terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Fecundar o próprio ser




Fecundar o próprio ser

Rogel Samuel


O primeiro dos SONETOS AUTOBIOGRÁFICOS de L. Ruas é cruel. É cru. É o espelho da solidão em que se esquece o eu lírico. É trágico.

Ruas sempre explora os mitos que, como ele disse na “Aparição do clown” é a verdade mascarada.

O mito não é a mentira, o cinismo, a hipocrisia, o logro, o engano, a farsa, a irrealidade. O mito talvez seja o real da realidade, por mais estranho que seja a sua fantasia e o seu fantasma. O mito é o gerador primitivo da verdade, que julga e diz. Pois quem decide onde está a dimensão da racionalidade? O poeta ou o cientista? O religioso ou o filósofo?

O mito será, no mínimo, mais antigo, mais radical, mais originário. Ele tem a sua verdade própria, explicativa, não é bárbaro nem é louco.

O saber mítico desce no abismo do medo, do sêmen, do monstro azul, do falso passo e do passo em falso, do mistério no espelho, da prece e da infâmia para depois voltar para o nada, para a contemplação de sua própria imagem no espelho da vidraça, do pranto solitário da chuva, o parado, o imóvel, a sarjeta.

Fecundar o próprio sêmen sem ter medo
De em si mesmo dar o ser ao monstro azul.
Escalar o próprio abismo desmedido
E sorrir a cada passo dado em falso.

Desmembrar a tessitura do mistério,
Dissecar a óssea face em frente ao espelho
Estancando a imagem tola no momento
Da mentira venerável — prece infame —...

E depois compor de novo a melodia,
Restaurar as cores todas distendidas,
Refazer o mesmo poema delicado

E ficar paradamente na vidraça
Contemplando a chuva grossa e intermitente
Escorrendo em borbotões pelas sarjetas.

2 comentários:

Márcia Sanchez Luz disse...

Rogel, você trata aqui de um tema, para mim, muito interessante: o mito como algo real, pois que sentido, vivido e, por esta razão, gerador da criação. É como a loucura - quem a determina? Por que ela não pode ser vista como uma outra dimensão de nosso ser? Assim, o que é verdade? Não é o que sentimos?

Destaco estes versos de Ruas:

"Desmembrar a tessitura do mistério,
Dissecar a óssea face em frente ao espelho
Estancando a imagem tola no momento
Da mentira venerável — prece infame —..."

Parabéns por sua brilhante leitura (e desculpe se falei demais - o tema me inspirou)...rss...

Obrigada pela visita e pelo carinho constante de suas palavras.

Beijos

Márcia

ROGEL DE SOUZA SAMUEL disse...

COMO DISSE FERNANDO PESSOA, O MITO... SEM EXISTIR NOS BASTOU.
OBRIGADO PELA LEITURA,
ROGEL SAMUEL