quarta-feira, 11 de junho de 2008

ANTOLOGIA DE LITERATURA PORTUGUESA

D. Dinis

Ai flores, ai flores do verde pinho
se sabedes novas do meu amigo,
ai deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado,
ai deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquele que mentiu do que pôs comigo,
ai deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquele que mentiu do que me há jurado
ai deus, e u é?


CANTIGAS DE AMIGO

Ondas do mar de Vigo,
se vistes meu amigo!
E ai Deus, se verrá cedo!


Ondas do mar levado,
se vistes meu amado!
E ai Deus, se verrá cedo!


Se vistes meu amigo,
o por que eu sospiro!
E ai Deus, se verrá cedo!


Se vistes meu amado,
por que hei gran cuidado!
E ai Deus, se verrá cedo!


Martin Codax, CV 884, CBN 1227


Pois nossas madres van a San Simon
de Val de Prados candeas queimar,
nós, as meninhas, punhemos de andar
con nossas madres, e elas enton
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.


Nossos amigos todos lá irán
por nos veer, e andaremos nós
bailando ante eles, fremosas en cós,
e nossas madres, pois que alá van,
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.


Nossos amigos irán por cousir
como bailamos, e podem veer
bailar moças de bon parecer,
e nossas madres pois lá queren ir,
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.


Pero de Viviãez, CV 336, CBN 698

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CANTIGAS DE AMOR

Quer'eu em maneira de proençal
fazer agora un cantar d'amor,
e querrei muit'i loar mia senhor
a que prez nen fremusura non fal,
nen bondade; e mais vos direi en:
tanto a fez Deus comprida de ben
que mais que todas las do mundo val.


Ca mia senhor quiso Deus fazer tal,
quando a faz, que a fez sabedor
de todo ben e de mui gran valor,
e con todo est'é mui comunal
ali u deve; er deu-lhi bon sen,
e des i non lhi fez pouco de ben,
quando non quis que lh'outra foss'igual.


Ca en mia senhor nunca Deus pôs mal,
mais pôs i prez e beldad'e loor
e falar mui ben, e riir melhor
que outra molher; des i é leal
muit', e por esto non sei oj'eu quen
possa compridamente no seu ben
falar, ca non á, tra-lo seu ben, al.


El-Rei D. Dinis, CV 123, CBN 485


Proençaes soen mui ben trobar
e dizen eles que é con amor;
mais os que troban no tempo da frol
e non en outro, sei eu ben que non
an tan gran coita no seu coraçon
qual m'eu por mha senhor vejo levar.


Pero que troban e saben loar
sas senhores o mais e o melhor
que eles poden, soõ sabedor
que os que troban quand'a frol sazon
á, e non ante, se Deus mi perdon,
non an tal coita qual eu ei sen par.


Ca os que troban e que s'alegrar
van eno tempo que ten a color
a frol consigu', e, tanto que se for
aquel tempo, logu'en trobar razon
non an, non viven [en] qual perdiçon
oj'eu vivo, que pois m'á-de matar.


El-Rei D. Dinis, CV 127, CBN 489

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CANTIGAS DE ESCÁRNIO E MALDIZER

Foi um dia Lopo jograr
a casa duü infançon cantar,
e mandou-lhe ele por don dar
três couces na garganta,
e foi-lhe escasso, a meu cuidar,
segundo como el canta


Escasso foi o infançon
en seus couces partir' enton,
ca non deu a Lopo enton
mais de três na garganta,
e mais merece o jograron,
segundo como el canta.


Martin Soarez, CV 974

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Ai, dona fea, foste-vos queixar
que vos nunca louv'en [o] meu cantar;
mais ora quero fazer um cantar
en que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!


Dona fea, se Deus me perdon,
pois avedes [a] tan gran coraçon
que vos eu loe, en esta razon
vos quero já loar toda via;
e vedes qual será a loaçon:
dona fea, velha e sandia!


Dona fea, nunca vos eu loei
en meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já un bon cantar farei,
en que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!


Joan Garcia de Guilhade, CV 1097, CBN 1486

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Roi Queimado morreu con amor
en seus cantares, par Sancta Maria,
por Da dona que gran ben queria:
e, por se meter por mais trobador,
porque lhe ela non quis ben fazer,
feze-s'el en seus cantares morrer,
mais resurgiu depois ao tercer dia!


Esto fez el por üa sa senhor
que quer gran ben, e mais vos en diria:
por que cuida que faz i maestria,
enos cantares que faz, á sabor
de morrer i e des i d'ar viver;
esto faz el que x'o pode fazer,
mais outr'omem per ren' nono faria.


E non á já de sa morte pavor,
senon sa morte mais la temeria,
mais sabe ben, per sa sabedoria,
que viverá, des quando morto for,
e faz-[s'] en seu cantar morte prender,
des i ar vive: vedes que poder
que lhi Deus deu, mais que non cuidaria.


E, se mi Deus a mim desse poder
qual oj'el á, pois morrer, de viver,
já mais morte nunca temeria.


Pero Garcia Burgalês, CV 988, CBN 1380


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João Zorro

Em Lixboa sobre lo mar
barcas novas mandei lavrar,
ay mia senhor velida!

Em Lisboa sobre lo lez
barcas novas mandei fazer,
ay mia senhor velida!

Barcas novas mandei lavrar
e no mar as mandei deitar,
ay mia senhor velida!

Barcas novas mandei fazer
e no mar as mandei meter,
ay mia senhor velida!




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CRONISTAS

Fernão Lopes
(1380-1460)


Porque escrevendo o homem do que não é certo, ou contará mais curto do que foi, ou falará mais largo do que deve; mas mentira em este volume, é muito afastada da nossa vontade. Ó! Com quanto cuidado e diligência vimos grandes volumes de livros, de desvairadas linguagens e terras; e isso mesmo públicas escrituras de muitos cartórios e outros lugares, nas quais depois de longas vigílias e grandes trabalhos, mais certidom haver não podemos da conteúda em esta obra.

Crónica de D. João I, Prólogo



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António Ferreira (1528-1569)

TRAGÉDIA CASTRO

(extractos)

ACTO IV

INÊS E O REI

CASTRO:
Meu Senhor,
Esta he a mãy de teus netos. Estes são
Filhos daquelle filho, que tanto amas.
Esta he aquella coitada molher fraca,
Contra quem vens armado de crueza.
Aqui me tens. Bastava teu mandado
Pera eu segura, e livre t'esperar,
Em ti, e em minh'innocencia confiada.
Escusarás, Senhor, todo este estrondo
D'armas, e Cavaleiros; que não foge.
Nem se teme a innocencia, da justiça.
E quando meus peccados me accusaram.
A ti fora buscar: a ti tomara
Por vida em minha morte: agora vejo
Que tu me vens buscar. Beijo estas mãos
Reaes tam piedosas: pois quiseste
Por ti vir-te informar de minhas culpas.
Conhece-mas, Senhor, como bom Rey,
Como clemente, e justo, e como pay
De teus vassallos todos, a que nunca
Negaste piedade com justiça.
Que vês em mim, Senhor? Que vês em quem
Em tuas mãos se mete tam segura?
Que furia, que ira esta he, com que me buscas?
Mais contra imigos vens, que cruelmente
T'andassem tuas terras destruindo
A ferro, e fogo. Eu tremo, senhor, tremo
De me ver ante ti, como me vejo:
Molher, moça, innocente, serva tua,
Tam só, sem por mim ter quem me defenda.
Que a lingua não s'atreve, o sprito treme
Ante tua presença, porém possam
Estes moços, teus netos, defender-me.
Elles falem por mim, elles sós ouve:
Mas não te falaram, Senhor, com lingua,
Que inda não podem: falam-te co as almas,
Com suas idades tenras, com seu sangue,
Que he teu, faláram: seu desemparo
T'está pedindo vida: não lha negues
Teus netos são, que nunca téqui viste:
E vê-los em tal tempo, que lhes tolhes
A glória, e o prazer, qu'em seus spritos
Lhe está Deos revelando de te verem.

REY:
Tristes foram teus fados, Dona Ines,
Triste ventura a tua.

CASTRO:
Antes ditosa,
Senhor, pois que me vejo ante teus olhos
Em tempo tam estreito: poem-nos hora,
Como nos outros soes, nesta coitada.
Enche-os de piedade com justiça.
Vens-me, senhor, matar? porque me matas?

REY:
Teus pecados te matam: cuida nelles.

(...)

REY:
Ó molher forte!
Venceste-me abrandaste-me. Eu te deixo,
Vive, em quanto Deos quer.

CASTRO:
Rey piadoso,
Vive tu, pois perdoas: moura aquelle,
Que sua dura tenção leva adiante.


PACHECO, REY, COELHO

Oh Senhor, que nos matas! que fraqueza
Essa he indigna de ti? de hum real peito?
Vence-te húa molher, e estranhas tanto
Vencer assi teu filho? que já agora
Terá desculpa honesta: não te esqueças
Da tenção tam fundada, que te trouxe.

REY:
Não pode o meu sprito consentir
Em crueza tamanha.

PACHECO:
Mór crueza
Fazes agora ao Reyno – agora fazes
O que faz a pouca agora em grande fogo.
Agora mais s'acende, arderá mais
O fogo do teu filho. A que vieste?
A pôr em mór perigo teu estado?

(...)

REY:
Não vejo culpa, que mereça pena.

PACHECO:
Inda hoje a viste, quem ta esconde agora?

REY:
Mais quero perdoar, que ser injusto.

COELHO:
Injusto he quem perdoa a pena justa.

REY:
Peque antes ness estremo, que em crueza.

COELHO:
Não se consente o Rey peccar em nada.

REY:
Sou homem.


COELHO:
Porém Rey.


REY:
O Rey perdoa.

PACHECO:
Nem sempre perdoar he piedade.

REY:
Eu vejo húa innocente, mãy de hús filhos
De meu filho, que mato juntamente.

COELHO:
Mas dás vida a teu filho, salvas-lh'alma,
Pacificas teu Reyno: a ti seguras.
Restitues-nos honra, paz, descanso.
Destrues a traydores; cortas quanto
Sobre ti, e teu neto se tecia.
Offensas, senhor, publicas não querem
Perdão, mas rigor grande. Daqui pende
Ou remedio d'hum reyno. ou quéda certa.
Abre os olhos às causas necessarias,
Que te monstramos sempre, e que tu vias.
Cuida no que emprendeste, e no que deixas.
O odio de teu filho contra ti,
Contra nós tal será, como qual fora,
Fazendo-se, o que deixas por fazer.
A ti ficam seus filhos, ama-os, honra-os.
Assi lh'amansarás grã parte da ira.
Senhor, por teu estado te pedimos:
Polo amor do teu povo, com que t'ama,
Polo com que sabemos que nos amas:
Mais estas razões fortes, que essa mágoa
Injusta, que depois chorarás mais,
Perdendo esta occasião, que Deos te mostra.

REY:
Eu não mando, nem vedo. Deos o julgue.
Vós outros o fazei, se vos parece
Justiça, assi matar quem não tem culpa.

COELHO:
Essa licenca basta: a tenção nossa
Nos salvará cos homens, e com Deos.

CHORO:
Em fim venceo a ira, cruel imiga
De todo bom conselho. Ah quanto podem
Palavras, e razões em peito brando!
Eu vejo teu sprito combatido
De mil ondas, ó Rey. Bom he teu zelo:
O conselho leal: cruel a obra.


Para o texto integral, clique aqui


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POEMAS LUSITANOS

António Ferreira (1528-1569)

SONETOS

1

Livro, se luz desejas, mal te enganas.
Quanto melhor será dentro em teu muro
Quieto, e humilde estar, inda que escuro,
Onde ninguém t'impece, a ninguém danas!

Sujeitas sempre ao tempo obras humanas
Coa novidade aprazem; logo em duro
Ódio e desprezo ficam: ama o seguro
Silêncio, fuge o povo, e mãos profanas.

Ah! não te posso ter! deixa ir comprindo
Primeiro tua idade; quem te move
Te defenda do tempo, e de seus danos.

Dirás que a pesar meu fostes fugindo,
Reinando Sebastião, Rei de quatro anos:
Ano cinquenta e sete: eu vinte e nove.


2

Dos mais fermosos olhos, mais fermoso
Rosto, que entre nós há, do mais divino
Lume, mais branca neve, ouro mais fino,
Mais doce fala, riso mais gracioso:

Dum Angélico ar, de um amoroso
Meneio, de um esprito peregrino
Se acendeu em mim o fogo, de que indino
Me sinto, e tanto mais assi ditoso.

Não cabe em mim tal bem-aventurança.
É pouco üa aima só, pouco üa vida,
Quem tivesse que dar mais a tal fogo!

Contente a alma dos olhos água lança
Pelo em si mais deter, mas é vencida
Do doce ardor, que não obedece a rogo.

3

S'erra minh'alma, em contemplar-vos tanto,
E estes meus olhos tristes, em vos ver,
S'erra meu amor grande, em não querer
Crer que outra cousa há ai de mor espanto,

S'erra meu esprito, em levantar seu canto
Em vós, e em vosso nome só escrever,
S'erra minha vida, em assi viver
Por vós continuamente em dor, e pranto,

S'erra minha esperança, em se enganar
Já tantas vezes, e assi enganada
Tornar-se a seus enganos conhecidos,

S'erra meu bom desejo, em confiar
Que algu'hora serão meus males cridos,
Vós em meus erros só sereis culpada.

4

Quando entoar começo com voz branda
Vosso nome de amor. doce, e suave,
A terra, o mar, vento, água, flor, folha, ave
Ao brando som se alegra, move, e abranda.

Nem nuvem cobre o céu, nem na gente anda
Trabalhoso cuidado, ou peso grave,
Nova cor toma o Sul, ou se erga, ou lave
No claro Tejo, e nova luz nos manda.

Tudo se ri, se alegra, e reverdece.
Todo mundo parece que renova.
Nem há triste planeta, ou dura sorte.

A minh'alma só chora, e se entristece,
Maravilha de Amor cruel, e nova!
O que a todos traz vida, a mim traz morte.

5

Se meu desejo só é sempre ver-vos,
Que causará, senhora, que em vos vendo
Assi me encolho logo, e arrependo,
Que folgaria então poder esquecer-vos?

Se minha glória só é sempre ter-vos
No pensamento meu, porque em querendo
Cuidar em vós, se vai entristecendo?
Nem ousa meu esprito em si deter-vos?

Se por vós só a vida estimo, e quero,
Como por vós a morte só desejo?
Quem achará em tais contrários meio?

Não sei entender o que em mim mesmo vejo.
Mas que tudo é amor, entendo, e creio,
E no que entendo, e creio, nisso espero.


6

(À morte da esposa)

Ó alma pura enquanto cá vivias,
Alma, lá onde vives, já mais pura,
Porque me desprezaste? Quem tão dura
Te tornou ao amor que me devias?

Isto era o que mil vezes prometias,
Em que minha alma estava tão segura?
Que ambos juntos Da hora desta escura
Noute nos subiria aos claros dias?

Como em tão triste cárcer' me deixaste?
Como pude eu sem mi deixar partir-te?
Como vive este corpo sem sua alma?

Ah! que o caminho tu bem mo mostraste,
Porque correste à gloriosa palma!
Triste de quem não mereceu seguir-te!



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Bernardim Ribeiro
MENINA E MOÇA

1. Monólogo da Menina

Menina e moça me levaram de casa de minha mãi para muito longe. Que causa fosse então daquela minha levada, era ainda piquena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que despois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, cuitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aventura, a que me fez ser leda. Depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha.

Escolhi para meu contentamento (se em tristezas e cuidados há i algum) vir-me viver a este monte onde o lugar e a míngoa da conversação da gente fosse como já pera meu cuidado cumpria, porque grande erro fora, depois de tantos nojos quantos eu com estes meus olhos vi, aventurar-me ainda a esperar do mundo o descanso que ele não deu a ninguém. Estando eu assi só, tão longe de toda a gente e de mim ainda mais longe, donde não vejo senão serras que se não mudam, de um cabo, nunca, e do outro ágoas do mar que nunca estão que das, onde cuidava eu já que esquecia à desaventura por que ela e depois eu, a todo poder que ambas pudemos, não deixámos em mim nada em que pudesse achar lugar nova mágoa; antes tudo havia muito tempo, como há, que é povoado de tristezas, e com rezão. Mas parece que das desaventuras há mudança para outras desaventuras, que do bem não a havia para outro bem. E foi assi que, por caso estranho, fui levada em parte onde me foram diante meus olhos apresentadas em coisas alheas todas as minhas angústias, e o meu sentido de ouvir não ficou sem sua parte de dor.

Ali vi então, na piedade que houve de outrem, camanha a devera de ter de mim, se não fora demasiadamente mais amiga de minha dor do que parece que foi de mim quem me é a causa dela. Mas tamanha é a razão por que são triste, que nunca me veo mal nenhum que eu já não andasse em busca dele. Daqui me veo a mim parecer que esta mudança em que me eu agora vejo, já a eu então começava a buscar, quando me esta terra, onde me ela aconteceo. aprouve mais que outra nenhüa para vir nela acabar os poucos dias de vida, que eu cuidei me sobejavam. Mas em isto como em as outras cousas também me enganei, que agora já há dous anos que estou aqui, e não sei ainda tão-somente determinar pera quando me aguarda a derradeira hora. Não pode já vir longe.

Isto me pôs em dúvida de começar a escrever as cousas que vi e ouvi. Mas despois, cuidando comigo, disse eu que arrecear de não acabar de escrever o que vi, não era causa e para o deixar de fazer, pois não havia de escrever pera ninguém senão pera mim só, ante quem cousas não acabadas não havia de ser novo. Que quando vi eu prazer acabado ou mal que tivesse fim? Antes me pareceo que este tempo que hei-de estar assi em este ermo, como ao meu mal aprouve, não o podia empregar em cousa que mais de minha vontade fosse. Pois Deus quis, assi minha vontade seja.

Se em algum tempo se achar este livro de pessoas alegres, não o leam. Que, por aventura, parecendo-lhe que seus casos serão mudáveis como os aqui contados, o seu prazer lhes será menos prazer. Isto, onde eu estivesse, me doeria, porque assaz abastava nacer eu pera minhas mágoas, senão ainda para as doutrem. Os tristes o poderão ler, mas aí não os houve mais homens, depois que nas mulheres houve piedade. Nas mulheres, sim, por que sempre nos homens houve desamor. Mas para elas não o faço eu, que, pois que o seu mal é tamanho que se não pode confortar com outro nenhum, é para as mais entristecer. Sem-razão seria querer eu que o lessem elas, mas antes lhes peço muito que fujam dele e de todalas cousas de tristeza. Que ainda com isto poucos serão os dias que hão-de poder ser ledas, porque assi está ordenado pela desventura com que elas nascem. Para üa só pessoa podia ele ser, mas desta não soube eu mais parte, depois que suas desditas e minhas o levaram para longes terras e estranhas, onde bem sei eu que, vivo ou morto, o possue a terra sem prazer nenhum.

Meu amigo verdadeiro, quem me vos levou tão longe? Que vós comigo e eu convosco, sós soíamos passar nossos nojos grandes, e tão pequenos para os de despois! A vós contava eu tudo. Como vós vos fostes, tudo se tornou tristeza, nem parece ainda senão que estava espreitando já que vos fôsseis. E porque tudo ainda mais me magoasse tão-somente não me foi deixado em vossa partida o conforto de saber para que parte de terra íeis, que descansaram meus olhos em levarem para lá a vista. Tudo me foi tirado, no meu mal nem remédio nem conforto houve aí. Para morrer asinha, me pudera isto aproveitar, mas para isto não me aproveitou. Inda convosco usou desaventura algum modo de piedade em vos alongar desta terra, pois que pera não sentirdes mágoas não havia remédio, para as não ouvirdes vo-lo deu. Coitada de mim, que estou falando e não vejo ora eu que leva o vento as minhas palavras, e 'e que me não pode ouvir a quem falo!

Bem sei que não era eu para isto a que me quero ora pôr, porque escrever algüa cousa pede alto repouso, e a mim as minhas mágoas oras me levam para um cabo, oras para outro, e trazem-me assi, que me é forçado tomar as palavras que me elas dão, porque não são tão constrangida servir ao engenho como à minha dor. Destas culpas me acharão muitas neste livrinho, mas da minha ventura foram elas. Ainda que, quem me manda a mim olhar por culpar nem desculpas, que o livro há-de ser do que vai escrito nele! Das tristezas não se pode contar nada ordenadamente, porque desordenadamente acontecem elas, e também por outra parte não me dá nada não o lea ninguém, que eu não o faço senão para um só, ou para nenhum, pois dele, como disse, não sei parte tanto há. Mas se ainda está para me ser em algum tempo outorgado que este pequeno penhor de meus longos sospiros vá ante os seus olhos, muitas outras cousas desejo, mas esta me seria assaz.

Neste monte mais alto de todos que eu vim buscar pela soidade deferente dos outros que nele achei, passava eu minha vida como soía, ora em me ir pelos fundos destes vales que o cingem ao derredor, ora em me pôr do mais alto dele a olhar a terra como ia acabar ao mar, e depois o mar como se estendia logo após ela, para se ir acabar onde o ninguém visse. Mas quando vinha a noute, aceita a meus pensamentos, que via as aves buscar os pousos, üas chamarem as outras, parecendo que queria assossegar a terra mesma, então eu triste, com os cuida dos dobrados dos com que amanhecera, me recolhia para minha pobre casa, onde só Deus me é boa testemunha de como as noutes dormia.

Assi passava eu o tempo, quando, üa das passadas, pouco haveria, alevantado-me eu, vi a manhã como se erguia fermosa, estender-se graciosamente por entre os vales e deixar indo os altos. que já o Sol, alevantado até os peitos, vinha tomando posse nos outeiros, como quem se queria senhorear da terra. As doces aves, batendo as asas, andavam buscando üas as outras. Os pastores, tangendo as suas frautas e rodeados dos seus gados, começavam d'assomar já pelas cumiadas. Para todos parecia que vinha aquele dia assi ledo. Os meus cuidados sós, vendo como vinha o seu contrário, ao parecer, poderoso, recolheram-se a mim, pondo-me ante os olhos pera quanto prazer pudera aquele dia vir, se não fora tudo tão mudado, por onde o que fazia alegre todas as cousas, a mim só teve causa de fazer triste. E como os meus cuidados, para o que tinha a ventura já ordenado, me começassem d'entrar pola lembrança de algum tempo que foi, e que nunca fora, ensenhorearam-se assi de mim, que me não podia já sofrer a par da minha casa, e desejava ir-me por lugares sós onde desabafasse em sospirar. E ainda bem não foi alto dia, quando eu (parece que o senti) determinei ir-me pera o pé deste monte que de arvoredos grandes e verdes ervas e deleitosas sombras cheo é, por onde corre um pequeno ribeiro de ágoa de todo ano, que nas noutes caladas o rogido dele faz no mais alto deste monte um saudoso tom que mui tas vezes me tolheo o sono a mim, onde eu vou muitas vezes deixar as minhas lágrimas, onde também muitas infindas as torno a beber.

Começava então de querer cair a calma e no caminho, com a pressa que eu levava por fugir a ela, ou pola desaventura que me levava, três ou quatro vezes caí, mas eu, que depois de triste cuidei que não tinha mais que temer, não olhei nada por aquilo em que parece que Deus me queria avisar da mudança que depois havia de vir. Chegando à borda, olhei pera onde via maiores sombras e pareceram-me as que estavam além do rio. Disse eu então entre mim que naquilo se enxergava que era mais desejado tudo o que com mais trabalho se podia haver, porque não se podia ir além sem se passar a ágoa que corria ali mais mansa e mais alta que noutra parte. Mas eu, que sempre folguei de buscar meu dano, passei além e fui-me assentar de sob a espessa sombra de um verde freixo que para baixo um pouco estava e alguas das ramas estendia por cima da ágoa que ali fazia tamalavez de corrente e, empedida de um penedo que no meo dela estava, se partia para um e outro cabo, murmurando. Eu que os olhos levava ali postos, comecei a cuidar como nas cousas que não tinham entendimento havia também fazerem-se üas às outras nojo, e estava ali aprendendo tomar algum conforto no meu mal, que assi aquele penedo estava ali anojando aquela ágoa que queria ir seu caminho, como as minhas desaventuras noutro tempo soíam fazer a tudo o que mais queria, que agora já não quero nada. E crecia-me daquilo um pesar, porque a cabo do penedo tomava a ágoa a juntar-se e ir seu caminho sem estrondo algum, mas antes parecia que corria ali mais depressa que pela outra parte, e dizia eu que seria aquilo por se apartar mais asinha daquele penedo, imigo de seu curso natural que, como por força, ali estava.

Não tardou muito que, estando eu assi cuidando, sobre um verde ramo que por cima da ágoa se estendia se veo apousentar um roussinol, e começou tão doce mente cantar que de todo me levou após si o meu sentido de ouvir. E ele cada vez crecia mais em seus queixumes, cada hora parecia que como cansado queria acabar, senão quando tornava como que começava então. A triste da avezinha que, estando-se assi queixando, não sei como, caío morta sobre a ágoa, e caindo por entre as ramas, muitas folhas caíram também com ela! E pareceo aquilo sinal de pesar àquele arvoredo seu caso tão desestrado. Levava-a após si a ágoa e as folhas após ela. Quisera-a eu tomar, mas por a corrente que ali fazia grande, e por o mato que dali para baixo acerca do rio logo estava, prestesmente se me alongou da vista. Mas o coração me doeu tanto então em ver tão asinha morto quem antes, tão pouco havia, que vira estar cantando, que não pude ter as lágrimas.

Certo que por cousa deste mundo, depois que eu perdi outra cousa, não me pareceo a mim que chorasse assi de vontade. Mas em parte este meu cuidado não foi em vão porque, ainda que por a desaventura daquela avezinha fossem causadas minhas lágrimas, lá ao sair delas foram juntas outras minhas lembranças tristes. Grande pedaço de tempo estive assi, embargados meus olhos antre os cuidados que muito tempo havia que me tinham já então, e inda terão, té quando venha o tempo que algüa pessoa estranha, de dó de mim, com as suas mãos cerre estes meus olhos que nunca foram fartos de me mostrarem mágoas. Estando assi olhando para donde corria a ágoa, senti bolir o arvoredo. Cuidando que fosse outra cousa, tomou-me medo, mas olhando para lá, vi que vinha üa molher e, pondo nela bem os olhos, vi que era de corpo alto, desposição boa, o rosto de senhora, dona do tempo antigo. Vestida toda de preto, no seu manso andar e seguros meneos do corpo e do rosto e olhar, parecia d'acatamento. Vinha só, na semelhança tão cuidosa, que não apartava os ramos de si, senão quando lhe empediam o caminho ou lhe feriam o rosto. Os seus pés trazia per antre as frescas ervas, e parte do vestido estendido por elas. E antre uns vagarosos passos que ela dava, de quando em quando colhia um cansado fôlego, como que lhe queria falecer a alma. Sendo junto de mim, que me vio, ajuntando as mãos à maneira de medo de molher, um pouco ficou como que vira cousa desacostumada, e eu que também assi estava, não de medo, que a sua boa sombra logo mo não consentio, mas da novidade daquilo que ainda ali não vira, havendo muito que por meu mal tinha continuado aquele lugar e toda aquela ribeira.


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DIOGO BERNARDES

Diogo Bernardes (1520-1605)

ALGUNS POEMAS


As plantas rindo estão, estão vestidas
De verde variado de mil cores;
Cantam tarde e manhã os seus amores
As aves, que d'Amor andam vencidas.

As neves, já nos montes derretidas,
Regam nos baixos vales novas flores;
Alegram as cantigas dos pastores
As Ninfas pelos bosques escondidas.

O tempo, que nas cousas pode tanto,
A graça, que por ele a terra perde,
Lhe torna com mais graça e fermosura.

Só pera mim nem flor nem erva verde,
Nem água clara tem, nem doce canto,
Que tudo falta a quem falta ventura.




Onde porei meus oihos que não veja
A causa, donde nasce meu tormento?
A que parte irei co pensamento
Que pera descansar parte me seja?

já sei como s'engana quem deseja,
Em vão amor firme contentamento,
De que, nos gostos seus, que são de vento,
Sempre falta seu bem, seu mal sobeja.

Mas inda, sobre claro desengano,
Assim me traz est'alma sogigada,
Que dele está pendendo o meu desejo;

E vou de dia em dia, de ano em ano,
Após um não sei quê, após um nada,
Que, quanto mais me chego, menos vejo.




Meu pátrio Lima, saudoso e brando,
Como não sentirá quem Amor sente,
Que partes deste vale descontente,
Donde também me parte suspirando?

Se tu, que livre vás, vás murmurando,
Que farei eu, cativo, estando ausente?
Onde descansarei de dor presente,
Que tu descansarás no mar entrando?

Se te não queres consolar comigo,
Ou pede ao Céu que nossa dor nos cure,
Ou que trespasse em mim tua tristeza:

Eu só por ambos chore, eu só murmure,
Que d'um fado cruel o curso sigo,
Não tu, que segues tua natureza.




Águas do claro Lima, que corria
Pera mim, noutro tempo, claro e puro,
Que correr vejo agora turvo, escuro,
Quem afogou em vós minh'alegria?

Cuidei que com vos ver descansaria
Do mal do cativeiro, triste e duro;
Mas mais sem gosto aqui, menos seguro
Me vejo, do que me vi em Berberia.

Mudança vejo aqui em arvoredos:
Creceram muitos, muitos acabaram,
Fez seu ofício em tudo a natureza;

Duas cousas, porém, não se mudaram:
Lugar e duro ser destes penedos,
De vossos naturais teima a dureza.




ALHEIO

Que vistes meus olhos
Neste bem, que vistes
Que vos vejo tristes?

VOLTAS

As vossas lembranças
Não vos dão tormentos,
Nem levam os ventos
Vossas esperanças.
Não sei que mudanças
Vós de novo vistes,
Que vos vejo tristes.
Que dor ou que medos
Causam vossa dor?
Lágrimas d'amor
Descobrem segredos.
Eu vos via ledos;
Vós não sei que vistes,
Que vos vejo tristes.

Escapei de cem mil Mouros,
e nesta serra Somata
Üa só Moura me mata.

VOLTAS

Vede quem dará certeza
A sucessos da ventura!
Pois faz em mim a brandura
O que não fez a crueza:
É tal sua gentileza
Que, nesta serra Somata,
Ela é a que só mata.

Quem haverá que não moura
Por esta Moura que mouro,
Se nos seus cabelos d'ouro
O Sol se prende e se doura?
É rosada, alva, e loura.
Não sei se lhe chame ingrata,
Pois um seu cativo mata.

Certo que, se livre fora
Do cativeiro em que vivo,
A me querer por cativo,
Não quisera outra senhora.
Com me matar me namora,
E quando melhor me trata,
Então de todo me mata.


CONTINUAÇÃO

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