terça-feira, 1 de abril de 2008

ESSES PRAZERES:
Deixe contar. Ou cantar. Um dia eu vinha por aquela rua quando o encontrei. No chão. Era um raro exemplar do livro de Cabral. Arrependo-me de ter dado aquele volume. ("Terceira feira", 1961). Os antigos alfarrábios de poesia são como vinho velho.
Só o álcool dessa garrafapode o vinagre e o ferrãopara a alma toda murchana pose fetal do não
(Diz Cabral). Lembro-me de Ademir da Guia, com seu jogo. Lento. O lento jogo do tempo. O chumbo, o peso, a câmara lenta. (Diz Cabral). Outro dia, na Net: Ademir da Guia, jogando - Sim, porque:
Ademir impõe com seu jogoo ritmo do chumbo (e o peso)da lesma, da câmara lenta,do homem dentro do pesadelo.
(Diz Cabral). Cada palavra tem um peso e densidade do chumbo, do dentro:
Ritmo líquido se infiltrandono adversário, grosso, de dentro,impondo-lhe o que ele deseja,mandando nele, apodrecendo-o.
João Cabral só diz aquelas "mesmas palavras", a saber, a poesia e suas guias. Ademir joga como se um escafandro vestisse. A lerdeza do homem submarino, a água da ambiência daquela gente “de uma Caatinga entre secas, entre datas de seca e seca entre datas”. O simbolismo da água descreve o mundo, em que o poeta se revê, graus de materialidade, de revelação.
Ritmo morno, de andar na areia,de água doente de alagados,entorpecendo e então atandoo mais irrequieto adversário.
Ademir da Guia, para ele, ser feito de água dos alagados, feito nas águas dos alagados, gente "de uma Caatinga", que executa seu jogo "com água". Langorosa:
A gente de uma Caatinga entre secas, entre datas de seca e seca entre datas, se acolhe sob uma música tão líquida que bem poderia executar-se com água. Talvez as gotas úmidas dessa música que a gente dali faz chover de violas, umedeçam, e senão com a água da água, com a convivência da água, langorosa. ("Fazer o seco, fazer o úmido").
O jogo de Ademir da Guia, "bem poderia executar-se com água". Mas a bola chumbo. Orbe. Maciço. A idéia da água vai na alma encharcada da gente. Qualquer que seja o jogo, Cabral só fala do que fala:
E as vinte palavras recolhidas nas águas salgadas do poeta e de que se servirá o poeta em sua máquina útil.
Vinte palavras sempre as mesmas de que conhece o funcionamento, a evaporação, a densidade menor que a do ar. ("A lição de poesia")
Ou seja: "Vivo com certas palavras / abelhas domésticas.":
Falo somente com o que falo: com as mesmas vinte palavras .................................................. Falo somente do que falo: do seco e de suas paisagens. ("Graciliano Ramos")
Impossível separar: o futebol, a poesia, o chumbo, que "ulcera a boca". Na verticalidade, na substância da água:
Só uma água vertical, água parada em si mesma, água vertical de poço, água toda em profundeza,
água em si mesma, parada e que ao parar mais se adensa, água densa de água, como de alma tua alma está densa.
Cabral, em realidade, só fala da morte:
Talvez porque qualquer água fique mais densa se morta ................................................ Não há dúvida, a água morta se torna muito mais densa.
Como se vê, o indivíduo é a soma das impressões singulares do mundo. É perto da água e de suas antigas imagens que o sujeito compreende que o sonho é um universo em emanação, um sopro que sai das coisas (Bachelard).

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