Fernão Lopes de Castanheda (1500-1559)
HISTÓRIA DO DESCOBRIMENTO E CONQUISTA DA ÍNDIA PELOS PORTUGUESES
(extracto)
Concertadas as naus de todo o necessário, Vasco da Gama tornou a seu descobrimento e partiu-se um sábado, vinte e quatro de Fevereiro, e aquele dia foi na volta do mar, e assi a noute seguinte, por se afastar da costa, que toda era mui graciosa. E uma quinta-feira à tarde, que foi o primeiro de Março, viu quatro ilhas, duas perto da costa e duas ao mar, e por não ir de noute dar nelas se fez na volta do mar, porque determinava de ir por entre elas, como foi, mandando diante Nicolau Coelho, por ser o seu navio mais pequeno que os outros. E, indo ele à sexta-feira por dentro de uma angra que se fazia entre a terra e hüa das ilhas, errou o canal e achou baixo, o que foi causa de virar atrás para os outros navios que iam após ele; e, em virando, viu que saíam daquela ilha sete ou oito barcos à vela.
A gente que vinha dentro eram homem baços e de bons corpos, vestidos de panos de algodão listrados e de muitas cores, uns cingidos até o giolho e outros sobraçados como capas, e nas cabeças fotas com vivos de seda lavrados de fio de ouro, e traziam terçados mouriscos e adagas. Estes homens, como chegaram aos navios, entraram dentro mui seguramente, como que conheceram os portugueses, e assi conversaram logo com es, e falavam aravia, no que se conheceu que eram mouros. Vasco da Gama lhe mandou dar de comer, e eles comeram e beberam; e, perguntados por um Fernão Martins, que sabia aravia, que terra era aquela, disseram que era hüa ilha do senhorio dum grande rei que estava adiante, e chamava-se a ilha Moçambique, povoada de mercadores que tratavam com mouros da Índia, que e trazia m prata, cravo, pimenta, gengibre, anéis de prata, com muitas pérolas, aljôfar, e rubis, e que doutra terra, que ficava atrás, lhe traziam ouro; e que, se ele quisesse entrar pera dentro do porto, que eles o meteriam, e lá veria mais largamente o que diziam. Ouvido isto por Vasco da Gama, houve conselho com os outros capitães que seria bom que entrassem, assi pera verem se era verdade o que aqueles mouros diziam, como pera tomarem pilotos que os guiassem dali por diante, pois os não tinham, e que Nicolau Coelho fosse sondar a barra: e assi se fez.
A povoação é de casas palhaças, povoada de mouros, que tratavam dali pera Sofala em grandes naus e sem coberta nem pregadura, cosidas com cairo, e as velas de esteiras de palma, e algüas traziam agulhas genoíscas, porque se regiam por quadrantes e cartas de marear. Com estes mouros vinham tratar mouros da Índia e do Mar Roxo, por amor do ouro que ali achavam. E, quando eles viram os nossos, cuidaram que eram turcos por a notícia que tinha de Turquia pelos mouros do Mar Roxo. E aqueles que foram primeiro à nossa frota o foram dizer ao Sultão, que assim chamavam ao governador do lugar que o governava por el-rei de Quíloa, de cujo senhorio era esta ilha.
Fernão Lopes de Castanheda, História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, Livro I, Cap. V.
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Fernão Mendes Pinto (1510?-1583)
PEREGRINAÇÃO
CAP. I – Do que passei em minha mocidade neste reino até que me embarquei para a Índia
Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória; porque vejo que, não contente de me pôr na minha Pátria logo no começo da minha mocidade, em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em pobreza, e não sem alguns sobressaltos e perigos da vida, me quis também levar às partes da Índia, onde em lugar do remédio que eu ia buscar a elas as me foram crescendo com a idade os trabalhos e os perigos. Mas por outro lado, quando vejo que do meio de todos estes perigos e trabalhos me quis Deus tirar sempre a salvo e pôr-me em segurança, acho que não tenho tanta razão de me queixar de todos os males passados, quanta tenho de lhe dar graças por este só bem presente, pois me quis conservar a vida para que eu pudesse fazer esta rude e tosca escritura que por herança deixo a meus filhos (porque só para eles é minha intenção escrevê-la para que eles vejam nela estes meus trabalhos e perigos da vida que Passei no decurso de vinte e um anos, em que fui treze vezes cativo e dezassete vendido, nas partes da Ìndia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e outras muitas províncias daquele oriental arquipélago dos comfins da Ásia, a que os escritores chins, siameses, guéus, léquios, chamam em suas geografias a pestana do mundo, como ao adiante espero tratar muito particular e muito amplamente. Daqui por um lado tomem os homens motivo de não desanimarem com os trabalhos da vida para deixarem de fazer o que devem, porque não há nenhuns, por grandes que sejam, com que não possa a natureza humana, ajudada do favor divino, e por outro me ajudem a dar graças ao Senhor omnipotente por usar comigo da sua infinita misericórdia, apesar de todos meus pecados, porque eu entendo e confesso que deles me nasceram todos os males que por mim passaram, e dela as forças e o ânimo para os poder passar e escapar deles com vida. E tomando para princípio desta minha peregrinação o que passei neste Reino, digo que depois de ter vivido até à idade de dez ou doze anos na miséria e estreiteza da pobre casa de meu pai na vila de Montemor-o-Velho, um tio meu, parece que desejoso de me encaminhar para melhor fortuna, me trouxe para a cidade de Lisboa e me pôs ao serviço de uma senhora de geração assaz nobre e de parentes assaz ilustres, parecendo-lhe que pela valia tanto dela como deles poderia haver efeito o que ele pretendia para mim. Isto era no tempo em que na mesma cidade de Lisboa se quebraram os escudos pela morte de E1-Rei D. Manuel, de gloriosa memória, que foi em dia de Santa Luzia, aos treze dias do mês de Dezembro do ano de 1521, de que eu estou bem lembrado, e de outra coisa mais antiga deste reino me não lembro. A intenção deste meu tio não teve o sucesso que ele imaginava, antes o teve muito diferente, porque havendo ano e meio, pouco mais ou menos, que eu estava ao serviço desta senhora, me sucedeu um caso que me pôs a vida em tanto risco que para a poder salvar me vi forçado a sair naquela mesma hora de casa, fugindo com a maior pressa que pude. E indo eu assim tão desatinado com o grande medo que levava, que não sabia por onde ia, como quem vira a morte diante dos olhos e a cada passo cuidava que a tinha comigo, fui ter ao cais da pedra onde achei uma caravela de Alfama que ia com cavalos e fato de um fidalgo para Setúbal, onde naquele tempo estava E1-Rei D. João III, que santa glória haja com toda a corte, por causa da peste que então havia em muitos lugares do Reino: nesta caravela me embarquei eu, e ela partiu logo. Ao outro dia pela manhã, estando nós em frente de Sesimbra, nos atacou um corsário francês, o qual abalroando connosco, nos lançou dentro quinze ou vinte homens, os quais sem resistência ou reacção dos nossos, se assenhorearam do navio, e depois de o terem despojado de tudo quanto acharam nele, que valia mais de seis mil cruzados, o meteram no fundo; e a dezassete que escapámos com vida, atados de pés e mãos, nos meteram no seu navio com a intenção de nos venderem em Larache, para onde se dizia que iam carregados de armas que para negociar levavam aos mouros. E, trazendo-nos com esta determinação mais treze dias, banqueteados cada hora de muitos açoites, quis a sua boa fortuna que ao cabo deles, ao pôr do Sol, vissem um barco e seguindo-o aquela noite, guiados pela sua esteira, como velhos oficiais práticos naquela arte, a alcançaram antes de ser rendido o quarto da modorra, e dando-lhe três descargas de artilharia a abalroaram muito esforçadamente: e ainda q na defesa tivesse havido da parte dos nossos alguma resistência, isso não bastou para que os inimigos deixassem de entrar nela, com morte de seis portugueses e dez ou doze escravos.
Era este navio uma formosa nau de um mercador de Vila do Conde, que se chamava Silvestre Godinho, que outros mercadores de Lisboa traziam fretada de S. Tomé, com grande carregamento de açúcares e escravaria, a qual os pobres roubados, que lamentavam sua desventura, calculavam que valesse quarenta mil cruzados. Logo que estes corsários se viram com presa tão rica, mudando o propósito que antes traziam, se fizeram a caminho de França e levaram consigo alguns dos nossos para serviço da mareação da nau que tinham tomado. E aos outros mandaram uma noite lançar na praia de Melides, nus e descalços e alguns com muitas chagas dos açoites que tinham levado, os quais desta maneira foram ao outro dia ter a Santiago de Cacém, no qual lugar todos foram muito bem providos do necessário pela gente da terra, e principalmente por uma senhora que aí estava, de nome D. Brites, filha do conde de Vilanova, mulher de Alonso Perez Pantoja, comendador e alcaide-mor da mesma vila.
Depois que os feridos e os doentes foram convalescidos, cada um se foi para onde lhe pareceu que teria o remédio mais certo da vida, e o pobre de mim com outros seis ou sete tão desamparados como eu, fomos ter a Setúbal, onde me caiu em sorte mão de mim um fidalgo do Mestre de Santiago, de nome Francisco de Faria, o qual servi quatro anos, em satisfação dos quais me deu ao mesmo Mestre de Santiago, como seu moço de câmara, a quem servi um ano e meio. Mas porque o que então era costume dar-se nas casas dos príncipes me não bastasse para minha sustentação, determinei embarcar-me para a Índia, ainda que com poucas ilusões, já disposto a toda a ventura, ou má ou boa, que me sucedesse.
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Francisco de Sá de Miranda (1481-1558)
SONETOS
1
O sol é grande: caem coa calma as aves,
Do tempo em tal sazão, que sói ser fria.
Esta água que de alto cai acordar-me-ia,
Do sono não, mas de cuidados graves.
Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
Qual é tal coração que em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
Incertos muito mais que ao vento as naves.
Eu vira já aqui sombras, vira flores,
Vi tantas águas, vi tanta verdura,
As aves todas cantavam de amores.
Tudo é seco e mudo; e, de mistura,
Também mudando-me eu fiz doutras cores.
E tudo o mais renova: isto é sem cura!
2
Aquela fé tão clara e verdadeira,
A vontade tão limpa e tão sem mágoa,
Tantas vezes provada em viva frágua
De fogo, i apurada, e sempre inteira;
Aquela confiança, de maneira
Que encheu de fogo o peito, os olhos de água,
Por que eu ledo passei por tanta mágoa,
Culpa primeira minha e derradeira,
De que me aproveitou? Não de al por certo
Que dum só nome tão leve e tão vão,
Custoso ao rosto, tão custoso à vida.
Dei de mim que falar ao longe e ao perto;
E já assi se consola a alma perdida,
Se não achar piedade, ache perdão.
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GARCIA DE RESENDE
O Cancioneiro Geral, publicado por Garcia de Resende em 1516,
PRÓLOGO DO CANCIONEIRO GERAL
Muito alto e muito poderoso Príncipe Nosso Senhor
Porque a natural condiçam dos Portugueses é nunca escreverem cousa que façam, endo dinas de grande memória, muitos e mui grandes feitos de guerra; paz e vertudes, de ciência, manhas e gentilezas sam esquecidos. Que, se os escritores se quisessem acupar a verdadeiramente escrever nos feitos de Roma, Tróia e todas outras antigas crónicas e estórias, nam achariam mores façanhas nem mais notáveis feitos que os que dos nossos naturais se podiam escrever, assi dos tempos passados como d'agora: tantos reinos e senhorios, cidades, vilas, castelos, per mar e per terra tantas mil légoas, per força d'armas tomados, sendo tanta a multidão de gente dos contrairos e tam pouca a dos nossos, sostidos com tantos trabalhos, guerras, fomes e cercos, tão longe d'esperança de ser socorridos, senhoreando per força d'armas tanta parte de África, tendo tantas cidades, vilas e fortalezas tomadas e continuamente em guerra sem nunca cessar, e assi Guiné, sendo muitos reis grandes e grandes senhores seus vassalos e trebutários e muita parte de Etiópia, Arábia, Pérsia e Índias, onde tantos reis mouros e gentios e grandes senhores sam per força feitos seus súditos e servidores, pagando-lhe grandes páreas e tributos e muitos destes pelejando por nós, debaixo da bandeira de Cristos com os nossos capitães, contra os seus naturais, conquistando quatro mil légoas por mar que nenhúas armadas do Soldam nem outro nenhum gram rei nem senhor nom ousam navegar com medo das nossas, perdendo seus tratos, rendas e vidas, tornando tantos reinos e senhorios com inumerável gente à fé de Jesu Cristo, recebendo água do santo bautismo, e outras notáveis cousas que se não podem em pouco escrever.
Todos estes feitos e outros muitos doutras sustâncas nam sam devulgados como foram, se gente doutra naçam os fizera. E causa isto serem tam confiados de si, que não querem confessar que nenhuns feitos sam maiores que os que cada um faz e faria, se o nisso metessem. E por esta mesma causa, muito alto e poderoso Príncepe, muitas cousas de folgar e gentilezas sam perdidas, sem haver delas notícia, no qual conto entra a arte de trovar que em todo tempo foi mui estimadada e com ela Nosso Senhor louvado, como nos hinos e cânticos que na Santa Igreja se cantam se verá.
E assi muitos emperadores, reis e pessoas de memória, polos rimances e trovas sabemos suas estórias e nas cortes dos grandes Príncepes é mui necessária na gentileza, amores, justas e momos e também para os que maus trajos e envenções fazem, per trovas sam castigados e lhe dam suas emendas, como no livro ao adiante se verá. E se as que sam perdidas dos nossos passados se puderam haver e dos presentes se escreveram, creo que esses grandes Poetas que per tantas partes sam espalhados não teveram tanta fama como tem.
E porque, Senhor, as outras cousas sam em si tam grandes que por sua grandeza e meu fraco entender nam devo de tocar nelas, nesta que é a somenos, por em algúa parte satisfazer ao desejo que sempre tive de fazer algúa cousa em que Vossa Alteza fosse servido e tomasse desenfadamento, determinei ajuntar algúas obras que pude haver dalguns passados e presentes e ordenar este livro, nam pera por elas mostrar quais foram e sam, mas para os que mais sabem s'espertarem a folgar d'escrever e trazer à memória os outros grandes feitos, nos quais nam sam dino de meter a mão.
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GIL VICENTE
AUTO DA BARCA DO INFERNO
(extractos)
Barqueiro mano, meus olhos,
prancha a Brísida Vaz.
ANJO: Eu não sei quem te cá traz...
BRI.: Peço-vo-lo de giolhos!
Cuidais que trago piolhos,
anjo de Deos, minha rosa?
Eu sô aquela preciosa
que dava as moças a molhos,
a que criava as meninas
pera os cónegos da Sé...
Passai-me, por vossa fé,
meu amor, minhas boninas,
olho de perlinhas finas!
E eu som apostolada,
angelada e martelada,
e fiz cousas mui divinas.
(...)
DIA.: E as peitas dos judeus
que a vossa mulher levava?
COR.: Isso eu não o tomava
eram lá percalços seus.
Nom som pecatus meus,
peccavit uxore mea.
DIA.: Et vobis quoque cum ea,
não temuistis Deus.
A largo modo adquiristis
sanguinis laboratorum
ignorantis peccatorum.
Ut quid eos non audistis?
COR.: Vós, arrais, nonne legistis
que o dar quebra os pinedos?
Os direitos estão quedos,
sed aliquid tradidistis...
(...)
JUD.: Porque nom irá o judeu
onde vai Brísida Vaz?
Ao senhor meirinho apraz?
Senhor meirinho, irei eu?
DIA.: E o fidalgo, quem lhe deu...
JUD.: O mando, dizês, do batel?
Corregedor, coronel,
castigai este sandeu!
Azará, pedra miúda,
lodo, chanto, fogo, lenha,
caganeira que te venha!
Má corrença que te acuda!
Par el Deu, que te sacuda
coa beca nos focinhos!
Fazes burla dos meirinhos?
CAV.: À barca, à barca segura,
barca bem guarnecida,
à barca, à barca da vida!
Senhores que trabalhais
pola vida transitória,
memória, por Deos, memória
deste temeroso cais!
À barca, à barca, mortais,
barca bem guarnecida,
à barca, à barca da vida!
Vigiai-vos, pecadores,
que, despois da sepultura,
neste rio está a ventura
de prazeres ou dolores!
À barca, à barca, senhores,
barca mui nobrecida,
à barca, à barca da vida!
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Gil Vicente
Fala do Lavrador:
Sempre é morto quem do arado
há-de viver.
Nós somos vida das gentes
e morte de nossas vidas;
a tiranos, pacientes,
que a unhas e a dentes
nos tem as almas roídas.
Para que é parouvelar?
Que queira ser pecador
o lavrador;
não tem tempo nem lugar
nem somente d'alimpar
as gotas do seu suor.
Auto da Barca do Purgatório
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João de Barros (1496?-1570?)
DÉCADAS DA ÁSIA
VOLUME I
CAPÍTULO I
Como el-rei dom Manuel, no segundo ano do seu reinado, mandou Vasco da Gama com quatro velas ao descobrimento da Índia.
Falecido el-rei dom João, sem legítimo filho que o sucedesse no reino, foi alevantado por rei (segundo ele deixará o seu testamento) o duque de Beja, dom Manuel, seu primo co-irmão, filho do infante dom Fernando, irmão de el-rei dom Afonso; a quem por legítima sucessão era devida esta real herança, da qual recebeu posse pelo cetro dela, que lhe foi entregue em Alcácer do Sal, a vinte e sete dias de Outubro do ano de nossa redenção de mil quatro centos e noventa e cinco; sendo em idade de vinte e seis anos, quatro meses e vinte e cinco dias (como mui particularmente escrevemos em outra nossa parte intitulada Europa, e ali em sua própria crónica).
E porque, com estes reinos e senhorios, também herdava o prosseguimento de tão alta empresa como seus antecessores tinham tomado, que era o descobrimento do oriente por esse nosso mar oceano, que tanta indústria, tanto trabalho, e despesa, por discurso de setenta e cinco anos tinha custado, quis logo, no primeiro ano de seu reinado, mostrar quanto desejo tinha de acrescentar á coroa deste reino novos títulos sobre o senhorio de Guiné, que, por razão deste descobrimento, el-rei dom Joam, seu primo, tomou, como posse da esperança de outros maiores estados que por esta via estavam por descobrir. Sobre o qual caso, no ano seguinte de noventa e seis, estando em Montemor-o-Novo, teve alguns gerais conselhos: em que houve muitos e diferentes votos, os mais foram que a Índia não se devia descobrir. Por que, além de trazer consigo muitas obrigações por ser estado mui remoto para poder conquistar e conservar, debilitaria tanto as forças do reino que ficaria ele sem as necessárias para sua conservação. Quando mais que sendo descoberta, podia cobrar este reino novos competidores, do qual caso já tinham experiência, no que se moveu entre el-rei dom Joam e el-rei dom Fernando de Castella, sobre o descobrimento das Antilhas, chegando a tanto, que vieram repartir o mundo em duas partes iguais para o poder descobrir e conquistar. E pois desejo de estados não sabidos, movia já esta repartição, não tendo mais ante os olhos que esperança deles e algumas amostras do que se tirava do bárbaro Guiné, que seria vindo a este reino quanto se dizia daquelas partes orientais.
Porém, a estas razões houve outras em contrário, que, por serem conformes ao desejo de el-rei, lhe foram mais aceites. E as principais que o moveram, foram herdar esta obrigação com a herança do reino, e o infante dom Fernando, seu pai ter trabalhado neste descobrimento, quando por seu mandado se descobriram as ilhas de Cabo Verde, e mais por singular afeição que tinha á memória das cousas do infante dom Anrique, seu tio, que fora o autor do novo título do senhorio de Guiné que este reino houve, sendo propriedade mui proveitosa sem custo de armas e outras despesas que têm muito menores estados do que ele era. Dando por razão final, aqueles que punham os inconvenientes a se a Índia descobrir, que Deus, em cujas mãos ele punha este caso, daria os meios que convinham a bem do estado do reino.
Finalmente el-rei assentou de prosseguir neste descobrimento, e depois, estando em Estremoz, declarou a Vasco da Gama, fidalgo de sua casa, por capitão mor das velas que havia de mandar a ele, assim pela confiança que tinha de sua pessoa como por ter acção nesta ida, cá, segundo se dizia, estavam da Gama, seu pai já defunto, estava ordenado para fazer esta viagem em vida de el-rei dom Joam. O qual, depois que Bartolomeu Dias veio do descobrimento do cabo da Boa Esperança, tinha mandado cortar a madeira para os navios desta viagem, por a qual razão el-rei dom Manuel mandou ao mesmo Bartholomeu Dias que tivesse cuidado de os mandar acabar segundo ele sabia que convinha, para sofrer a fúria dos mares daquele grão cabo de Boa Esperança, que na opinião dos mareantes começava criar outra fábula de perigos, como antigamente fora a do cábo Bojador, de que no princípio falamos. E assim, pelo trabalho de Bartholomeu Dias levou ao apercebimento destes navios como para ir acompanhado Vasco da Gama até o por na paragem que lhe era necessária á sua derrota, el-rei lhe deu a capitania de um dos navios que ordinariamente iam á cidade de São Jorge da Mina.
E sendo já no ano de quatrocentos noventa e sete, em que a frota para esta viagem estava de todo prestes, mandou el-rei, estando em Montemor-o-Novo, chamar Vasco da Gama e aos outros capitães que haviam de ir em sua companhia, os quais eram Paulo da Gama, seu irmão, e Nicolau Coelho, ambos pessoas de quem el-rei confiava este cargo. E posto que por algumas vezes lhe tivesse dito sua tenção acerca desta viagem, e disso lhe tinha mandado fazer sua instrução, pela novidade da empresa que levava, quis usar com ele da solenidade que convém a taes casos, fazendo esta fala pública, a ele e aos outros capitães, perante algumas pessoas notáveis que eram presentes, e para isso chamadas:
«Depois que aprouve a Nosso Senhor que eu recebesse o cetro desta real herança de Portugal, mediante a sua graça, assi por aver a benção de meus avós de quem a eu herdei, os quais com gloriosos feitos e victórias que houveram de seus imigos a tem acrescentado por ajuda de tão leais vassalos e cavaleiros como foram aqueles donde vós vindes, como por causa de agalardoar a natural lealdade e amor com que todos me servis, a mais principal cousa que trago na memória, depois do cuidado de vos reger e governa em paz e justiça, é como poderei acrescentar o património deste meu reino, para que mais liberalmente possa distribuir por cada hum o galardão de seus serviços. E considerando eu por muitas vezes qual seria a mais proveitosa e honrada empresa e digna de maior gloria que podia tomar para conseguir esta minha tenção, pois, louvado Deus, destas partes da Europa em as de África a poder de ferro, temos lançado os mouros, e lá tomando os principais lugares dos portos do reino de Fez que é da nossa conquista, achei que nenhuma outra é mais conveniente a este meu reino (como algumas vezes com vosco tenho consultado) que o descobrimento da Índia e daquelas terras orientais. Em as quais partes, peró que sejam mui remotas da igreja Romana, espero na piedade de eos que não somente a fé de nosso Senhor Jesu Cristo seu filho seja por nossa administração publicada e recebida, com que ganharemos galardão antele, fama e louvor acerca dos homens, mas ainda reinos e novos estados com muitas riquezas vendicadas por armas das mãos dos bárbaros, dos quais meus avós com a ajuda, e serviço dos vossos e vosso, tem conquistado este meu reino de Portugal, e acrescentado a coroa dele. Porque, se da costa da Etiópia, que quase de caminho é descoberta, este meu reino tem adquirido novos títulos, novos proveitos e renda, que se pode esperar indo mais adiante com este descobrimento, se não podermos conseguir aquelas orientais riquezas tão celebradas dos antigos escritores, parte das quais por comércio têm feito tamanhas pofencias como são Veneza, Génova, Florença e outras mui grandes comunidades de Itália. Assi que, consideradas todas estas cousas de que temos experiência, e também como era ingratidão a Deus enjeitar o que nos tão favoravelmente oferece, e injuria àqueles príncipes de louvada memória de quem eu herdei este descobrimento, e ofensa a vós outros que nisso fostes, descuidar-me eu dele por muito tempo; mandei armar quatro velas que (como sabeis) em Lisboa estão de todos prestes para servir esta viagem de boa esperança. E tendo eu na memória como Vasco da Gama, que está presente, em todas cousas que lhe de meu serviço foram entregues e encomendadas, deu boa conta de si, eu o tenho escolhido para esta ida como leal vassalo e esforçado cavaleiro, merecedor de tão honrada empresa. A qual espero que lhe Nosso Senhor deixará acabar, e nela a ele e a mim faça tais serviços com que o seu galardão fique por memória nele e naqueles que o ajudarem nos trabalhos desta viagem, porque, com esta confiança, pela experiência que tenho de todos, eu os escolhi por seus ajudadores para em todo o que tocar a meu serviço lhe obedecerem. E eu, Vasco da Gama, volos encomendo, e a eles a vós, e juntamente a todos a paz e concórdia: a qual é tão poderosa que vence e passa todos perigos e trabalhos e os maiores da vida faz leves de sofrer, quanto mais os deste caminho que espero em Deus serem menores que os passados, e que por vós este meu reino consiga o fruto deles.»
Acabando el-rei de propor estas palavras, Vasco da Gama e todas as notáveis pessoas lhe beijaram a mão: assi pela mercê que fazia a ele como ao reino, em mandar a este descobrimento continuado por tantos anos que já era feito herança dele. Tornada a casa ao silêncio que tinha antes deste acto de gratificação, assentou-se Vasco da Gama em giolhos ante el-rei, e foi trazida uma bandeira de seda com uma cruz no meio das da ordem da cavalaria de Cristo, de que el-rei era governador e perpétuo administrador, a qual, estendendo o escrivão da puridade entre os braços em modo de menagem, disse Vasco da Gama em alta voz estas palavras:
«Eu Vaco da Gama, que ora por mandado de vós, mui alto e muito poderoso rei, meu senhor, vou descobrir os mares e terra do oriente da Índia, juro em o sinal desta cruz, em que ponho as mãos que por serviço de Deus e vosso, eu a ponha asteada e não dobrada, ante a vista de mouros, gentios, e de todo género de povo onde eu for, e que por todos os perigos de água, fogo, e ferro, sempre a guarde e defenda até à morte. E assi juro que na execução e obra deste descobrimento que vós, meu rei e senhor, me mandais fazer, com toda fé, lealdade, vigia, e diligência eu vos sirva guardando e cumprindo vossos regimentos que para isso me forem dados, até tornar onde ora estou ante a presença de vossa real alteza, mediante a graça de Deus em cujo serviço me enviais».
Feita esta menagem, foi-lhe entregue a mesma bandeira, e um rendimento em que se continha o que havia de fazer na viagem, e algumas cartas para os príncipes e reis a que propriamente era enviado, assi como ao Preste João das Índias, tão nomeado neste reino e a el-rei de Calecut, com as mais informações e avisos que el-rei dom João tinha havido daquelas partes segundo já dissemos. Recebidas as quais cousas el-rei o espediu; e ele se veio a Lisboa com outros capitães.
João de Barros, Décadas, I, Livro IV
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