sexta-feira, 19 de março de 2010

BORGES E O NÃO-NOBEL







BORGES E O NÃO-NOBEL



"A Reacção do não-Nobel
Mostrando a esse mau tempo uma boa cara, com humor agridoce e o coração apertado, Borges recebeu em cada Outubro dos seus últimos vinte anos a notícia de que não tinha merecido o Prémio Nobel. Adoptou uma expressão de quem sabe perder. Muitos indignaram-se. Discriminação extraliterária contra o maior escritor vivo! Em contrapartida, o visado manteve a imagem imutável do homem sozinho na sua biblioteca, do cego que como Homero não escreve para as academias ou para os prémios, mas que dita e filtra as palavras para a memória do tempo e o ouvido interno, que não admite falsas notas. Este escritor de minorias disfruta em vários países de multidões de aficionados. Serão atraídos por uma obra cativante, evasiva, pelo sentido da intemporalidade, do seu pendor metafísico, desse diva­gar pela esfera da paixão literária e intelectual, onde quase tudo está entregue à mnemotecnia e às perplexidades da procura? Não faltam estudiosos europeus que elogiam o seu distanciamento do barroco e da arte romântica, o seu culto magistral – dizem – do texto breve. Em 1982, quando lhe comunicam que foi dado o Prémio Nobel a um latino­americano, não a ele mas a um escritor muito mais jovem e de grande visão, chamado Gabriel García Márquez, fazendo das tripas coração, Borges exclama: "Extraordinário. Magnífico. Foi essa a melhor escolha que a Academia Sueca podia fazer". E logo acrescenta: "Eu li Cem Anos de Solidão, mas basta este livro. É um livro difícil de definir. A mim, pessoalmente, a primeira parte parece-me superior à última. Não há dúvida de qualquer forma que se trata de um livro original, longe de qualquer escola, de todo o estilo e sem antepassados".


O crónico pretendente ao Nobel não perde o auto-controlo e, mais tarde, quando voltam a tocar no assunto, responde dissimulando uma suprema modéstia:

– A inteligência dos europeus demonstra-se pelo facto de nunca me terem dado o Prémio Nobel... E sabe porquê?!... Não existe um escritor mais aborrecido do que eu. É um grande equívoco que as pessoas me leiam, porque nem eu próprio gosto do que escrevo e por isso nem sequer me leio... Nunca me li. Tudo o que escrevi, tudo, não passa de rascunhos... rascunhos!... papéis soltos... Não compreendo as pessoas. E por exemplo nesta biblioteca que vê aí, não tenho livros meus... Para quê?"


Borges e eu

Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, na contemplação do arco de um saguão e da cancela; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. Agra­dam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o sabor do café e a prosa de Stevenson; o outro comunga dessas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atribu­tos de um actor. Seria exagerado afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me. Não me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o bom já não seja de alguém, nem sequer do outro, mas da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me definitivamen­te, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco vou-lhe cedendo tudo, ainda que me conste o seu perverso hábito de falsificar e magnificar. Espinosa entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra, e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros do que em muitos outros ou no laborioso toque de uma viola. Há anos tratei de me livrar dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e tudo perco, tudo é do esquecimento ou do outro.

Não sei qual dos dois escreve esta página.

LIDO NA COLUNA DE

http://www.portalentretextos.com.br/colunas/recontando-estorias-do-dominio-publico,236.html







http://www2.fcsh.unl.pt/borgesjorgeluis/vida_borgesjorgeluis/vida.htm

Nenhum comentário: