sexta-feira, 31 de julho de 2009

Quietude





Quietude

Rogel Samuel

Nada fazer, faz tudo. Das dez direções se aprende isso: não fazer nada. O mais difícil é isto: sentar-se na pose de Buda para não fazer nada. Sentar para nada fazer é tão difícil quanto entender o pensamento. Como estamos sempre pensando, estamos fazendo algo, nos distraimos. Nada fazer é a quietude do silêncio mais profundo. Se eu me sento "para meditar" já estou perdido. No meio do sansara. No meio de New York. A quietude é mente vazia, não mente morta. Mente lúcida, cheia de sua luz. Luz e silêncio. Eu nunca a vi, mas muito tenho lido a respeito.


As dez direções convergem
Cada aprendizagem para não fazer nada,
Isto a sala do treinamento de Buda;
Mente vazia, tudo acabado.

P'ang Yün (Hõ Un) (Dois Zen Classics 263)

"Quando ele veio a Baso e disse novamente, 'Quem é aquilo independente de todas as coisas? Baso lhe disse: 'Quando você beber toda a água no rio de Yang-tze, eu lhe direi.' Com isto, Koji sofreu a grande experiência e compos outro verso: " (Dois Zen Classics 263)


quinta-feira, 30 de julho de 2009

Quem é independente de todas as coisas?





Quem é independente de todas as coisas?

Rogel Samuel

Essa a pergunta sem resposta de "Hõ Koji”. Ali as coisas são a montanha, água, lenha. O grande segredo é esse: carregar lenha e água. Ninguém em púrpura, ninguém importante? Nada a escolher ou descartar, nada. Diariamente nada a acrescentar ou escolher. Puro viver.



"Hõ Koji (Hõ era sua família, Koji um título de respeito para um estudante secular de Zen) estudou primeiro com Sekitõ e depois com Baso, a quem sucedeu. Quando ele conheceu Sekitõ, ele perguntou: “Quem é independente de todas as coisas?” Antes que ele tivesse terminado de perguntar isto, Sekitõ cobriu a boca de Koji com sua mão dele. Assim Koji sofreu uma experiência e se expressou no verso seguinte:" (Dois Zen Classics 262-3)


Diariamente, nada em particular,
Só acenar com a cabeça para mim,
Nada a escolher, nada a descartar.
Nenhum próximo, nenhum andamento,
Nenhuma pessoa em púrpura,
Montanhas azuis sem nenhum pó.
Eu exercito poder oculto e sutil,
Levando água, carregando lenha.

(Dois Zen Classics 262-3)

Hõ Koji

terça-feira, 28 de julho de 2009

Vida e glória



Vida e glória


Rogel Samuel


Vida de monge? Vida gloriosa. A grande tarefa da vida: fazer o que aparece para ser feito.
Nada buscar tudo ter. O acontecimento glorioso da vida, tudo aquilo que é para ser vivido. O experimento da paz, a paz na ação, a paz ativa. Sem julgar que é bom ou mal, nada escolhe nem rejeita. Oh vida gloriosa sem outra dificuldade além do acontecimento diário de que cada coisa e cada fato é o que é, sem deslize. A maior glória do poder mágico é que as montanhas azuis, as colinas verdejantes. A luz da prática espiritual consiste nisso: levar água, juntar lenha. Quem consegue fazer sem pensar, avaliar, delirar já está na mais alta realização.

“Na minha vida diária não há nenhuma outra tarefa
Além do que acontece cair em minhas mãos.
Não escolho nada, não rejeito nada.
Em nenhuma parte há dificuldade, em nenhuma parte um deslize.
Eu não tenho nenhum outro emblema de minha glória
Além das montanhas e colinas sem uma mancha de pó.
Meu mágico poder e exercício espiritual consiste nisso:
Levar água e juntar lenha.”
(P'ang Chü-shih, A Idade Dourada do Zen 94, 304 n.5)

Mindfulness

Mindfulness

春有百花秋有月 Spring comes with its flowers, autumn with the moon,

夏有涼風冬有雪 summer with breezes, winter with snow;

若無閑事挂心頭 when useless things don't stick in the mind,

更是人間好時節 that is your best season.

Wu-men Huai-kai (無門慧開 Mumon Ekai), from Wu-men kuan (Mumonkan) case 19

(The Light Inside the Dark 97)

Concentração

A primavera vem com suas flores
o outono com a lua
o verão com a brisa, o inverno com a neve
quando coisas inúteis não aderem à mente
está na sua melhor estação.


Porque a mente livre, ampla e vazia? Espaço mental, silêncio atento, lucidez. Quem a tem? Talvez a mente de flores, a mente-lua, a mente que é como a brisa, a mente branca que cai como a neve, a mente sem aderências, sopro infinito sobre o universo das coisas, iluminada.

O mundo se abre sobre essa mente transparente. Eu não a conheço, mas há quem a tenha.

A chuva fina
cai sobre o Rio de Janeiro.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Os pássaros livres


Os pássaros livres


Rogel Samuel


Por quê? Por que pergunta Dogen pelo destino dos pássaros do céu? Eles voam para seu destino, conhecem o rumo, não deixam rastro no ar, nem precisam de um guia que os leve para lá, e lá, além, muito além daquele horizonte, sabem que está a salvação do inverno. Oh, como nós nos perdemos de nosso rastro, como esquecemos o destino, como precisamos que nos guiem. O mundo perdido, a terra prometida jogo esquecido. Nossas mentes andam cheias de palavras, cheias de esquecimento.


Os pássaros migratórios
não deixam rastro
não buscam um guia


Dogen (1200 - 1253) trad. inglesa de Robert Bly. Original em japonês.

terça-feira, 21 de julho de 2009

As gotas no telhado


As gotas no telhado


Rogel Samuel


A chuva no telhado encontra a mente aberta, a mente livre de Dogen. A mente sem limites, sem pensamentos, sem ilusões. A mente livre não se encontra senão no seu objeto: no som da chuva. Dogen é onde sua mente está. Agora ele é o som da chuva, gotejando no telhado. A mente iluminada de Dogen é livre, não se limite em si, não se apega a nada. Não se apega, apenas toca. No que toca, ali é.


Porque a mente é livre--
Escutando a chuva
Gotejando no telhado,
As gotas se tornam
Um comigo.

Dogen (1200 - 1253)

Versão inglesa de Steven Heine

Língua original japonês

domingo, 19 de julho de 2009

O pássaro voa para a serpente

O pássaro voa para a serpente


Rogel Samuel



Depois de beber o fogo do vinho da taça, por que continuar vestido com a vestimenta de inverno? O tempo voa, a vida passa, o pássaro do tempo só tem um modo de voar, e ele está voando agora, aproveitemos o pouco tempo que temos, venha, encha a taça com o fogo da vida pois o pássaro do tempo voa para a serpente, e a morte é certa, e já está próxima sempre. Eis, venha, encha a taça que a vida dura somente o tempo de bebe-la, e há pouco vinho ali e pouca chance de permanecer com ela.

Diz o poema da Khayyam:



Venha, encha a taça, e no fogo da torrente
A vestimenta de Inverno de Arrependimento voa:
O Pássaro de Tempo tem apenas um leve modo
De voar--e eis! o Pássaro está na sua Asa.


Omar Khayyam (Século 11) versão inglesa de Edward FitzGerald

Língua Original Persa/Farsi

Compartilhando a Cabana da Montanha com uma Nuvem







Compartilhando a Cabana da Montanha com uma Nuvem


Rogel Samuel


"Uma cabana solitária no cume da montanha se sobressai sobre mil outras;

Sua metade ocupada por um monge velho e a outra metade por uma nuvem:

Ontem à noite houve uma tempestade e a nuvem foi soprada para longe;

Sobretudo porque uma nuvem não é igual igual ao modo quieto do homem velho".


Poema de Kuei-tsung Chih-chih (um monge que morou numa cabana humilde em Lu-shan)

(H.C. Warren. Essays in Zen Buddhism – Second Series 352-2).



O comentarista e tradutor Warren diz que "ele esclarece habilmente a sua avaliação da Vacuidade; o verso não será entendido somente como descrevendo a sua cabana solitária onde ele morou em companhia com as nuvens".

O monge a cabana a montanha e a nuvem foram varridas pelo sopro da tempestade. Só a nuvem desapareceu, mas a montanha ficou. As ilusões são como nuvens. A meditação quieta do velho monge é sólida como a montanha. Sua cabana é seu mosteiro. Por que a iluminação do velho monge é uma tempestade? Diziam os mestres Zen que há dois meios de atingir a iluminação: tirar algodão do manto e quebrar uma pedra. O velho quebrou a pedra.

sábado, 18 de julho de 2009

O fluir do rio dos pensamentos


O fluir do rio dos pensamentos

Rogel Samuel

O mestre Dogen (1200-1253) escreveu um misterioso poema:



"Acima de tudo, não deseje tornar-se um Buda futuro;
Sua única preocupação deveria ser,
Como um pensamento segue a um pensamento,
Evitar agarrar qualquer um deles".


Porque pensar em tornar-se um futuro Buda é um pensamento. Também é um pensamento. E os pensamentos são sombras, são fantasmas, são alucinações. Não podemos ser ou fazer nada com um pensamento senão pensá-lo. Como num sonho. E assim estamos dormindo. Nossos sonhos são os pensamentos. Fantasias. Loucuras. E nossa maior loucura é agarrar um pensamento após o outro, tentar pegá-los, seguir o seu curso, acreditar neles, pensar que são verdade, que são a consciência do eu. Tornar-se um Buda futuro é um desejo, um pensamento. Mas o Buda não é pensamento. Assim, deixemos que se vão os pensamentos no seu curso. Na confusão de suas interligações. Até que, se houve um espaço de silêncio entre dois pensamentos, nesse silêncio estaremos em paz. Quando o pensamento cessa.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

O grande tesouro












O grande tesouro

Rogel Samuel


"Conheço agora
este tesouro da verdadeira liberdade,
inesgotável não só para mim
mas também para todos outros:
a lua brilha sobre a água do rio
o vento sopra nos pinheiros
fresca e pura sombra de uma larga noite.
Qual é a causa?"

Yoka Daishi. "O canto do satori imediato"



Yoka anuncia a decoberta de um tesouro, de um tesouro da liberdade, libertaçao verdadeira, inesgotável tesouro, para ele, para todos, e qual é esse tesouro? onde reside este tesouro? lá, na lua que brilha sobre o rio sem causa, no vento que sopra nos pinheiros sem causa, na fresca e pura sombra sem causa, de uma noite sem causa, de uma larga noite sem causa. A descoberta de que nada tem uma causa, de que tudo é gratuito no Universo, é a libertação absoluta, é o tesouro máximo da liberdade absuluta.

terça-feira, 14 de julho de 2009

O que diz Daishi



O que diz Daishi


Rogel Samuel


Yoka Daishi nasceu em 665 em Yoka, de onde vem seu nome. Escreveu um dos livros mais importantes do Zen, "O canto do satori imediato". Um dos seus poemas desse livro tem 4 versos. Os 2 primeiros dizem:

Devemos viver muitas vezes
e muitas vezes morrer.

A maioria dos hermeneutas interpreta esses versos como dizendo da reencarnação. Mas (quem sou eu para isso) eu penso que se pode ler diferentemente.

Nesta vida mesma morremos e vivemos várias vezes. Cada vez que morremos para um fato, renascemos das nossas próprias cinzas. Se não morrermos para cada fato não poderemos renascer. E aí morreremos de fato. A morte é nescessária para que possamos viver, continuar vivos.

Vida e morte se sucedem
sem interrupção na eternidade.

"Zazen é a experiência da morte. Aqui e agora, no Zazen, está a morte", escreveu o comentarista, mestre Deshimaru. O Zazen é a meditação silenciosa.

Deshimaru não interpreta, porém, como reencarnação.

Temos medo da vida, diz, por isso tememos a morte. Inventamos a reencarnação porque tememos a morte. "A morte é vida, a felicidade é desgraça. Sempre queremos categorias, porém elas não existem", diz Deshimaru.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

A completa realização de P'ang Yün


A completa realização de P'ang Yün

Rogel Samuel


Primeiramente o texto tece o tempo. Não existe. O passado não existe, é passado. Não tente lembrar o passado. Deixo-o onde está. Onde (não) está.
O presente não é tangível. Passa rápido. Ao tocá-lo já é outro, já não é.
Quanto ao futuro... que futuro? Qual futuro? Ainda nada sabemos dele. Não é pensável, antes.
Não tente julgar, não avalie as coisas que vierem aos olhos: não existe ordem a ser mantida nem sujeira a ser limpa.
O dharma não tem vida (nem não vida).
A realização está completa.
Assim é o poema:

“A realização última

P'ang Yün


O passado já é passado
Não tente recuperar.

O presente não fica
Não tente tocá-lo.

Momento a momento
O futuro não veio
Não pense nisto
Antes.

Tudo que vem ao olho,
Deixe que seja
Não há nenhuma ordem
A ser mantida,
Não há nenhuma sujeira
A ser limpa.

Com a mente realmente vazia
Penetrado, o dharma
Não tem nenhuma vida.

Quando puder estar assim,
Você completou
A realização última.

P'ang Yün”.

domingo, 12 de julho de 2009

A interrogação em Mar de Rogel Samuel










A interrogação em Mar de Rogel Samuel

Jefferson Beça

Mar





onde está, onde
onde está no horizonte
onde está o destino
por onde se vai nesta barca
por onde navegar assim
neste mar de incertezas
neste caminho sem pista
se por que vagueamos em claros
na grande muralha de atalhos
perdidos labirintos
pássaros de bicos frios
flores de asas mortas
e em embrulhadas falas
mulheres e homens nas tramas
de suas rotas?



LEITURA DE JEFFERSON BEÇA


O texto por inteiro é uma interrogação. Esta, então, por si só já traz a aventura do poema de Rogel Samuel. Mas qual será a resposta? Para o poema não há resposta, já que a pergunta tem a força de ser ela mesma. O mar traz - mais do que a incerteza – o movimento dos difíceis atalhos nos quais vamos embrulhando nossa falas, nossos versos. Vamos tramando alguns passos que encontram pelo meio do caminho objetos aparentemente mortos. Mas poderíamos insistir na interrogação do poema que é a sua vida seguindo a busca sem encontrar a resposta. Por meio disso não se define nada, pois o que há de mais forte é saber que o poema impele a vida tateando, navegando por rotas que sempre terão em si a interrogação. (Jefferson Bessa)

sábado, 11 de julho de 2009

mar



mar


rogel samuel

onde está, onde
onde está no horizonte
onde está o destino
por onde se vai nesta barca
por onde navegar assim
neste mar de incertezas
neste caminho sem pistas
e por que vagueamos em claros
na grande muralha de atalhos
perdidos labirintos
pássaros de bicos frios
flores de asas mortas
e em embrulhadas falas
mulheres e homens nas tramas
de suas rotas?

- LEIA O COMENTÁRIO DE JEFFERSON BEÇA AQUI

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Hoje, em BLOCOS ON LINE



Coluna quinzenal de Rogel Samuel, com o 15º capítulo de O Igarapé do Inferno, romance
que se passa na Amazônia, agora na época da borracha, em sua segunda parte, em:



http://www.blocosonline.com.br/home/index.php

quinta-feira, 9 de julho de 2009

A escondida



A escondida

Rogel Samuel



Ela tem 103 anos. É isso que me diz o barbeiro que há 50 anos mora por aqui e conhece a todos. "Dizem", acrescenta. Todos os dias ela caminha um pouco, pela manhã, sempre só, toda agasalhada, mesmo no verão. Vai até a esquina, olha o Cristo do Corcovado. Vai até os fundos da igreja, reza para a imagem de uma santa. Outro dia a vi atravessando a rua, coisa rara. Para mim ela é a pessoa mais importante do bairro. Não o Roberto Carlos. Parece que mora só, nunca a vi acompanhada. 103 anos dá para escrever a história de um povo, a história de um Século. Meus Deus, que recordações terá? Eu gostaria de entrevistá-la. 103 anos me diz que ela pode ter conhecido muita coisa, muita gente. Me parece solteira, não tem cara de mãe. Mãe tem cara de mãe, ela não. Tem rosto de moça, de menina, posso imaginá-la menina. Pois anda até rapidamente, e tem uma certa graça, para sua idade. Não usa begala. Só uma capa, com capuz e cachecol. Como se quisesse esconder-se da morte.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

A imprensa vive de escândalos?


A imprensa vive de escândalos?

Rogel Samuel

(Na foto, a certidão de óbito de MJ: negro, divorciado, músico).

Assisti ontem a um curioso espetáculo na TV. Num dos mais conceituados canais de TV a cabo, à noite, o âncora perguntou ao entrevistado:
- Você acha que santificaram Michael Jackson depois de morto? Esqueceram tudo que ele fez de errado?
- Sim, respondeu o outro. Agora só vêem o músico, não o homem... e por aí foi o ataque.
Acontece que:
1. Jackson foi absolvido por falta de provas das acusações de pedofilia etc. (não para a media, que nunca o perdoou).
2. Jackson não traiu o movimento negro ao se tornar branco: um dos primeiros direitos individuais que existe é o “direito de si”. Ou seja: você tem o direito de mudar a cor do cabelo, colocar ou não um brinco na orelha, fazer uma plástica, uma dieta, etc. Todos nós temos o sagrado direito de fazer o que quisermos com nosso corpo, ate nos matar.
3. Quem deve ser acusada é a sociedade racista americana da época de Jackson, pois se ele se “embranqueceu” é porque queria ser aceito como grande astro por todas as pessoas.
Por que continuam acusando MJ?

É sintomático que a polícia de Los Angeles tenha tantas vezes perseguido o astro. Seu rancho foi destruído por ela: até o carpete foi arrancado para se “descobrir” algo suspeito, como um subterrâneo. Nada se descobriu.
Depois de morto, a polícia invadiu a casa de MJ em busca de algo “suspeito”. Descobriu remédios. Que Jackson tomava. Seus remédios pessoais.



terça-feira, 7 de julho de 2009

O Rio de Janeiro no inverno



O Rio de Janeiro no inverno

Rogel Samuel


O frio. É muito estranho esse clima. As pessoas ficam tristes. Ar claro. Luz maravilhosa. No budismo do Tibet há um Buda que se chama Buda da Luz Infinita. A idéia de cegueira é aterrorizante. Ainda que a luz seja sempre algo interno. A vida deve ser luz. Luz e som. Cores. Sonoridades luminosas. Bilac escreveu um soneto terrível. Beethoven Surdo.

Surdo, na universal indiferença, um dia,
Beethoven, levantando um desvairado apelo,
Sentiu a terra e o mar num mudo pesadelo.
E o seu mundo interior cantava e ressurgia.

Torvo o gesto, perdido o olhar, hirto o cabelo,
Viu, sobre a orquestração que no seu crânio havia,
Os astros em torpor na imensidade fria,
O ar e os ventos sem voz, a natureza em gelo.

Era o nada, a eversão do caos no cataclismo,
A síncope do som no páramo profundo,
O silêncio, a algidez, o vácuo, o horror no abismo.

E Beethoven, no seu supremo desconforto,
Velho e pobre, caiu, como um deus moribundo,
Lançando a maldição sobre o universo morto!

Mas Bilac não o viu surdo, pois o interior de seu crânio "cantava e ressurgia". Havia uma orquestração interna. O que morria no vácuo era o mundo exterior, amaldiçoado. O Universo morto.

Já se disse de Beethoven que ele compôs a música das esferas. Foi no concerto 4 ou 5 para piano e orquestra, creio. A música das esferas luminosas do céu. Dante. Dante viu nas esferas o amor. O amor que move as estrelas.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

São Francisco, hoje


São Francisco, hoje

Ulysses Bittencourt e os poetas amazonenses



Ulysses Bittencourt e os poetas amazonenses


Rogel Samuel


Ulysses Bittencourt é um intelectual muito importante, membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. Ele é autor de muitos trabalhos sobre o Amazonas, citados por Samuel Benchimol e Mário Ypiranga.

Publicou "Raiz" (Rio de Janeiro: Copy e Arte, 1985), "Povoamento da Bacia Amazônica"
(Porto Alegre, PUC, 1988 - conferência proferida na PUC-RS) e "Patiguá" (Rio de Janeiro: Copy e Arte, 1993).

Escreveu nos anos 1980 no jornal “A Crítica”, de Manaus.

Mário Ypiranga Monteiro disse na apresentação de "Patiguá" que "por muitos anos constituirá o testemunho valioso dos quadros históricos amazonenses não tratados anteriormente (...)" (p. 19).

"Raiz" e "Patiguá" são citados por Samuel Benchimol em "Manáos do Amazonas - Memória
empresarial, vol. 1 (Manaus: ACA (Associação Comercial do Amazonas) - Fundo Editorial / Governo do Estado do Amazonas, 1994).

Há uma rua em Manaus com seu nome. São informações colhidas na Internet.

O verbete na WIKIPEDIA afirma que Ulysses Bittencourt "foi um dos autores que logrou delinear alguns dos tipos humanos da região, especialmente o do coronel de barranco".

O coronel de Barranco era “o assim chamado "barão da borracha", da época do boom amazônico da hévea - que não pertencia ao Exército Brasileiro -, geralmente adquiria uma patente da extinta Guarda Nacional".

Outras figuras regionais estudadas por Ulysses foram o trabalhador ribeirinho; o ex-escravo afrodescendente; e o poeta amazonense - que, muitas vezes, vivia em dificuldades financeiras - da Manaus da primeira metade do século XX.

O poeta era um tipo social.

domingo, 5 de julho de 2009

venham poemas



rogel samuel

venham, poemas, líricos, idos, tidos
desusados
venham das gavetas das estantes do passado
venham a mim
todos
esquecidos não lidos poemas das bibliotecas
em milhares em milhões de seus versos
suas muitas vozes muitas rimas e
imagens
eu os amo, poemas perdidos
eu os amo
e poderia lê-los todos
se me dessem tempo de vida
todos
me esperam em fila nas bibliotecas velhas
nos seus esquifes-livros
finalmente fechados
quem os lerá?
quem saberá?
venham a mim, venham
de todas as partes
em todas as línguas
com todas as suas finas rimas

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Comentando um comentário



Comentando um comentário

Rogel Samuel


Leila Miccolis comentou um poeminha nosso.

Comentar um poema é tão gostoso quanto escrevê-lo. Comentar um bom poema, não um meu. Tenho consciência de minhas limitações.

Eu escrevo comentários desde que era menino. Mas Leila foi generosa, minha amiga, com meu poema.

É claro que muitas vezes o comentarista é melhor do que o texto comentado. Como é o caso. Este caso.

Quando comento, mergulho no imaginário do poema, geralmente grandes poemas, fecundos poemas de grandes poetas, como a própria Leila.

Fiz isso durante mais de 30 anos em sala de aula, transformando a minha profissão numa coisa prazerosa.

Tem muita gente que acha que esses comentários não são exercícios de crítica de literária. Pensa que são crônicas.

Para eles, crítica tem de ser cerebral, seca, árida, coisa de professor de literatura (mau professor, diga-se). Não conhecem a crítica criativa, a hermenêutica por exemplo, quando o texto crítico concorre com o texto objeto. Quando o crítico se reconhece no texto.

É uma volta ao impressionismo crítico do Século 19? Talvez, talvez. Com cautela. Mas já T. S. Eliot dizia, creio, que o melhor crítico tinha de ser um poeta. É avançar no texto, apropriar-se dele, como fazia Barthes, fazê-lo seu, fazê-lo falar.

Até na filosofia isso se dá. Habermas que o diga.

Mas é claro que o comentarista crítico fica no fio da navalha, não pode ultrapassar e enlouquecer, dizendo coisas que não estão no universo semântico do texto comentado. Nem se trata de procurar o autor no que o texto diz. Já se declarou a morte do autor, a morte do sujeito.

Eu não mereço o ato crítico de Leila. Mas gostei demais. Fiquei orgulhoso, feliz. Ela valorizou o texto, mostrou valores escondidos, sentidos potenciais ocultos.

Para ela poesia é contramão. No sentido de acesso paralelo. Como dizia Drummond, amar depois de perder. Falar de amor na completa solidão.

Por isso o poema ganhou uma dimensão inesperada. Leia aqui.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Meu cavalo chegou


Meu cavalo chegou

Rogel Samuel



Leio o belo soneto de Farias de Carvalho (1930-1997), o poeta amazonense, o poeta maior, tão bom quanto os maiores. Leio no "Fingidor" o soneto. Farias meu professor de literatura no colégio. Farias genial poeta:




Meu cavalo chegou


Farias de Carvalho (1930-1997)


Meu cavalo chegou (memória e nuvem),
a aurora derramada sobre a crina.
Meu cavalo chegou. Fome de tudo
estou também: engoliremos mundos.

Meu cavalo chegou. E, pressentidos,
os caminhos me espiam de suas rédeas.
Meu cavalo chegou. Há quanto tempo
gasto-me em pés e olhos nesta espera...

Meu cavalo chegou. Eu despertava
quando o vento falou-me de seus cascos
e a poeira garantiu-me sua presença.

Meu cavalo chegou. Cumprir-me-ei.
Tanta gente cansada nessas cruzes...
Meu cavalo chegou. Mortos, montai!...


Leio o belo soneto e mergulho na sua simbologia, na sua mitologia. Cavalo, signo quente, masculino, sexual. Memória e nuvem, desejos na aurora, sobre a crina. Desejo, fome de tudo, engoliremos mundos. Pressentimentos dos caminhos, de suas rédeas de virtude e de vício, de seus cascos, da poeira, da presença. Meu cavalo chegou para acordar os mortos, tema sempre constante em Farias d'Ouro de Carvalho, tanta gente morta, tanta gente cansada nessas cruzes. O ponto é aqui. A vida contra a morte. O cavalo contra a poeira esquecida do caminho...

Pina Bausch

Capa e contracapa





Lucilene Gomes Lima. Ficções do ciclo da borracha no Amazonas: Estudo comparativo dos romances “A selva” (FERREIRA DE CASTRO), “Beiradão” (ÁLVARO MAIA) e “O amante das amazonas” (ROGEL SAMUEL). Manaus, Editora da Universidade do Amazonas, 2009. 240p. ISBN 978-85-7401-458-6.


Lucilene Gomes Lima acabou de lançar o livro Ficções do Ciclo da Borracha no Amazonas, um estudo comparativo entre os romances A Selva, de Ferreira de Castro, Beiradão, de Álvaro Maia e O Amante das Amazonas, de Rogel Samuel. É sobre esse seu trabalho que ela nos fala agora.

Revista Literária – O que levou você a fazer esse estudo entre os romances A Selva, Beiradão e O Amante das Amazonas?
Lucilene Gomes Lima: Esses livros representam três momentos ou fases de uma produção quantitativamente expressiva sobre o ciclo. A Selva foi publicada em 1930 pelo autor, português, Ferreira de Castro. Elaborando ficcionalmente a experiência vivida num seringal amazônico, não se pode dizer que o autor dialogou com a produção anterior, de autores como Euclides da Cunha, Alberto Rangel, especialmente porque o contexto de produção em que estava inserido era o neo-realismo português. A Selva é a percepção de um autor europeu sobre a Amazônia, filtrada a partir de uma experiência de vida. O romance Beiradão, por sua vez, foi publicado em 1958, quando já estava publicada uma dezena de obras sobre o tema. A possibilidade de que Álvaro Maia tenha dialogado com essas obras não deve ser descartada, mas a mudança de enfoque na abordagem do papel do seringalista, quebrando o anátema da figura vilanesca tão ao gosto de autores que o precederam (Ramayana de Chevalier, Francisco Galvão) ocorreu mais seguramente pela percepção política e biográfica (o autor era filho de seringalista), o que o pôs no papel de redentor deste agente social, enquanto ser inescrupuloso, rude e sem visão. Portanto, a renovação empreendida por Álvaro Maia tem caráter político-ideológico superior ao caráter de diálogo e remodelação da estrutura narrativa e temática sobre o ciclo. O Amante das Amazonas, terceiro romance selecionado, publicado em 1992, é uma narrativa ficcional que acumula um diálogo com as obras posteriores. A própria mudança de direção quanto aos clichês e ao esquematismo dos aspectos em torno do ciclo já evidencia isso. Mas ainda que essa obra apresente uma mudança de ângulo na abordagem e na estrutura, guarda um ponto em comum com as outras duas – o papel da memória como propulsora da narrativa. O autor de O Amante das Amazonas, Rogel Samuel, é neto de Maurice Samuel, rico comerciante da borracha no século XIX. As memórias dessa era são, portanto, um legado familiar. O dado da experiência vivida ou revivida pela memória, direta ou indiretamente, comum aos três autores, e as abordagens que propiciaram mudanças no filão ficcional sobre o ciclo instigaram e promoveram a realização do estudo.

RL – Existem vários outros livros sobre o ciclo da borracha no Amazonas. Por que escolheu exatamente esses três?
LGL: O estudo que eu realizei abrange a produção ficcional sobre o ciclo da borracha, por isso, outras obras também são estudadas além das três mencionadas. A seleção dos três romances deu-se após a leitura extensiva das obras ficcionais sobre o tema. Após essa leitura é que surgiu a hipótese de que a produção ficcional sobre o ciclo não apresenta reformulação em seu enfoque. No entanto, nos romances A Selva, Beiradão e O Amante das Amazonas, o tema do ciclo recebeu um tratamento diversificado das demais obras, seja pelo aprofundamento e abrangência da abordagem, seja pelo rompimento de certos lugares comuns que criaram um filão em torno da repetição dos mesmos aspectos, seja ainda pela elaboração criativa, reformulando as estruturas ficcionais já desgastadas.

RL – A que conclusões chegou após fazer o estudo?
LGL: A principal conclusão é que o processo de aprofundamento do tema e diversificação das abordagens ficcionais não está condicionado necessariamente ao tempo em que as obras foram publicadas. A pesar de eu ter feito um recorte temporal de estudo, ao selecionar A Selva, Beiradão e O Amante das Amazonas, já que as data de publicação situam-se precisamente em décadas representativas do início, meados e final do século XX, penso que isso não ocorreu como forma de comprovar que as obras evoluíram no decorrer do tempo. Apenas coincidentemente as obras em que verifiquei e apontei um trabalho mais aprofundado e criativo em relação ao tema encontram-se situadas numa cronologia ascendente. A produção ficcional sobre o ciclo poderá ter muitas abordagens futuras, rompendo ou não com os clichês em torno do tema. O verdadeiro fator que contribui para a diversificação é a percepção aguda e criativa do autor.

RL – Como definiria a visão de cada autor sobre o ciclo da borracha?
LGL: A seleção das três obras pelo critério da diversificação ficcional sobre o tema também contemplou três visões distintas dos autores. As visões de Ferreira de Castro e de Álvaro Maia nos revelam não apenas a forma como trataram o tema do “ciclo da borracha”, mas também suas percepções sobre o lugar Amazônia. Ferreira de Castro logrou ser o autor que melhor soube elaborar, organizar e apresentar, didaticamente, o tema. Talvez porque seu conhecimento sobre a exploração foi resultante de sua própria experiência num seringal, a qual sua sensibilidade soube captar e encadear criticamente em forma de narrativa literária. Por outro lado, a percepção desse autor sobre a Amazônia ainda se manifesta dentro de uma concepção etnocêntrica, com todas as antigas dicotomias paraíso/inferno; civilização/selvageria que eram a tônica nos discursos de cronistas, cientistas e ficcionistas europeus. Álvaro Maia, autor nativo, não apresenta em sua obra os sobressaltos espantos que caracterizam a percepção do autor português. Sua naturalidade nesse meio está bem exposta na clássica foto em que aparece em uma canoa, remando, integrado a natureza e aos costumes de seu lugar. No entanto, como a evidenciar que o discurso etnocêntrico deixou profundas marcas no ser nativo, em Beiradão o autor, por intermédio de seu representante ficcional, o narrador, atribui as vicissitudes e as perversões no processo de desbravamento e exploração do meio amazônico às características de sua natureza selvagem e não aos agentes sociais que empreenderam esse processo. Ademais, é o engajamento político de Álvaro Maia com o Estado Novo que norteia a mudança de percepção sobre o papel do seringalista como um agente negativo no processo econômico de exploração da borracha. Sua visão redentorista desse agente revela uma política conciliatória entre patrão e empregado, omitindo os conflitos. Rogel Samuel, professor, analista literário promove uma diversificação no tratamento do tema a partir de suas concepções teórico-literárias, que podem ser percebidas em seu livro Crítica da Escrita. Daí o aspecto não linear da narrativa de O Amante das Amazonas, consoante a ficção moderna, o destaque dado não ao enredo, mas às personagens, a intertextualidade e o caráter metalingüístico do texto. O texto, ainda, não negligencia a abordagem de aspectos da colonização, tão bem representados em personagens como Maria Caxinauá, nas oposições entre as tribos dos numa e dos caxinauá, na própria dimensão mais ampliada das razões econômicas do ciclo, parte do contexto desta colonização.