quinta-feira, 3 de abril de 2008

OITAVO CAPÍTULO

CRISPIM DO AMARAL


- Como vê, meu caro, além da pintura, que é meu trabalho exclusivo, existe um grande número de acessórios, um maquinismo complicadíssimo e um guarda-roupa. As “Amazonas” estarão vestidas de guerreiras da idade do ferro: couraça, capacete, lança, escudo, peles de tigres, sandálias altas e trançadas.
- É o seu “Panorama Teatral”? perguntou Levy.
- Sim, elas montarão em cavalos, quase do tamanho natural. Essas Amazonas atravessarão o espaço a uma altura de cinco a seis metros. Para isso é necessário um maquinismo todo especial, que só a ópera de Paris possui para a chevauchée das Walkyrias de Wagner. Crisprim falava alto, como se tivesse no palco, era dramático, gesticulava, abria os braços e pigarreava enquanto falava.
- Entre os acessórios, contam-se 4 lanternas de projeção, de grande força, para o efeito de toda a cena das Amazonas. O espectador verá passar, pelo rio, troncos de árvores, plantas aquáticas diversas, como realmente no rio Amazonas. Jacarés e tartarugas na transparência da água, um efeito devastador. O “Panorama Teatral” será umas das melhores exibições deste ano.
E suspirando:
- Para esta obra, para o transporte e montagem, preciso de trinta mil francos, soma que peço a todos vocês.
Então, foram levados para a sala de jantar pelo generoso anfitrião João Serejo.
- O que significa a pintura, perguntou Waldemar Scholz, entrando na sala onde estava o novo quadro de Crispim.
Ele, Lima Silva, Adelelmo do Nascimento, o pianista Albert Levy e João Kardek jantavam na chácara de João d’Albuquerque Serejo e D. Clementina Dias, na rua da Constituição, atual 24 de Maio. Fileto Pires Ferreira, Secretário de Estado, também comparecera, mas já tinha saído, ocupadíssimo e agitado que era. Há pouco chegara o Visconde de Vila Gião com a esposa, D. Maria José, coberta de jóias, que era professora no Carreiro. Crispim do Amaral era o convidado principal. Lá estava ele tentando arrancar da rica clientela dinheiro para seu espetáculo. Já tinha vendido o quadro e agora tentava arrancar os 30.000 francos, principalmente do riquíssimo alemão Scholz e do Visconde.
O jantar estava servido quando eles contemplavam o grande quadro de Crispim do Amaral. O quadro dominava a sala.
Crispim com sua obra se agigantava, apontava detalhes, a contra-luz, os tons de verde, salientava a composição, a perfeição, a amplitude da paisagem amazônica.
Mulato, o genial Crispim do Amaral (Pernambuco, 1845 - Rio de Janeiro 1911), era músico (flautista), cenógrafo, pintor, desenhista, decorador e ator. Estudou na Academia di San Lucca, na Itália, trabalhou em Paris, no teatro da Comédie Française. Cartunista do jornal «Le Rire» fez uma caricatura que mostrava a rainha Vitória em posição vexatória e por isso foi condenado a 3 anos de prisão. Depois retornou ao Brasil e em 1894 chegou em Manaus, onde se encarregou da decoração do Teatro Amazonas. Dizem que algumas idéias da fachada do Teatro Amazonas são suas, como os óculos da cimalha, alusivos aos que existem na Ópera de Paris, e mesmo a exótica cúpula colorida.
De Manaus Crispim contratou Giovanni Capranesi e Domenico De Angelis para trabalhar com ele.
Scholz tinha vindo ao sarau de João d’Albuquerque para conhecer Crispim do Amaral e também para contratar Adelelmo e Albert Levy para tocar para ele uma sonata de Beethoven, para violino e piano, em sua casa. Trazia debaixo do braço as partituras, que importara da Alemanha para os dois músicos.
- O que significa a pintura? - perguntou Waldemar Scholz.
- A Baía de Boioçu, respondeu Crispim, apontando na janela a região do quadro, algumas horas acima da cidade de Manaus.
Crispim sacudia a cabeça, pigarreando, inquieto, como se representasse Shakespeare.
- A Boioçu, vociferou, com voz grave, possui uma largara de vinte e oito quilômetros e, somente a Baía do Jufari, acima da Boca do Rio Branco, a supera em largura, por ocasião das enchentes do Rio Negro, tributário do grande Rio Amazonas.
- Cemitério de navios naufragados, acrescentou, trágico.
- Sim, disse, depois de um gole de champanhe num gesto largo. A Boioçu tem uma centenas de ilhas onde toda a esquadra inglesa poderia esconder-se.
O jantar estava esquecido na mesa.
- Entre a Baía do Boioçu, ou Boiuna (Cobra Grande) e a Baía do Jufari, - continuou, no meio da sala, para a sua platéia deliciada - encontram-se os índios Jauaperis, Camanaus, Alalaus, Macucuaus e outros, todos derivados da grande família de índios Maacaus ou Macuxis.
- A região é repositório das mais belas lendas amazônicas, disse apontando a tela que tinha pintado.
E depois de outro gole de champanhe, com sublimidade e tragédia na voz:
- Dizem que Ajuricaba, o herói do Rio Iiaá, amaldiçoou o Rio Negro por ocasião de sua morte, e é por isso que não há, ao longo desse grande Rio, acima de Manaus, nenhuma prosperidade, nenhuma fartura, nenhuma riqueza estável. Há pouca vida nas suas águas, comparadas com as águas barrentas dos outros rios, e menos vida ainda nas matas, onde o silêncio é sepulcral, especialmente quando pára o vento.
- Quem é o personagem? perguntou Lima Silva, apontando para o quadro.
- Arimoque, o sonhador, respondeu o pintor num lance, e deve constar, em tamanho gigantesco, no formidável Teatro Amazonas aqui ao lado. Arimoque, de olhos enamorados das coisas sobrenaturais, belo caboclo que tocava flauta tríplice na beira do rio, ao pôr do sol. Faz parte das lendas, mas parece que existiu mesmo.
- Tem certeza? perguntou Adelelmo.
- Dizem que era originário do Rio Camanaú, índio Maacu, e trabalhou com um patrão branco, trocando a fibra de piaçava. Tirava melopéias intermináveis, cuja monotonia tinha efeito hipnótico sobre todos os ouvintes.
E depois de servir-se de um pedaço de peixe que o garçom distribuía, disse Crispim:
- Arimoque viajava entre as ilhas, hoje conhecidas como arquipélago das Anavilhanas, dormindo nas pedras, com sua canoa virada sobre si.
E esperou, em silêncio.
- Continue, insistiu Adelelmo, impressionado. Tinha família, amante, filhos?
- Não. Sua família era a maloca, deixada além da terceira cachoeira do rio Camanau.
- Amigos?
- Não. Vivia só. Raramente via alguém, ou era visto.
E depois de olhar misteriosamente o quadro, começou:
- Um dia, entre a grande ilha do Tamandaré e a costa, estava numa gruta que ficava parte do ano submersa. Era seu ponto favorito na sua ilha.
- Naquele dia percebeu, ao longe, dois barcos à deriva. Pegou do remo e rumou para lá... Mas quando chegou, com horror, que os barcos eram duas cobras grandes.
- Duas anacondas, senhores, fez Crispim com o horror nos olhos, de vinte metros.
E mudando de tom: “Mas estavam no cio, não se interessaram por ele”.
- Então, escureceu, caiu tempestade, ele voltou, abrigou-se entre as pedras, dormiu sonhou. Foi desperto por uma voz de mulher que cantava, era a Iara, e sua corte de deusas, a Uiara, a rainha das águas, que aparecia para os índios de coração puro. Ela saiu das águas, os olhos de gato, os longos cabelos verdes. A criatura o chamou mas ele não foi e ela desapareceu nas profundezas misteriosas do Rio Negro.
Crisprim sorveu um gole e:
- Arimoque passou a ofertar flores, orquídeas, para ela voltar, mas ela nunca voltou. Ele apaixonou-se e morreu de paixão. Sua canoa ainda é vista hoje, nas noites de lua cheia, vazia, rondando aqueles espaços.
No fim da noite, quando Waldemar Scholz ia partir, disse para Crispim, que ficou ainda, falando alto e gesticulando muito:
- Passe amanhã no meu escritório. Sabe onde fica?
- Sei, disse Crispim.
- Nos Remédios, acrescentou Schols.
E partiu.

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