sábado, 6 de junho de 2009
O amante das amazonas, 1
Rogel Samuel
UM: VIAGEM.
NÓS nos despedimos na Cancela sob a primeira luz da madrugada do Natal de 1897 - eu de minha mãe, nunca mais a vi - na presença de todos que ali estavam e de quem me não quero lembrar, no povoado de Patos em Pernambuco, de onde parti com duas mudas de roupa na mala, amarrada, costurada, com um cosmorama onde se avistavam as paisagens de Manaus, Belém, Paris, Londres, Viena e São Petersburgo.
Vim cavalgando um muar num comboio de lã pela Borborema, e três dias depois estava em Timbaúba de Mocós, cabeça de linha de ferro e ponto de reunião de tropeiros do sertão da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Foi lá que me puseram dentro de um trem para o Recife onde, no Brum, encontrei uma hospedaria perto do Cais da Lingüeta onde fiquei cinco dias e de onde embarquei no Alfredo, destinado ao Amazonas: eu era um adolescente.
Viajei aquele dia e no seguinte amanhecemos em Cabedelo, o cais cheio de gente ansiosa que recebia combatentes de Canudos, Monte Santo e Favela, da Travessia de Uauá. Houve alegria mas muito mais prantos e gritos. E não nos demoramos, que dali partíramos para Natal, onde retirantes esperavam aquele navio para fugir para o Amazonas. E já, além dos 500 soldados da Polícia do Pará, se acomodava nos porões do navio todo o 4° Batalhão de Infantaria que sem baixas, inteiro, voltava da Guerra; assim em Fortaleza o Comandante Bezerra obrigado a aceitar, acolher e abrigar uma lista, lida em voz alta, de mais de 600 flagelados da seca que nós desde 79 vínhamos retirando periodicamente para o Amazonas, que estiava: Navio dentro do qual não cabia mais único engradado de porcos, alojando aquela horda que fedia podre, de suor, esterco de gado e urina - redes se entrecruzando e houve roubo, bebedeira, estupro, briga, facada e morte - um pai esfolou um macho surpreendido com sua filha num vão de esterco; outro, bêbado, mijava ali no chão enquanto escorria até onde dormiam muitos, no chão; sobre um garajau de galinhas um homem sacou de si e se aliviou sob a luz de um candeeiro amarelo cheio de moscas. Era um soldado.
Passamos do Farol de Acaraú ainda dentro daquele porão e paramos em Amarração para largar um cadáver, o preso e dois passageiros cobertos de varíola. Mas não tocamos em Tutóia, aportando em São Luís onde o Alfredo foi dentro d’água cercado por botes, catraias e se transformou em gigantesca feira flutuante, lá subindo todos para bordo os vendedores de camarão frito, doces e frutas. Pois não foi uma viagem maravilhosa? E logo desataviado, despachado, o Alfredo prosseguiu navegando pesado ao longo e em direção de Belém, e ao entardecer se moderava a marcha para deixar subir o prático da Barra do Farol quando o Alfredo franqueava o estuário do Rio Amazonas e, à malagueta, penetrava o grande rio de bitáculas acesas que era noite e apesar de tudo coberta de estrelas.
Foi em Belém que me hospedei naquele hotel que se chamava “Duas Nações” porque de um português e um espanhol. E como tinha de esperar um mês pelo Barão do Juruá para o Amazonas, e meu dinheiro se acabava, dormia ao relento, economizando para almoçar, que eu já devia a passagem ao patrão, que adiantava.
Porém embarcado chegaria em Manaus sem tropeços depois de 6 dias de viagem a 8 milhas por hora. E 2 dias mais tarde passava pela Boca do Purus, 5 dias após entrava na Foz do Juruá. Não navegávamos dia e noite? Na Foz do Juruá o Rio Solimões mede 12 km de largura e pássaros de vôo curto (o jacamim, o mutum, o cojubim) não conseguem atravessar, morrendo cansados afogados no fundo de ondas pinceladas de amarelo da travessia. Em 8 dias de navegação pelo Juruá chegávamos no Rio Tarauacá e atracávamos em São Felipe, de 45 casas, vila bonita, e arrumada. 9 dias depois entrávamos no Rio Jordão, de onde não prosseguiu o Barão, que não tinha calado, a gente seguindo desse modo de canoa pelo Igarapé Bom Jardim, subindo pois e encontrando nosso termo e destino, a ponta do nosso nó, o término, o marco extremo de nós mesmos, o mais longínquo e interno lugar do orbe terrestre - atingíamos finalmente o Igarapé do Inferno, limite do fim do mundo onde se encontrava, e envolto no peso de sua surpresa e fama, o lendário, o mítico, o infinito Seringal Manixi - 40 dias depois de minha partida de Belém, 3 meses e 5 dias desde que minha partida de Patos.
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