quarta-feira, 9 de abril de 2008

A Chuva nos Espelhos; Maria Azenha


A Chuva nos Espelhos; Maria Azenha


Risoleta Pinto Pedro


Para conseguir falar sobre este livro tive de fazer uma opção importante, definir aquilo sobre o que não posso falar. Porque é um livro infinitamente cheio de infinitos, como o espelho, o caos, as crianças e o mar. Só para exemplificar. Há outros. Eu escolhi não entrar no espelho, corria o risco de não sair. Escolhi não entrar no caos, corria o risco de não me distinguir dele, não ir pela mão das crianças que por aqui andam, corria o risco de ir parar para sempre a uma estrela. Escolhi seguir sempre o caminho do mar, como se faz nos labirintos, seguindo sempre por um dos lados, pelo menos é o que dizem os heróis que conseguiram sair. A escolha que fiz, o mar, também é perigosa, mas sempre dá para ir deixando migalhas que talvez os pássaros não comam e me possibilitem fazer o caminho de volta.
Este poema (não, não me enganei, não queria dizer livro, queria dizer poema, porque, para mim, é de um poema que se trata, poema em várias partes, o índice indica 31, mas essas são as visíveis, eu acho que são mais)… então este poema começa com vogais de água e sons abertos, e termina com o rumor no fogo, e sons fechados.
Segundo António telmo no seu livro Gramática Secreta da Língua Portuguesa, “… a fonética portuguesa é a demonstração de que cada língua possui uma estrutura sagrada.” Para mim, a poesia de Maria Azenha também o é.
No já aludido primeiro poema fala-se em :
“[…]
palavras sur-
preendidas pelos castiçais dos ii
[…]”
E não será por acaso que estes versos estão rigorosa e geometricamente no centro do poema, como Na Cartilha Maternal de João de Deus, esse outro cabalista, cujo esquema das vogais apresenta o “i” rigorosamente no centro, que no diagrama dos sephiroth corresponde ao lugar do Filho. Ou Tiphereth (sendo o “a” o do Pai e o “u” o do Espírito Santo).
A propósito disto, escreve António Telmo:
“Dirá o leitor que a situação do i no centro é ocasional e obedece tão só a razões fonéticas ou meramente estéticas. A caracterização posterior das letras e a sua distribuição por conjuntos levam-nos a pensar de outro modo.[…]”
Também a mim a linguagem dos sons neste poema me leva a pensar que nada do que se passa no mundo aqui criado é casual. Mas é, sim, um caso. Digno de atenção.
As abertas vogais de água são uma espécie de figura de convite, estão bem na abertura, e fazem aquilo que as figuras de convite fazem: convidam-nos a entrar. De outra forma seria difícil penetrar neste mundo, porque é o mundo da Flauta Mágica. O rumor no fogo com os seus sons fechados convida-nos ao silêncio a que se remete e nos remete o fim do poema. O fim que se vê, porque no mundo invisível o rumor permanece. E como fogo, cintila. Não crepita, para não se extinguir, guarda apenas um discreto rumor, o rumor do fogo lento dos alquimistas ou da cozinha destas mulheres de que aqui se fala. Que eu tenha contado, só mães são seis, mulheres são duas, e é interessante especular sobre esta relação matemática. Não vou fazê-lo, deixo-vos esse prazer.
Há ainda um rosto feminino, uma rapariga e um ser que é tratado pelo sujeito poético como “filha”. Mais três. E ainda: uma mulher chamada Lília, quase a versão feminina da flor, uma outra mulher chamada Perpétua, que por acaso ou talvez não, também é nome de flor, e uma pomba. E são mais três.
Resumindo esta poética matemática, temos seis mães, duas mulheres, três figuras do feminino, dois nomes e uma pomba.
Neste universo de “elas” encontrei-me ainda cinco vezes com a Lua, quatro com o chão, treze com o mar, quatro com as trevas, quatro com a noite, oito com a água. E não estou a contar as versões da água em nuvens, em gelo, em chuva, em fontes, em lágrimas…
Para equilibrar ou desequilibrar este conjunto, encontrei quatro vezes o Sol, quatro vezes as estrelas, sendo que uma é uma estrela magoada, três vezes o fogo, duas vezes o céu e uma vez o… pai.
Neste poema há mulheres com máscaras de rostos femininos (a “mulher” deste livro ela esconde-se atrás de si mesma): de rapariga, de Perpétua que é flor, de pomba que é asa. Mulher, flor, ave). Esta mulher/máscaras começa a viagem com as mães, ao encontro, ou pelo menos em busca… do pai. Navega nas trevas, por vezes iluminada pela lua por mares muitas vezes navegados, navega pelo meio da chuva, pelo meio das lágrimas, em paisagens de gelo. No corpo aquático da Mãe procura o Pai, nomes que aqui escrevo com maiúsculas, procurando o arquétipo.
Esta é, para mim, a única maneira possível de falar deste livro: pelo símbolo que também é o número. Porque o poema está escrito numa língua intraduzível, como criptado. As palavras são as que reconhecemos, mas criam relações tais que só mesmo entrando com elas na realidade do sonho, do símbolo ou do número é possível um ainda que leve encontro. É um mundo que se situa algures entre o concreto do pão e da semente, e o impalpável sem nome. Ou entre a neve e o lume.
Para além do mais, as palavras irradiam, criam ramificações como uma estrutura atómica. Ou como um labirinto, que deve ser a mesma coisa. A diferença, é que à entrada deste labirinto não está o cão das muitas cabeças mas uma mulher de muitos rostos a fingirem de máscara, que umas vezes é criança, outras rapariga, outras mãe, outras mar, outras Lua.
Mãe, Mar, Lua, e quase temos aqui, em peças de puzzle, sem conotações religiosas, a imagem de Ísis, ou a Virgem: Maria, que é mãe e é mar, sobre o crescente, que é Lua. Três escadas de três degraus letras ao encontro do quase inominável, do quase inominado paterno regaço, lá nesse lugar onde o sexo já não é seita ou separação, onde tudo se funde num imenso e silencioso rumor. Chamam-lhe amor.
Depois disto apenas me resta dizer, embora correndo o risco de parecer contradizer-me, que este é um poema sobre a realidade, porque lê-lo é entrar num dos infinitos mundos reais, partindo deste lugar aparentemente tão sólido, que é, já Platão dizia, sonho e sombra.
É um livro generoso que se abre para além das folhas, apesar (ou por causa) do hermetismo aqui tomado na acepção mais comum, mas também no sentido tradicional que lhe vem da origem, o deus da vara abraçada por serpentes.
Ousar entrar neste outro mundo que estas palavras criam faz encontrar um sentimento de reconhecimento, porque à medida que avançamos pelo labirinto das páginas, vamos murmurando para os nossos botões: “eu conheço este mundo, fica ao lado do meu”. Encontramos também de merecimento, e murmuramos:” eu mereço este mundo, porque o reconheço como mundo”.
Risoleta Pinto Pedro
Março, 2008

Ed Alma Azul, Fevereiro 2008

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