de 2007


QUE MAIS?

ROGEL SAMUEL

Quem é? É Bernstein regendo a Eroica de Beethoven. Ele tem momentos de
suprema glória, de ânimo, de certeza, fazendo tudo girar à sua volta
como num balé de invisível e arrebatadora revolução. Todo Beethoven
revolucionário está ali, dança e avança, a Eroica, a primeira obra
romântica da história de todas as artes. Comecei a ouvi-la cedo, numa
gravação que hoje começo a pensar em procurar. Sei de um sebo que a tem.
Volto do teatro. No Rio faz 15 graus. No dia anterior, tivemos a
orquestra do Mozarteun de Salzburgo. Na quarta, a cravista suíça
Christine Daxelhofer tocou para uma sala quase vazia. Ingressos a dez
reais. O "Tokyo Ballet"foi impressionante. A " Kabuki Suite", de Toshiro
Mayuzumi foi extraordinária. A estória está entre a tradição e a
influência ocidental. A música, bela, muito influenciada por Stravinky.
Hoje saio de um show de D. Ivone de Lara, no Teatro Rival, que faz 67
anos, o teatro. Ela é uma excelente sambista. Pena que o som estivesse
errado: não ouvi uma palavra do que ela cantava. O som, alto e
desgastante. Karajan dizia que, numa ópera, todos tinham de entender as
palavras. Não apenas as notas. A vice-governadora Benedita estava lá.
Vejo o vídeo: Bernstein, possuído do ritmo. Seu biógrafo diz que,
durante quase dez anos em que regeu a Filarmônica de NY, só recebeu
críticas. Dali saiu para a de Viena, onde fez suas melhores gravações.
Por que a crítica é sempre burra? Bernstein foi colega do nosso Eleazar
de Carvalho, que de certo modo o superou na sucessão de Serge
Koussevitzky. Mas dizem que Bernstein foi preterido devido à
peculiaridades de sua vida privada que não importa aqui. De Carvalho fez
brilhante carreira nos Estados Unidos e no Brasil. Eu o ouvi diversas
vezes. Eleazar e Bernstein herdaram do professor Koussevitzky o tipo de
regência dramática, dançante. E a mania de falar ao público. De dar
aula, antes do concerto. O anel de ouro, que Bernstein usava, pertencera
a Serge Koussevitzky. Eleazar dançava xerém no pódio. Ele veio do
sertão. Foi marinheiro. É pena que as nossas orquestras fossem tão
ruins, naquela época, e que ele estivesse sempre apoiado pela direita.
Como Villa Lobos, apoiado por Getúlio. Naquela época podia-se ouvir
Jacques Klein, que morreu aos 48 anos. Klein fazia algumas caretas ao
tocar certos trechos, como se não tivesse satisfeito consigo mesmo.
Bernstein gritava ao reger. Como se estivesse morrendo. A época dos
grandes maestros acabou. E Bernstein foi um extraordinário músico, claro
e intenso. Como Toscanini: fale-se o que quiser, mas a sua regência era
precisa, clara, e ele era um homem desprovido de vaidade, pura música.
Recebeu críticas mordazes de Furtwängler: "faltam as pequenas nuances",
diz, a propósito da "Leonora" de Beethoven. Chega a chamar o mestre
Toscanini de "ignorante naïve". Diz que a música de Toscanini não é
"orgânica" - e ele estava tratando da "Eroica". Diz Furtwängler que
Toscanini só conhece duas coisas: "tutti e aria" - e o pior é ele tem
razão. "É uma maneira de agir verdadeiramente primitiva". Argumenta que
ele é "exagerado, sentimental e homófono" e que "faz de seus defeitos
uma virtude". "Ao inverso de Nikisch, ele não tem talento manual inato,
mas sabe fazer uma consumação gigantesca do espaço, do que resulta que
seus tutti são todos parecidos". Diz que ele é "um grosseiro
mal-entendido", é só "um culto da personalidade", e seu sucesso deriva
da sua personalidade. Mas "seu sucesso é funesto, pois atinge até os
alemães" etc. [L'órchestre: des rites et des dieux, Mutations. Paris,
Mai 1988]. Enfim... e a guerra? Sobrevoei a cidade e fiquei no Aeroporto
de Karachi, vindo de New Delhi, e quis muito conhecer um lugar como
aquele. Era uma cidade de outro mundo. Nosso avião foi invadido por
jovens rapazes que limparam o avião andando de quatro por entre as
cadeiras com escovas nas mãos como se fossem quadrúpedes. Não olhavam
para cima, para nós, passageiros, como se fôssemos de uma classe social
tão suprema que só lhes era permitido rastejar entre nossas pernas. E
estávamos num avião da KLM. As casas eram baixas e brancas, quadradas
como caixas. Havia um deserto cinzento ao redor. Depois entrou um casal
idoso, ela, uma senhora ricamente vestida, exageradamente cheia de
jóias. Ele, num terno aprumado, anelão no dedo. O contraste entrara no
avião. Fico imaginando um bombardeio ali. Por quê? Ou, como diria
Hamlet: Que mais?

sábado, 24 de novembro de 2007

NY

Rogel Samuel


Não. Nunca fui a New York. Nem quero falar de terrorismo, aqui. Só o
Aeroporto conheço. A última vez que passei foi no ano passado. Vinha de
Portland. Sobrevoamos NY. À minha direita, a bela paisagem, estátua da
liberdade e torres do World Trade Center. Sobrevoávamos. É bom não
confundir terrorismo, com islamismo, como se tem feito. Mas não quero
falar disso. No "day after", TV ligada. Ontem vendo a TV. Naquela noite,
junto que meu amigo CL, que deve estar lendo em São João del Rey, o fim
do governo militar, num bar do Catete. Comemorávamos. Não cantávamos,
mas bebíamos e comíamos, que beber e comer é comemorar, prazeres humanos
antes da morte. Cheguei em casa, feliz e bêbado de felicidade, ligo TV e
rádio ao mesmo tempo, atrás de notícias. Tancredo no hospital. Passei a
noite vendo aquele repórter da globo que depois virou governador. O dia
nasceu, transcorreu. Tenho paixão pela reportagem. Fui repórter bem
jovem, em Manaus, aos dezessete anos. Jornalista de coração. Tenho na
carteira registro, ainda. Não sei para que serve, hoje. Jornal se fazia
de madrugada. Podia ter feito carreira, trabalhei na TV Rio, no Posto
Seis. A vida é um caminho ao inesperado. Ao desconhecido. Que buscamos?
"Que é viver? Permanecer, ou passar?" Não quero falar de New York,
cidade que não conheço, prédios que nunca vi. Fazia frio de madrugada.
Espero que, neste sábado, não esteja passando o filme: "O império
contra-ataca". Prefiro voltar à leitura de Alencar, que leio a
conta-gotas. Melhor voltar a falar de Manaus, de Bach, Beethoven. Chega
de tragédia! Meu medo não é do terror, mas da reação americana, sempre
exagerada. Está todo mundo falando em ódio, em vingança. "O ódio não
cura o ódio", diz um provérbio budista. "Cura-se o ódio com amor".
Buscam-se culpados fora. Às vezes estão dentro de nós. No nosso coração.
Mas é melhor hoje relaxar, que a crônica, bem ou mal, está escrita. Ufa!
Arafat doando sangue significa "nós temos dado o nosso sangue na guerra
para defender a existência do Estado Palestino". O sangue dos
inocentes não justifica o sangue dos inocentes. Se os Estados Unidos
forem à guerra, terão caído na armadilha preparada pelos terroristas. É
isso exatamente o que eles querem: a guerra. Esses aviões-bombas
atingiram a todos nós, de quaisquer nacionalidades, que sonhamos com a
paz. Diante de toda essa desgraça tenho voltado a um longo poema,
escrito em 1963, que nunca publiquei, porque nunca julguei acabado, mas
alguns versos transcrevo:
sensação de que tudo estava excluído para
quando entrou experimentou logo
a solidão daquele espaço vazio
atravessando a área descobriu no outro
o lado o disfarce a saída que apontava
uma estrada que partia sempre
ninguém passa por aquela estrada
só os inúteis demônios
descortinava o vale as grandes montanhas além
morcegos de vento passavam por ali idos
musguentos estrídulos chiados estilhaços
quebravam o ar seus gritos suas
negras asas cobrem o sol a lua estrelas
ouço o trinar grave e reto
de certas aves ocultas travo rouco baixo e grave
um monstro, seu arquejar forte seu resfolegar
abre um túnel de torpor e medo as abas da morte
se abrem par em par e rolando aquela parte
se postou para frente, oh estrada! quando vinha
soturno a triste impressão que navegava
a luz da morte seus faróis naquela parte
obscura e perdida onde ocorria tudo
chamado vento sangue não sei o quê.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007


Onças


Rogel Samuel



Alencar é cinematográfico. Estou relendo "O guarani". O livro começa por
um "fio d'água". Alencar seduz pela leveza. Logo aparece uma cena
"impossível": Peri caça uma onça preta com as próprias mãos. Perto de
Manaus vivia um caboclo, caseiro meio índio, forte como touro selvagem.
Certo dia uma jaguatirica, também chamada "gato do mato", do tamanho de
um cão, caiu na armadilha para paca. O animal ficou entrelaçado de
cordas pelo corpo, mal podia mover-se, mas arrancou-se dali. Ele ouviu
aquilo, foi lá com a filha pequena. A onça conseguiu pular sobre a
menina. Mas o animal estava de costas, entrançado de cordas. Ele o pegou
para estrangular. Quando chegaram outros homens a onça estava ainda viva
e, com as unhas da única pata livre, cortava o inimigo que quase morreu.
Em Alencar, Peri enfrenta a onça preta. As onças pretas estão em
extinção. Famosas. Na minha época só existiam no Norte. Meu amigo A.,
que viajou 40 anos pelo Amazonas, só encontrou uma, ele descendo um
igarapé estreito, motor quase em silêncio, sobre um tronco de árvore
caída, ao sol, ela. Deu marcha a ré. O animal voltou-se, soberano. Olhou
com desprezo, voou como um pássaro, atravessou a margem. Conheci um
"matador" de onças, velhote magro, vivia daquilo, no Careiro, perto de
Manaus. Amarrava um porco, subia na árvore, ficava na espera. Nesta
época digital estou relendo Alencar e falando de onça. Alencar é a Mata
Atlântica. Alencar organiza a estória como a história do Brasil, que sai
de sua obra inteira. Sente a floresta, que ele conheceu bem. Sem não me
engano, ele veio, por terra, do Ceará ao Rio de Janeiro. Naquela época,
uma epopéia, uma caminhada digna da coluna Prestes. Lula também fez a
caminhada da cidadania assim. Meu amigo NL viajou com Lula pelo interior
do Amazonas. Marta estava lá, também. Mulher bonita, a Marta.
O guarani, ópera, filme, medieval, com direito a castelo, cavaleiro
(Peri), donzela, rei. Alencar escrevia para o jornal, os romances saíam
em seriados. Ele amava esse país de índios, negros e portugueses. É um
escritor brasileiro. Veio, por terra, do Ceará ao Rio de Janeiro. Como
Prestes. Minha amiga NG ficou furiosa com Lula porque em Manaus
preparou-lhe um almoço com as próprias mãos e depois de comer Lula foi
agradecer à cozinheira: "Companheira..." E deu-lhe um abraço. Ela é
escritora, mas gosta mesmo é de ser elogiada na cozinha. Se você for
almoçar lá e não elogiar a comida ela entra em depressão. Ou fúria. Seu
livro x. está sendo traduzido na França. Prestes eu conheci, já muito
idoso, em conferência no Fundão. Brizola também. Logo que voltou do
exílio, em Nova Iguaçu. Brilhante orador, abriu e fechou o congresso do
PDT. Voz metálica, imagem exata e exaltada. Conheci Juscelino, na
Faculdade de Filosofia. E Lacerda. Só me faltou D. Antonio de Mariz, pai
de Cecília.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Pela cidade

Rogel Samuel

Caminho pela calçada. Atravesso a rua. Desço no Metrô. Todo Metrô se
parece. O do Rio não é triste. Nem lúgubre, como o de Paris. Parece o de
Frankfurt. No percurso encontro meu amigo H. Não o via há anos. Físico e
filósofo, ex-companheiro da FNFi. Estudamos juntos, depois trabalhamos
no Colégio Estadual Amaro Cavalcante. "Tenho traduzido a Metafísica de
Aristóteles do grego", ele diz. É verdade. Professor aposentado. Mal
vestido. Mal-tratado. Vive da aposentadoria. Sempre foi assim. Nunca
conseguiu uma conexão prática com a vida. Por isso penso como eram bons
os antigos mecenas. Há gênios que não podem viver sem mecenas. Meu
amigo foi um deles. Conversamos sobre Carneiro Leão, sobre Kant. Ele lê
Kant em alemão, Gorki em russo, etc. Nunca soube ganhar dinheiro. Anda
feito mendigo. Conheci muita gente assim, na minha geração. Um dia,
encontrei Anísio Teixeira e me dirigi a ele, pensando que fosse o
porteiro da Faculdade. Foi a primeira pessoa que encontrei, no Rio.
Anísio foi meu professor de Filosofia da Educação. O único professor
que, após as aulas, recebia palmas da classe. Nunca vi isso nem antes.
Nem depois. A última aula, já cassado, foi sobre o conceito de liberdade
na educação. Naquela faculdade assisti a Álvaro Vieira Pinto. Havia
efervescência cultural para a vida, na minha geração. Mas o mundo em que
vivíamos desapareceu em 64. No Metrô, conversamos sobre Carneiro Leão e
sobre Heidegger. A conversa seria interminável, se tivéssemos tempo.
Adoro conversar. Continuo minha caminhada para Botafogo. Caminho pela
Voluntários da Pátria. Há muito barulho. Entro numa velha loja de disco.
Compro, usado, o CD da Sinfonia 9 de Schubert, a "grande", na magnífica
interpretação de Solti, que já conheço. Georg Solti fez melhor do que
Bernstein. Solti é um dos grandes maestros, como Hermann Scherchen, como
Mravinsky. Mais adiante, na calçada, um sebo. Encontro um livro de
Barthes, que me custa CR$ 2,00. Continuo pela Marquês de Caravelas.
Entro no Aurora. Está vazio. A noite vai cair. Peço uma caipirinha e me
ponho a ler Barthes. Ninguém me importuna. Estou, como num café
parisiense, onde é bom para ler. Onde é bom estar só, consigo mesmo.
Parece que nós, brasileiros, não agüentamos a solidão. Uma pessoa só,
num bar, é olhada com desconfiança. Ou pior: com pena. Uma vez fui
encontrado por uma amiguinha num bar que foi logo disparando: "coitado,
sozinho". Tive de engolir, mas desde então jurei para mim mesmo (e para
minha amiga Annie Girault) que ainda vou morar em Paris. Nem que seja
numa mansarda no norte da cidade, onde tão barato é viver. Mas o Aurora
é um velho bar. Tem cem anos. O livro, que já li, se torna maravilhoso,
ali. Outro dia fui à Adega Flor de Coimbra, na Rua Teotônio Regadas, na
Lapa. No mesmo lugar morou Portinari. Ao lado, a Sala Guiomar Novaes,
atrás da Sala Cecília Meireles. Era freqüentada por Villa Lobos, Manuel
Bandeira. Na Sala Guiomar Novaes estão as "mãos", em bronze, da
pianista. Constato que eram bem pequenas. Quem toca é uma pianista que,
famosa, não sei dizer. Às vezes é boa. Às vezes é "dura". Na minha
frente estava um agradável senhor, com quem converso antes do concerto,
sobre a iluminação, o apagão etc. No programa havia uma certa "Terceira
balada", de J. A. Almeida Prado, primeira audição mundial. Foi o melhor
do programa. A balada era uma improvisação livre sobre o tema da música
banal: "Parabéns para você". Depois vi que o autor era aquele agradável
senhor com quem conversei sobre banalidades. Na volta não pude ir pela
calçada e entrar no Metrô, como gostaria. A noite tinha caído.
------------------
Carta recebida:
Prezado Rogel,
Há algum tempo, C, grande amigo, falou-me de seu site e chegou a
enviar-me algumas crônicas. Outros amigos e colegas de trabalho também o
fizeram. Por razões de mudança de cidade e de provedor, deixei de
receber notícias e crônicas de seu site. Em julho, recebi uma crônica,
através de um amigo, e fiquei imensamente tocada. Nasci em S. João
del-Rei, sob os cheiros dos romaninhos, incensos e toques de sinos.
Fiquei a pensar sobre o olhar de luto, os mistérios, as paixões e a dor
que, desde criança, tomavam conta dos meus sentidos. Gostaria que você
soubesse que suas palavras me tocaram visceralmente...

domingo, 11 de novembro de 2007

O piano


Rogel Samuel


Sim, Guiomar Novaes foi uma das melhores pianistas do Século XX e da
minha infância. Quando a Philips estava elaborando a coleção "Grandes
Pianistas", tentou inclui-la, mas esbarrou no problema da baixa
qualidade das gravações da Vox dos anos 20. Nelson Freire possui o
Steinway que pertenceu à grande dama. Segundo Freire, que está na
coleção - o único brasileiro na coleção - além de Guiomar, outros
brasileiros/as poderiam estar incluídos. Como Magdalena Tagliaferro e
Jacques Klein. Sou vizinho de um, Arthur Moreira Lima.
Quando eu era menino acordava com a vizinha tocando Chopin. Não tocava
mal. Meu pai foi meu primeiro e último professor de piano, que não toco.
Desde cedo não toco, ouço. Gosto de ouvir e sonhar. Sonhar é voar na
imaginação das paisagens sonoras. Não posso imaginar como seria um mundo
sem música. Não seria meu mundo. Não seria silencioso, pois o silêncio
também é música.
Meu pai viajava pelos grandes rios da Amazônia e me levava com ele. Às
vezes, entrava num lago, ancorava, e ali passava a noite, ao abrigo de
alguma tempestade. No Amazonas se chamava aquilo de lago, que se entrava
por um "furo", ligado ao grande Rio. Havia pássaros monstruosamente
belos como deuses coloridos, bailando entre as grandes árvores sagradas.
Antes da noite cair completamente, meu pai subia no teto da lancha e
tocava violino. O silêncio era tão que o violino soava nas estrelas.
Certa vez, ele viajou muito tempo com um adolescente meio índio, que
fazia de marinheiro. Durante aquele tempo ele estudava, diariamente, e
durante várias horas por dia, certa música de Bach. Muitos anos depois,
um dia ele chegou num vilarejo onde havia uma festa com alguns músicos
tocando. Um dos músicos se aproximou dele e perguntou: "Sr. Samuel, o
senhor não se lembra de mim?" Era o jovem marinheiro. "O Sr. ainda toca
aquela musiquinha?" e o homem tocou maravilhosamente Bach ao violão...
Tenho tudo que posso de Guiomar Novaes. Os melhores discos são com
Kemplerer. Ela fez sucesso naquela época de ouro da música mundial.
Estavam todos vivos, os grandes: Rubinstein, Schnabel etc.
Minha amiga U.A. diz que minhas crônicas são "crônicas de saudade de
Manaus". Ela me mandou um poema sobre seus 70 anos. Tomei um susto: não
podia acreditar. Sim, havia muitos discos de Guiomar Novaes na minha
infância. Assim como Bidu Sayão, cantando o terceiro poema de "La bonne
chanson", de Verlaine, que um dia traduzi livremente assim:
A lua branca
luzir no bosque
de cada ramo
parte uma voz
sob a folhagem...

Ó bem amada.

Lago reflete
profundo espelho
a silhueta
do colmo negro
o vento chora...

delírio, é a hora.

vasta e macia
tranqüilidade
sente descer
do firmamento
o astro irisa...

estranha é a hora.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007


a última dor que ela me cause




Ele se predispõe: "Posso escrever os versos mais tristes esta noite", diz, e pode, que produziria versos tristes como a noite, mas a noite não está triste, a noite está estrelada, sim, "e tiritam, azuis, os astros, à distância".

Há algo muito distante, lá longe, nos astros, na distância das estrelas. Na realidade, distante está o Amado de amar: "Eu a quis e por vezes ela também me quis".

Exercendo o que mais o lirismo sabe fazer, ele se lembra: "Eu a tive em meus braços em noites como esta. / Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito".

Sim, perdida está, seu lirismo, sua lembrança, "Ela me quis e às vezes eu também a queria".

Mas esta estranha palavra, essa estranha temporalidade, o que se interpõe: "às vezes". E o poema continua, sempre nas suas mudanças de humor, na bela tradução de Domingos Carvalho da Silva:




"Como não ter amado seus grandes olhos fixos?



Posso escrever os versos mais tristes esta noite.

Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.



Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.

E desce o verso à alma como ao campo o rocio.



Que importa se não pôde o meu amor guardá-la.

A noite está estrelada e ela não está comigo.



Isso é tudo. À distância alguém canta. À distância.

Minha alma se exaspera por havê-la perdido".




Pablo Neruda nunca foi tão simples, nunca tão perfeito, tão clássico como neste poema, o "20" dos "Vinte poemas de amor", de 1968. Leia o poema inteiro em: http://www.geocities.com/rogelsamuel/neruda.html

Lá, parece que o Amado só se apercebe de que ela se foi quando a perdeu. Não a vê de perto, em si, há referência a uma mulher-lua, a um luar:



"A mesma noite faz branquear as mesmas árvores.

Já não somos os mesmos, nós os de outros dias".



Esta obra da juventude de Neruda, que tinha 20 anos. Ele teve diversos amores em vida, as mais conhecidas foram Maria Antonieta Hagenaar, que ele conheceu na ilha de Java, Maria Del Carril e Maria Matilde Urrutia. O poema se encontra no seu livro "Veinte Poemas", seu mais popular e famoso livro, de 1924, que vendeu mais de um milhão de exemplares. Afinal, em 1971, Neruda ganha um Prêmio Nobel.

Mas o livro é a leitura preferencial, ideal de todos os jovens (e velhos) amantes do mundo inteiro em todas as línguas, pois para quase todas foi traduzido. Em 1950, Neruda produziu seu CANTO GENERAL, monumental obra com 340 poemas, quando tematiza a América Latina, sua luta, sua pobreza, sua libertação. Lá se encontra o famoso poema "Alturas de Macchu Picchu", escrito depois de sua visita às ruínas de Macchu Picchu, em 1943. Ali ele se torna a voz dos povos Incas que ali viveram, que ali foram dizimados.

No poema 20, dos "Veinte Poemas", o amado está confuso, ela já não o ama, é isto o que verdadeiramente dói, apenas ele está triste porque ela não está ali: porque ela existia ali ele será capaz de entristecer-se, porém já não a ama, "talvez a queira", não sabe, porque o amor é breve, longo é o esquecimento do amor. Afinal ele se desespera por havê-la perdido, mas sente e sabe o caso perdido, terminado, e que aqueles versos serão os últimos e que aquela dor será a última dor que ela lhe cause. O mais é o espaço amplo da noite, as estrelas ao largo, o vento da grandeza escura, a solidão estelar onde será possível escrever os versos mais tristes, pensar que ela será de outro, para justificar o perdê-la, para justificar o não saber amá-la, porque o amor só ama o amor, e a voz que soa nos seus ouvidos dela são para o eco de si mesmo, aos seus olhos infinito



"Já não a quero, é certo, quanto a quis, no entanto.

Minha voz ia no vento para alcançar-lhe o ouvido.



De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.

Sua voz, seu corpo claro, seus olhos infinitos.



Já não a quero, é certo, porém talvez a queira.

Ai, é tão breve o amor e é tão extenso o olvido.



Porque em noites como esta eu a tive em meus braços,

minha alma se exaspera por havê-la perdido.



Mesmo sendo esta a última dor que ela me cause

e estes versos os últimos que eu lhe tenha escrito".


quarta-feira, 7 de novembro de 2007


a sinfonia patética


Ouço a Sinfonia chamada 'Patética', a no 6. É gravação antiga, mas excelente, onde Karl Böhm conduz a London Symphony Orchestra. Ela já foi chamada de "Sinfonia Suicídio', pois pouco tempo depois, Tchaikovsky bebeu um copo de cólera, um copo de água não fervida. Outros viram nela conturbações sexuais de Tchaikovsky. O que é tolice, a sexualidade não se expressa em música, mas o sentimento. Talvez se ouça ali a angústia existencial do compositor, que na Abertura Fantasia Romeu e Julieta transparece. É comum ouvir-se falar da sexualidade de Tchaikovsky, da surdez de Beethoven etc, como se os acidentes, os atributos tivessem algo a ver com a arte de suas composições. O amor proibido, a tristeza, a emoção melhor aparece em "Tristão e Isolda", de Wagner, compositor que não tinha problema psicológico. Ouça a desolação do Quinteto para clarinete de Brahms, o Opus 115, uma de suas obras finais. Ou o "Réquiem", de Mozart, composto mesmo no seu leito de morte, sobrenatural e mórbido, com a "Lacrymosa", tão diferente da alegria afirmativa de suas outras obras anteriores. São músicas perigosas, que fazem muito mal à saúde do corpo e da alma, que podem até matar, como disse e proibiu o médico de Karajan, vendo que o maestro estava emocionalmente doente. São reflexões sobre a dor, sobre a dor da miséria da humana condição, sobre a morte. São a própria Dor. A paixão levada ao extremo. Mas a relação entre arte e biografia não tem, contudo, uma direta relação. Há artistas que não são suicidas, nem necessariamente românticos. Há os funcionários públicos, como o genial Drummond. Há os bem casados, os bem nascidos, os felizes, os saudáveis. O gênio, entretanto, não tem um parafuso a menos, mas dez a mais. Seu mais popular tema é o amor. Seu exemplo máximo é "Tristão e Isolda". As partes desta notável ópera explicam seu conteúdo, é a "Confissão de Amor", o "Desejo", o "Olhar" para, no fim, acontecer aquela terrível e lentíssima "Libertação pela morte", a "Morte de amor". Lembro-me de uma passagem do texto em que há sua expressão maior e mais bela, quando Isolda diz que, "para matar-me basta que me olhes nos olhos..." Por quê diz ela aquilo? Porque se ela vir a aguda angústia do fundo dos olhos do amado, aquilo vai penetrar o seu ser através dos olhos, vai entrar como lâmina, descendo para apunhalar seu coração. Dizia Bruno Walter que, quem nunca viveu uma paixão extrema, não consegue regê-la. A ópera em três atos tem música e libreto de Wagner, baseada no drama de Gottfried von Strassburg, que deriva da lenda celta de Tristão. A música do primeiro ato descreve um barco em que a princesa Isolda viaja, com sua aia Brangane, vindo da Irlanda, conquistada pelos exércitos do Rei de Cornualles. Seu tema é a Guerra, o Terror. Isolda viaja ao país do conquistador, Rei Marke, para converter-se em sua esposa. Pesa-lhe a grande tristeza, esmaga-a o seu destino. Isolda se sente sufocada, pede ar, e, naquele momento, com amplidão teatral, sua aia abre as cortinas do palco e então aparece a outra parte do navio, onde está o amado Tristão, que era sobrinho do próprio rei de Cornualles, e fora encarregado pelo tio de dar escolta a Isolda. A beleza reside naquela estranha música, que vem em ondas. São as Oleosas Ondas do Destino, da Vida e da Morte. É a Abertura em Ondas, inexplicavelmente impressionista, que hipnoticamente nos arrasta, nos amarra nas suas malhas, nas suas vagas, nos sufocam, nos levam ao terror, ao calafrio, ao Medo. É aquela música lenta, demasiadamente lenta, que tem peso, que nos puxa um mar, um oceano, mas de chumbo sem fundo, de pesadelo, de escuridão inatravessável, impenetrável. Oh, talvez seja aquela a mais sublime e incômoda música que já se ouviu, que já compôs, que já se dispôs, a música dos nossos medos e de nossas lamentações, dos velados dedos das tétricas parcas. A abertura de Tristão e Isolda é aquele prelúdio ao nihilismo da inocuidade do amor, da voz do silêncio da incomunicabilidade. A idéia, entretanto, de que a pessoa física do autor tenha a ver com a obra é enganadora. Lembro-me do caso de amigo que, estando em Londres, foi assistir à conferência de Antony Burgess. Ele havia acabado de ler "A laranja mecânica", e de assistir ao filme horrorshow de Stanley Kubrick de 1971. Mas qual foi sua surpresa quando um senhor de meia idade entrou na sala, desajeitado num paletó e gravata, acompanhado pela matrona gorda sua esposa: Sim, aquele era o autor de "A Clockwork Orange".

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

O Naufrágio da Princesa Laura



Rogel Samuel





O naufrágio da «Princesa Laura», na Boiuçu de seis km de largura, me levou às estórias que na minha infância se contavam daquela imensa região, como a do naufrágio da Bitar, o desastre da gaiola Izidoro Antunes, tragédias freqüentes no Amazonas de ontem, como o desaparecimento da Izidoro Antunes, em sua primeira, única e última viagem, tinha acabado de chegar da Inglaterra, moderna, confortável, aparelhada com luz elétrica, estava cheia de mercadorias quando desapareceu. Depois disso o Otero, o Perseverança, o Prompto, a Macau, o Etna, o Colomy, o Júlio de Roque, o Waltin, o Mazaltob, o Ajudante (abalroado), o Manauense (adernado), o Itucumã, o Paes de Carvalho (incendiado), o Miguel, o Paraense, o Mamoriá, a lancha Jaquirana, a Mercedes, o Cruzeiro, a lancha Hilda, o Chamié, o Içá, o Tefé, o Canutama, o Explorador, o Santos Dumont, o Teixeirinha, o São Vicente, o Rio Madeira, o Puruzinho, o Coritiba, o Curty, o Lira Castro, o Purus, o Veneza, o Alagoas, o Ajuricaba, a lancha Amethista, o Barcelos, o Brasília, o Colibri, o Antonio Lemos, o Guaná, o Mondego, o Watrin, o Elias, o Acreano, o Rio Amazonas, o Aripuani, a lancha Felicidade, o Mazagão, o Lauro Sodré, o Amazonas, o Macapá, a lancha Tauary, o Paumary, o Ituxi, o Japurá, o João Augusto, o Tarauacá, o Sabiá, a lancha Tiete, o São Martinho, o lanchão Alagoas, o Douro, o Herman, o Parijós, o Tocantins, o Sertanejo, o Aracy, o rebocador Mário, o Ipixina — todos debaixo d’água, arrastando consigo homens que desapareceram naquelas águas barrentas e escuras, maduras e de fúnebres murmúrios, indecisas, imprecisas e indiferentes, veladas de véus de lama, densas e fundas na dissolução dos líquidos da vida, na horizontalidade daqueles infindáveis rios estendidos no lento movimento do tempo — cadáveres elementares decompostos nos alagados de vitórias-régias, comidos de peixes, lânguidos, mergulhados na matéria dissolvida da planície de salmoura por não temer viajar naquelas águas cheias de paus, troncos, bancos de areia, torrões, pedrais, salões e muiunas, rebojos, ituranas, panolas, panelões, praias, sacados, jupiás, ipuêras, baixios, cambões, caldeirões, esqueletos, praias de duas cabeças, voltas — todos obstáculos e perigos da navegação ordinária, de grande ou de pequeno calado, para navios, motores, canoas, montaria e igarités, tudo, toda uma massa de uma teoria infernal de perigos a evitar, a contornar, a vigiar, a desafiar, a temer. Não navegavam dia e noite? Na Foz do Juruá o Rio Solimões mede doze km de largura e pássaros de vôo curto (o jacamim, o mutum, o cojubim) não conseguem atravessar, morrendo cansados afogados no fundo de ondas pinceladas de amarelo da travessia. Em oito dias de navegação pelo Juruá se chega no Rio Tarauacá e São Felipe, de 45 casas, vila bonita, e arrumada. Nove dias depois se entra no Rio Jordão, de onde não se prossegue senão de canoa pelo Igarapé Bom Jardim, subindo pois e encontrando nosso termo e destino, a ponta do nosso nó, o término, o marco extremo de nós mesmos, o mais longínquo e interno lugar do orbe terrestre — o atingir finalmente o Igarapé do Inferno, limite do fim do mundo onde se encontra, e envolto no peso de sua surpresa e fama, o lendário, o mítico, o infinito Seringal Manixi, personagem do nosso «Amante das Amazonas»...

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Por quarenta anos meu pai navegou pelos rios da Amazônia. Era um grande conhecedor da região. Escreveu: « Um prático de cem anos atrás não saberia navegar no rio para o qual estudou, prestou exames e recebeu carteira de habilitação profissional da Escola de Marinha Mercante do Pará. Esta carteira profissional é apenas para o Rio Amazonas ou um dos seus afluentes. Existem práticos que tiram carteira de habilitação de dois, três ou mesmo quatro rios. Isto é o máximo. A vida humana é curta demais para conhecer todos os afluentes do Amazonas, a Mãe de todos eles. O estudante, para tirar Carteira Profissional, necessita viajar nele durante muitos anos, ao termo dos quais deve conhecer um percurso de mil a duas mil milhas, além das passagens de pedras, naus e praias, a copa mais alta de algumas árvores que servem de referência para a travessia do rio durante as noites sem lua. Poderá, então, levar o destino de centenas de passageiros que confiarem nele. Mesmo assim, todos os anos, naufragam numerosas embarcações de todos os tamanhos e cujas posições serão assinaladas nas “derrotas” dos práticos. Estas “derrotas” são mapas regionais em rolos compridos que assinalam obstáculos — nos rios. No Rio Purus, por exemplo, existem mais embarcações em baixo das águas do que navegando por cima.»

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Ele teve várias lanchas: Solar, Solarina, Solarita, Ananda 1 e 2. Nunca nos deixava viajar em navio de linha, como eram chamados. Sabia dos riscos, imprevistos. Sabia também da irresponsabilidade.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007



Fim de Tarde



Rogel Samuel





Fim de tarde. Leves passos me levam pelo calçamento da rua Gonçalves Dias. Passos lentos, na imaginação dos versos: «Se se morre de amor! — Não, não se morre, Quando é fascinação que nos surpreende De ruidoso sarau entre os festejos».

Amor! delírio — engano... Sobre a terra
Amor também fruí; a vida inteira
Concentrei num só ponto — amá-la, e sempre.
Amei! — dedicação, ternura, extremos
Cismou meu coração, cismou minha alma,

Amor! enlevo d'alma, arroubo, encanto
Desta existência mísera, onde existes?
Fino sentir ou mágico transporte,
(O quer que seja que nos leva a extremos,
Aos quais não basta a natureza humana;)
Simpática atração d'almas sinceras
Que unidas pelo amor, no amor se apuram,
Por quem suspiro, serás nome apenas?

Um homem me passa um adesivo eleitoral que o ponho no peito, meu candidato. Deve perder. A militância de braços cruzados. Fico imaginando se, alguma vez, Gonçalves Dias passou por aqui, pela Rua Gonçalves Dias. Gênio, publica «A canção do exílio», com vinte anos – único poema que entrou no Hino Nacional Brasileiro, suprema glória. Foi professor em Niterói. Olho as casas. Que segredos escondem elas? Que histórias nos poderiam revelar? Gonçalves Dias foi amante fracassado. Viajou pelo Amazonas, pelo Madeira e pelo Negro. Podia ter lá encontrado cabocla risonha, como são, mas fixou-se em Ana Amélia, de 14 anos, recusada por ser ele mestiço. E bastardo. O mesmo aconteceu com Dona Clarisse Indio do Brasil. Que se apaixonou por um mestiço, o Almirante Indio do Brasil. Ela era uma Condessa Laje, como escreveu sua neta, a escritora Clarisse de Oliveira: «Clarisse Lage nasceu em 4 de abril, talvez no ano de l869. Casou-se contra a vontade da família com Arthur Índio Do Brazil e Silva, em 23 de Janeiro de l893». Arthur foi Chefe de Segurança no Pará, Presidente do Conselho de Intendência de Belém, Deputado Constituinte Federal, Almirante e Senador, e em 23 de dezembro de 1925, feito Marquês pelo Papa. D. Clarisse teve morte trágica. Quando se rompeu seu colar de pérolas e, recolhidas, nenhuma faltava, ela disse: "Nem mais um dia de vida — a morte está próxima". Foi morta por um viciado em cocaína e alcoólatra, no dia 6 de outubro, às l8:30 horas, no centro da cidade, esquina da Rua do Ouvidor com a Ourives. Talvez fosse um crime político, de um louco terrorista da época: Ela era rica e aristocrática, e o assassino tinha passado pela Escola militar, reduto republicano. O Senador tinha um escritório na Rua da Alfandega, 94. Clarisse costumava buscar o marido no trabalho todas as tardes. Quando o "Landaulet" estacionou, ouviu-se um tiro, e apareceu o "toillett" azul da senhora Indio do Brazil. Ela estava com a mão esquerda sobre o peito e a direita agarrada ao trinco da portinhola. Morreu dias depois. Nas suas últimas palavras, pede perdão ao assassino. Diz ao marido: "Perdoa, Coração!" E morre.

Antes de morrer, Gonçalves Dias encontra Ana Amélia, que passa por uma rua, já casada. Escreve: «Enfim te vejo! — enfim posso, Curvado a teus pés, dizer-te, Que não cessei de querer-te, Pesar de quanto sofri.» Mas ela finge não vê-lo, não o conhece: «Mas que tens? Não me conheces? De mim afastas teu rosto? Olha-me bem, que sou eu! Nenhuma voz me diriges!... Que me enganei, ora o vejo; Nadam-te os olhos em pranto, Arfa-te o peito, e no entanto Nem me podes encarar; És doutro agora, e pr’a sempre! Eu a mísero desterro Volto, Adeus qu’eu parto, senhora; Negou-me o fado inimigo passar a vida contigo, Ter sepultura entre os meus; Negou-me nesta hora extrema, Por extrema despedida, Ouvir-te a voz comovida Soluçar um breve Adeus!»

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Sou atraído pelos sons de estranha música. Vêm da Confeitaria Colombo. Entro. Olho deslumbrado para dentro dos grandes espelhos, maiores agora na escuridão da noite. Dentro dos espelhos, os mortos aparecem de sobrecasaca.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007


Sinfonia Clementina

Rogel Samuel


Doutor, volto para casa, o samba mora lá no meu coração barraco, não, eu não sou daqui, eu não tenho amor — a Clementina a dizer, a cantar, a grande dama, nasceu do trabalho duro, onde mora o samba, no barracão chamado Brasil, canta a mulher trabalhadora e negra na voz transparente pesada de sal do trabalho, chora cuíca, e o olhar assim com desdém, do marinheiro só, não, diz ela, eu não tenho amor, foi no tombo do navio, foi no balanço do gingado todo de branco, sexual, bonezinho do marinheiro só, foi a mãe Clementina, Menina, que o galo cantou às quatro lúdicas da manhã, na linha do mar, pois quem me vê sorrir não há de me ver chorar, na linha do mar, lá vejo o mar, a madrugada foi embora, onde é que ela mora?, a profunda, diz agora, eu não sou daqui, sai da frente, sai, filho de batuqueiro, cambondo de orixá, na batucada da vida sou o primeiro, sou o primeiro a sambar, que quando o galo cantou a lua dormiu, a madrugada chorou, na pele morena o suor, tátá, crioula de taratá, a terra que tem minhoca eu gostá de cavucá, de Clementina a cantar, hum, ela não morreu, o Brasil ela canta, veraz, ela sabe a morada, jazzística, radical, — eu moro na roça, iaiá, nunca morei na cidade, minha gente cheguei agora, com Nossa Senhora, eu moro na roça — compro o jornal da manhã pra saber das novidades – ai minha mãe! — doutor, jogava o Flamengo e eu queria escutar, — chegou, mudou de estação, tem dó, seu doutor, eu dou um pulo no bar... se com desprezo me olha me causa cruentas dores, seus olhos luminosos, ritmada, porque do amor não entende nada, nada, era empregada doméstica por 20 anos, a patroa não gostava daquela voz — «parece miado de gato», o compositor Candeia assim também dizia no «Partido Clementina de Jesus»: «Não vadeia Clementina — Fui feita pra vadiar — Energia nuclear», começou a Clementina, doméstica, engomadeira, banqueteira Clementina, cadê você, cadê seus corimás, jongos Rosa de Ouro e de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, ó rainha Clementina do partido-alto, mudou-se para a Mangueira? ou para as festas das igrejas da Penha e de São Jorge?, cantando cantos de escravo, música de romaria, jongo benguelê milagre dos peixes escravos de Jó? hein?, onde anda a menina Clementina que acompanhava a mãe para acender seu cachimbo, lavando roupa, a mãe fumava, contava, reclamava dela quando se entretinha, cantarolando, ao bater roupa no tanque, dizia a patroa: "Clementina, você está cantando ou está miando?", que Leny Andrade diria depois: "nunca consegui produzir com minha garganta os sons que Clementina emite com a dela. Clementina é o horizonte da música brasileira e também o seu limite" — sim, e foram reencontrá-la no Zicartola, no samba duro e no partido alto recolhido nos quintais cariocas, pagode e santo, lundus, jongos, corimas, modas, incelenças, pontos, chulas e cantos de trabalho, que guardou em sua memória que viria a registrar 50 anos mais tarde, Clemenina cantora de forno e fogão, desagravo do povão, filha de violeiro e capoeirista, com jongos, benditos e ladainhas, sim, Clementina de Jesus morreu sem dinheiro, esquecida, em julho de 1987 — na época dos sertanejos, do pagode, mas continha a voz de negra, em registro grave, de cantora de jongo, a dicção perfeita não era fruto de esforço não, mas resultado de séculos da raça, traduzidos na formação do povo, diáspora negra, que ela até se apresentou na África e na Europa, chegou mesmo a cantar a Marselhesa na França, mas não foi boa vendedora de discos, poderia vender o peixe («eu sou a peixeira faceira») — morreu em 87 aos 85 anos deixando a saudade na raça registrada, e as gerações futuras vão querelar: «Clementina cadê você?», vosmissê na festa da Padroeira e na Taberna da Glória está, tataratatá, iluminada de rendas brancas, partideira minha amada que cantava de alegria, de beleza, de orgia como canto da raiz no ressoar de tambores, nas rezas de ancestrais, na mulata de olho aceso, na pele jambo ou curiboca, de olho preto ou marrom, brancos cabelos e mestiços de matizes, lundus calangos pontos e benditos, novenas, terços à beira-córrego, rituais de vida e da morte no universo rural de Valença e no santuário de Santo Antônio de Carambito; o samba duro, integrado ao corpo, expresso em voz, passo e gesto, canto de senzala, canto sincretizado, e rezas de igreja das festas dos oragos, da força da natureza, como no temporal que desabou na noite de estréia do «Rosa de Ouro», que inundou as ruas de Botafogo, mas abençoando tudo com a água pura da chuva, arrasando com raios e trovões a terra inteira...