segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010
No verão
No verão
Rogel Samuel
No meio da noite, acordo. Sufocante calor. O suor escorre. Como se estivesse febril. Tomo uma ducha. Três horas, madrugada. No silêncio, meu banho na noite abre um túnel. Dormi cedo. Vim da Cinelândia, onde jantei. No restaurante, dois velhos bêbados. Cantavam árias. Cheguei em casa. Vi "O clone". Minha amiga L. ironiza, porque vejo "O clone". Gosto. Ela é intelectual. Por princípio, intelectual não vê novela de TV. Intelectual tem princípios. Gosto de "O clone", aquelas paisagens, personagens, dignos de Jorge Amado. As classes sociais, representadas. Menos favela. Os velhos bêbados silenciam, pesados de cerveja. Aparece um vendedor de meia idade. Vende caleidoscópios. Um dos velhos compra. Agora, os velhos se divertem, metem um olho no tubo. Goles de cerveja alternam com olhadelas. Atacam de Carlos Gomes: "Quando nascesti tu". Noto que são músicos. Aposentados. Gritam. O dono do restaurante sai da cozinha, furioso por cima dos óculos, mas volta. Minha amiga L. tem Ruy Barbosa na família. Mas não diz pra ninguém. Se envergonha. "Um reacionário", diz ela. Ela se ri, quando digo que gosto de ler Ruy Barbosa. Com "y". Ela, intelectual de esquerda, tradutora. Gosto de estar com ela, na mesa de bar. Conversamos. Certa vez, no Lamas, fomos até 3 horas da madrugada. Naquela noite chegou o amigo CL, que mora em São João del Rey. Especializado em Graciliano. Os velhos têm repertório. "Senza tetto, senza cuna", d' "O guarani". Outros velhos chegam para a mesa de velhos. Reunião. Juntam-se mesas. Mais cinco velhos. Um, de bengala. Sentam-se, mas logo se espantam com os colegas bêbados. Nenhum se senta perto dos ébrios. Um deles, crítico, severo, faz careta desabonadora, balanços de cabeça. Olha para os lados. Me vê. Percebe que os observo. Rápido, recolho o olhar, surpreendido e indiscreto. Os chegados não bebem, menos um, que pede uma cerveja, enche o copo e finge. A cerveja é esquecida no copo. Decorativa. Todos próximos dos oitenta anos. O de bengala se instala com um sorriso de pedra, esfíngico, fixo. O outro, moralista, critica com levantares de sobrancelhas. Penso que está para retirar-se, envergonhado, pois os bêbados cantam alto, chamam atenção mesmo dos que passam na rua Álvaro Alvin. Aparece outro vendedor. Este vende óculos. É um oriental afeminado. Um dos cantores bêbados, eufórico, experimenta os óculos escuros. Levanta-se, gesticula, no "sento una forza indomita", de Il Guarany. Para horror de todos, convida o vendedor afeminado para a mesa. Ele se senta, feliz. Como ninguém estava perto dele, havia a cadeira vazia. O vendedor afeminado bebe do copo do anfitrião. O outro velho bêbado dorme, queixo caído, boca aberta. "Mia piccirella", entoa a pleno pulmões, o tenor. Mas estou de saída.
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