quarta-feira, 3 de junho de 2009

O mundo da literatura esquecida







O mundo da literatura esquecida

Rogel Samuel

Acabo de ver que não há nada sobre Magvinier de Castro na web. Nem o meu antigo site aparece, onde eu o coloquei. Meu "Site do escritor" foi o primeiro a colocar na web autores amazonenses antigos, como Magvinier de Castro. Seu melhor livro - verdadeira obra-prima - é "Amazonia panteísta", com capa de Moacyr Andrade.

Antonio Mavignier de Castro nasceu no Ceará, no dia 21 de novembro de 1895, fez curso primário em Belém. Com nove anos de idade, em companhia da tia, seguiu para a França até concluir o Curso de Bacharel em Ciências e Letras. Regressando ao Brasil, entrou para a redação do jornal “A Época”, em Manaus. Em 1916, foi nomeado chefe de revisão do Diário Oficial do Estado do Amazonas. Foi repórter do jornal “O Tempo” e no “Jornal do Comércio”, de Manaus. Como Promotor Público, atuou nas Comarcas de Eirunepé, Tefé e Manacapuru, deixando-as para ser nomeado Prefeito de Moura, no interior do Amazonas. Foi professor de Francês na Escola de Comércio “Solon de Lucena”. Escreveu “Síntese Histórica e Sentimental da Evoluçao de Manaus” e
“Amazónia Panteísta”. Era membro da Academia Amazonense de Letras, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e sócio correspondente da Academia de Letras do Ceará.

Ele era um escritor forte, à moda antiga, naquele estilo que chamo de "art nouveau", como Euclides da Cunha, Eça, Rui Barbosa, Coelho Neto, os escritores impressionistas, imitadores dos franceses. Até mesmo Barthes escrevia assim. Eu os imitei no meu pobre "O amante das amazonas".

Transcrevo um capítulo de "Amazônia panteísta":

"Orfeu das selvas amazônicas"


“Leucolepia arada modulatrix”... Na classificação dos milhares de pássaros existentes nas selvas, nos campos e nos montes de todos os continentes, talvez nenhuma especificativa se ajuste melhor que a do uirapuru amazônico. Até a terminologia tupi interpreto a vulgaridade que o torna conhecido - “uirú”, (boca) e “purú”, (ruidosa, cantora).

É na quietude balsâmica das manhãs luminosas, antes do sol atingir o zênite, que, invariàvelmente, na copa de uma árvore altíssima da terra firme, um gorjeio harmonioso se foz ouvir em escala crescente de acordes enleantes, de sonidos puríssimos, tal um conjunto inefável de notas metálicas e cristalinas vibradas ao mesmo tempo, num misto aproximado de arpejo eólio e avena pastoril, cuja gama de sublimada consonância nenhum instrumento musical, por mais sonoroso, pode imitar.

Então, como que atraídos pela suave melodia, ora evanescente, ora altissonante, centenas de pássaros revoam transpondo os recessos florestais. Suas asas não tatalam e nenhum pipilo lhes sai da garganta. Crer-se-ia que temendo profanar a serenidade panteística do momento, êles se aproximam silenciosos do minúsculo orfeu plumiliforme, e, pousados a seu redor, vão matizando os ramos com as suas plumagens azuis, citrinas, purpúreas, brancas e negras.

Terminada a fantasia de côres esvoaçantes com a quietude embevecida dos alígeros ouvintes, o gorjeador faz pausa, voeja para empoleirar-se na ramagem de outra árvore, seguido triunfalmente pela profusão de penas deslumbrantes que lembram a policromia de um fogo de artifício caindo na penumbra do matagal silente.

Na sucessão dêsses rápidos intervalos, é possível, de relance, vislumbrar a tonalidade barrosa do corpo do pequeno virtuose ornitológico. Quem jamais ouviu as modulações do mago passarinho, dificilmente acreditará no estranho fascínio que a sua harmonia exerce sobre os sêres alados e, também, na extraordinária influência que ela desperta em nosso espírito.

Excluída a prodigiosa propriedade do canto inimitável, pouco se sabe dos hábitos do “Leucolepia arada modulatrix”. Jamais um exemplar de qualquer idade resistiu ao cativeiro. Pacientes observações, entretanto, revelaram que êle é insetívoro, nunca se alimentando com gramíneas ou frutos silvestres. A plumagem do casal é uniforme, —côr de argila escura, mais carregada que a do vulgaríssimo ‘joão-de-barro”. Não possuem, ambos, os soberbos reflexos metálicos vistos nas asas dos rouxinóis do Rio Negro; não lhes ornam as cabeças penachos carmezins como os dos “galos-de-campina”, e suas gorjeiras não ostentam as cintos douradas que refulgem no peito dos “japiins”. Em compensação, quando êles nidificam, no período nupcial, a capacidade vocal se lhes desenvolve de modo tão imprevisto que a melodia patética do gorjeio adquire, dentro do místico recolhimento da natureza, surpreendente motivo de elevação hierática, somente comparável aos temas poéticos que nos levam aos paroxismos da emotividade, como quando ouvimos, sublimadas, a execução suave, espiritualística, das extasiantes músicas sacras.
(De “Amazônia Panteísta’)

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