terça-feira, 16 de fevereiro de 2010
O amante das amazonas
Lucilene Gomes Lima
FICÇÒES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS
Estudo comparativo dos romances A selva, Beiradão e O amante das amazonas
(Foto de R. Samuel do navio Adamastor, constante no livro)
O amante das amazonas: o ciclo sob o olhar de um analista-autor
Rogel Samuel, autor de O amante das amazonas, agrega duas características relevantes para nosso estudo sobre as obras literárias do “ciclo da borracha”. A primeira delas é a experiência que, em seu caso, não é direta, vem de reminiscências legadas pela memória de antepassados, como o avô, um alsaciano enriquecido pelos lucros da borracha amazônica, no início do século XX. A segunda característica motivadora do estudo desse romance surge do fato de o autor ser analista literário, atividade resultante de sua carreira no magistério.
Entendemos ser a atividade de analista empreendida por Rogel Samuel a promotora da diversificação de abordagem do romance O amante das amazonas. Não o nomeamos, contudo, um escritor-crítico, conforme concebe Leyla Perrone-Moisés por entendermos que o autor exerce a atividade de analista paralelamente a de escritor e por considerarmos que tanto a sua produção teórica quanto a sua produção ficcional não alcançaram a extensão e o nível de sistematização necessários à qualificação de escritor-crítico, como o estabelece o estudo de Perrone-Moisés. Uma vez que Samuel não pratica a análise do texto ficcional como corolário de sua atividade de escritor, podemos considerar o oposto: que sua atividade de professor e analista possibilitou a expressão de ficcionista, expressão essa que marcará a renovação da terceira fase ficcional do ciclo.
O amante das Amazonas realiza a brevidade que, segundo lembra o narrador de um romance de Ítalo Calvino, é necessária aos romances modernos: “[...] Hoje em dia, escrever romances longos é um contra-senso: a dimensão do tempo foi estilhaçada, não conseguimos viver nem pensar senão em fragmentos de tempo que se afastam, seguindo cada qual sua própria trajetória e logo desaparecem [...].” Dessa forma, o romance se divide em 23 capítulos curtos: Viagem, Palácio, Numas, Paxiúba, Ferreira, Júlia, Desaparece, Ratos, Frei Lothar, Perdida, Ribamar, Manaus, Conversas, O leque, A livraria, Benito, Rua das Flores, Encontro, Mistério, Noite, O pórtico, Jornal, Fim. São capítulos que, por sua vez, não estabelecem uma continuidade linear do enredo, alguns deles basicamente introduzem personagens, o que reforça a característica fragmentária da narrativa.
Fragmentado é ainda o narrador do romance. Divide-se entre primeira e terceira pessoas. Em primeira pessoa, narra Ribamar, retirante do povoado de Patos, em Pernambuco, vindo para a Amazônia em 1897. Já a voz que narra alternando a primeira e terceira pessoas tece comentários, dialoga com o leitor, insere digressões e se assume como ser ficcional: “[...]sei, e de antemão o digo, que esta é apenas uma obra de ficção, e portanto mentirosa, dentre as várias que há na literatura amazonense, e espere o leitor e a leitora o surpreender-se como, apesar disso, o fio do destino do que vai descobrir é correto. Todos os fatos, aqui expostos, foram realidades notáveis e aconteceram realmente para a minha imaginação [...].”
As narrações em primeira e terceira pessoas, portanto, não se apresentam como instâncias independentes. Por vezes, a forma indireta da terceira pessoa se personaliza. Expressa-o o fato de que o romance se inicia com a narração em primeira pessoa da personagem Ribamar para, posteriormente, no capítulo dez, ser atribuída ao narrador em terceira pessoa, que destaca: “O Manixi naquela época agonizava, improdutivo. Fazia dois anos que o próprio Ferreira não aparecia, e a sede, depois da morte do Capitão João Beleza, ficara sob as ordens de um Ribamar (d’Aguirre) de Souza, oriundo de Patos, Pernambuco, conforme o primeiro capítulo desta minha narrativa.”
Depreendemos que a impessoalidade da terceira pessoa transforma-se em diversos momentos da narrativa em uma voz paralela à do narrador-personagem Ribamar. Essa outra voz que também fala em primeira pessoa (minha narrativa/Eu, o narrador) e se assume como narrador, concomitantemente cria uma noção de veracidade extratextual, entretanto, há aí também um artifício ficcional: “[...] do que pude conseguir de jornais da época e de cartas de familiares, o desaparecimento de Zequinha Batelão nas margens do Igarapé do Inferno se deu em janeiro de 1912. Não fosse essa uma obra de ficção e poderia citar, em notas de pé de página, as fontes de onde obtive tal informação [...]”
A abertura do segundo capítulo do romance apresenta-se como um dos momentos em que narrador-personagem e narrador analista se fundem. Essa passagem norteia a própria leitura que devemos fazer do romance, pois a ficção se auto-define:
[...] esta narrativa-paródia de romance histórico que define com boa precisão esta minha tardia confissão - vai-lhe revelar a vida tão surpreendente de Ribamar de Souza, aquele adolescente que eu era aparecido num inesperado dia de inverno da Amazônia dentro da chuva compacta de um ostinato extremamente percussivo em comandos de improvisação de uma partitura imaginária, ecológica, de acordes politonais sobre o que sentado estava num banco de madeira no alpendre do tapiri ao som do suporte de compassos 5/4 do Igarapé do Inferno, que sai no Igarapé Bom Jardim que sai no Rio Jordão, que sai no Rio Tarauacá, que sai no Rio Juruá, afluente do Rio Amazonas, o Solimões, aonde estamos retornando.
O entendimento do caráter parodístico atribuído pelo narrador ao romance requer algumas considerações sobre a especificidade desse tipo de discurso. Em seu estudo acerca da tipologia do discurso na prosa, Bakhtin argumenta que o procedimento parodístico do discurso se caracteriza não somente por uma remissão ao objeto referencial da fala, como também a um segundo contexto, um ato de fala de outro emissor, sendo por isso um discurso duplamente orientado ou de duas vozes. Bakhtin estabelece também a diferença entre a paródia e a imitação, fazendo notar que enquanto aquela cria um antagonismo em relação à voz na qual se aloja, essa torna própria a palavra do outro, fundindo-se a ela. Outra peculiaridade que deve ser considerada, segundo o autor, é que a fala parodiada é apenas subentendida. Bakhtin destaca que o campo de possibilidades do discurso parodístico é bastante amplo, pode lançar mão de um estilo enquanto estilo, de modos típicos de pensar social ou individualmente. A construção parodística pode se limitar a níveis da superfície verbal ou atingir níveis mais profundos. O uso parodístico da palavra do outro, lembra o autor, não se dá apenas no campo literário, ele ocorre sempre que há intenção de pôr um acento irônico nas palavras de um outro emissor, criando uma ambivalência em relação a essas palavras: “[...] Em nossa fala cotidiana, é extremamente comum este uso das palavras do outro, especialmente no diálogo em que, freqüentemente um interlocutor repete de modo textual a afirmação de outro interlocutor, investindo-a de outra intenção e enunciando-a a seu próprio modo: com uma expressão de dúvida, de indignação, de ironia, de zombaria, de troça ou algo semelhante.”
Sendo O amante das amazonas definido por seu narrador como uma paródia de romance histórico, é necessário chamar a atenção para o fato de que a maioria da produção ficcional sobre o ciclo pode ser considerada de enfoque histórico, haja vista essa ficção ter abordado aspectos em consonância com os dados históricos sobre o evento. Desse modo, os principais fatores que envolvem a história econômica do ciclo são retomados pelos ficcionistas. A ficção geralmente faz recortes desses fatores através de cenas que são comuns a muitas obras. O processo de transumância do nordestino, compreendendo os fatos antecedentes, como o sofrimento causado pela seca, a falta de perspectiva na terra natal até a decisão da partida, enfrentando a longa jornada do Nordeste ao Norte, atinge o cerne na ficção através da descrição da viagem. Nessa descrição, geralmente são enfocados o estado de submissão dos recrutados ao seringal, as condições do transporte onde são tratados como passageiros de terceira categoria, sem direito a dignas condições de higiene e à privacidade.
Em O amante das amazonas, as descrições do barco e da viagem recebem um novo tratamento por meio de uma construção parodística que acrescenta um tom irônico ao tradicional tom de denúncia de outras obras:
[...] Navio dentro do qual não cabia mais único engradado de porcos, alojando aquela horda que fedia podre, de suor, esterco de gado e urina – redes se entrecruzando e houve roubo, bebedeira, estupro, briga, facada e morte – um pai esfolou um macho surpreendido com sua filha num vão de esterco; outro, bêbado, mijava ali no chão enquanto escorria até onde dormiam muitos, no chão; sobre um garajau de galinhas um homem sacou de si e se aliviou sob a luz de um candeeiro amarelo cheio de moscas. Era um soldado.
Passamos do Farol de Acaraú ainda dentro daquele porão e paramos em Amarração para largar um cadáver, o preso e dois passageiros cobertos de varíola. Mas não tocamos em Tutóia, aportando em São Luís onde o Alfredo foi dentro d’água cercado por botes, catraias e se transformou em gigantesca fera [sic] flutuante, lá subindo todos para bordo os vendedores de camarão frito, doces e frutas. Pois não foi uma viagem maravilhosa? [...]
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