segunda-feira, 17 de setembro de 2012

ANIVERSÁRIO DE GUERRA JUNQUEIRO

    O GÉNESIS       
                                     
    Jeová, por alcunha antiga o Padre Eterno,
    Deus muitíssimo padre e muito pouco eterno,
    Teve uma idéia suja, uma idéia infeliz:
    Pôs-se a esgaravatar com o dedo no nariz,
    Tirou desse nariz o que um nariz encerra,
    Deitou isso depois cá baixo, e fez-se a Terra.
    Em seguida tirou da cabeça o chapéu,
    Pô-lo em cima da Terra, e zás, formou o céu.
    Mas o chapéu azul do Padre-Onipotente
    Era um velho penante, um penante indecente,
    Já muito carcomido e muito esburacado,
    E eis ai porque o Céu ficou todo estrelado.
    Depois o Criador (honra lhe seja feita!)
    Achou a sua obra uma obra imperfeita,
    Mundo sarrafaçal, globo de fancaria,
    Que nem um aprendiz de Deus assinaria,
    E furioso escarrou no mundo sublunar,
    E a saliva ao cair na Terra fez o mar.
    Depois, para que a Igreja arranjasse entre os povos
    Com bulas da cruzada, alguns cruzados novos,
    E Tartufo pudesse inda dessa maneira
    Jejuar, sem comer de carne à sexta-feira,
    Jeová fez então para a crença devota
    A enguia, o bacalhau e a pescada-marmota.
    Em seguida meteu a mão pelo sovaco,
    Mais profundo e maior que a caverna de Caco,
    E arrancando de lá parasitas estranhos,
    De toda a qualidade e todos os tamanhos,
    Lançou-os sobre a Terra, e deste modo isonte
    Fez ele o megatério e fez o mastodonte.
    Depois, para provar em suma o quanto pode
    Um Criador, tirou dois pelos do bigode,
    Cortou-os em milhões e milhões de bocados,
    (Obra em que ele estragou quatrocentos mahados)
    Dispersou-os no globo, e foi desta maneira
    Que nasceu o carvalho, o plátano e a palmeira.
    ...........................................................................
    Por fim com barro vil, assombro da olaria!,
    O que é que imaginais que o Criador faria?
    Um pote? não; um bicho, um bípebe com rabo,
    A que uns chamam Adão e outros Simão. Ao cabo
    O pobre Criador sentindo-se já fraco,
    (Coitado, tinha feito o universo e um macaco
    Em seis dias!) pensou: - Deixemo-nos de asneiras.
    Trago já uma dor horrível nas cadeiras,
    Fastio... Isto dá cabo até duma pessoa...
    Nada, toca a dormir uma sonata boa! -
    Descalçou-se, tirou os óclos e o chinó,
    Pitadeou com delicia alguns trovões em pó,
    Abriu, para cair num sono repentino,
    O alfarrábio chamado o Livro do Destino,
    E enflanelano bem a carcaça caduca,
    Com o barrete azul-celeste até à nuca,
    Fez ortodoxamente o seu sinal da cruz
    Como qualquer um de nós, tossiu, soprou a luz,
    E de pança pro ar, num repoiso bendito,
    Espojou-se, estirou-se ao longo do infinito
    Num imenso enxergão de névoa e luz doirada.
    E até hoje, que eu saiba, inda não fez mais nada.
              
    Guerra Junqueiro (17 de setembro de 1850 - 7 de julho de 1923)

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