FRAGMENTO DE FRAUTA
Rogel Samuel
Há três sucessivas etapas na Frauta
de barro de Bacellar. A primeira do minimalismo pós-moderno objetos de
bolso mini-sonetos lenço canivete. A segunda do espaço devaneio ruas de uma
certa época da cidade de Manaus, rua da Conceição, bairro do Céu. E a terceira
do espaço endócrino da poética que se cria e sai das entranhas anteriores,
poética barro, matéria da imaginação "imaginada", função do real:
viagem.
O primeiro momento faz sentir o que é antecipado, apresentado, nas
"variações sobre um prólogo", onde se abrem a proposição, a
arqueologia e a caixa-preta dessa frauta, dessa poética da frauta, do barro
dessa arte memorial, do jogo, da "inscrição no muro", do cavalo
capenga a cabra o velho soldado a casa solarenga o monturo em rebuliço que são
denúncias inscritas escritas a carvão nos muros, dos temas ali recomeçados, da
canção saída da crise da redondilha: "É o tema recomeçado / na minha vária
canção". Verídico é o fato de Luiz Bacellar ter encontrado um pedaço de
flauta de barro num saco de viagem, antes da viagem em que mergulhou.
O livro se constrói desde seu começo
na geografia do corpo - "sempre com ar de magia / sai o canto do
cantor"; o poeta, que estava no prólogo nu, veste-se de natureza, na
materialidade dos sonhos, e se vê num "plátano, sobre a prata / da água
tranqüila do lago, / se debruça só por vê-lo". Real, excessivamente
material (de pedra são as vestes), materialidade sóbria, perfeita, substancial,
modos de sua moda, modelos. Bacellar impõe modelo à poética, à literatura, com
o livro, a elegância completa do grande "cumulus"escuro: O corpo, o
prefácio > a roupa os bolsos o preparo o vestir-se os objetos > as ruas
as casas as lendas as falas os relatos os mitos os personagens os fatos os
números > a viagem os mestres -: tudo atravessado por mistérios numéricos de
que se vale o poeta para transformar a simples cidade de Manaus em burgo
medieval com cavalaria, heráldica. Laus Deo.
Dos Dez sonetos de bolso sai
a imagem imaginada pós-moderna minimal do que é o metro do método e a
mágica reinvenção da poesia, a magia que tira o mundo-espetáculo de suas
prestidigitações imagísticas, visão
suspeita e suspensa de grandes provocações ("pequena múmia de fumo / na
sua branca mortalha"), limites da vida e da morte, o concreto, o artesão,
ativo, duradouro, modificador, inventor assombroso ("torpedo de
tinta"). Incerteza ("cápsula de incêndios").
E, quando, ao sair da raiz da rua,
canta a Balada da rua da Conceição (hoje rua Isabel) o faz no devaneio
do percorrer das instabilidades pós-industriais na sua facilidade de reinventar
tudo e toda a cidade dos seus temas ("Eu vi um dia um cavalo",
"habita nossos sobrados") da grande Dúvida,
(Mas será
mesmo que existe
essa rua na
cidade?
ou é rua da
Conceição
no velho Cais
da Saudade?)
O fato das coisas mais simples se
desandarem dramáticas, espetaculares, mágicas, do mais sutil ao mais rural
estilo fenomenológico, oscila entre o conceito e a imagem surpresa, imprevista,
entre os dois planos do chão e da solidão, num estranhamento criador de mundo
da mão da palavra feliz. Fotopoemas são de uma metafísica urbana do instante
transfigurante, reflexos das garrafas
estilhaçadas e das letras enferrujadas, que etiquetam o nome, o sobrenome dos
becos, dialeticamente traçados no alargamento de uma cidade em interna ruína
(mas inteiro espetáculo), nos axiomas da decadência da economia da borracha no
Amazonas, cidade que guarda o externo esplendor dos velhos e áureos momentos
que Bacellar nunca cantou ("nunca escrevi um poema sobre o Teatro Amazonas",
"nunca escrevi um poema de amor" - disse-me ele, em entrevista). Mas, nas árvores, cansadas, as epifanias, as
trilhas, as colhidas, os duendes, os enforcados, os relatos, os obstáculos, o
saber, as caras, o antes, as obsessões citadinas, a onisciência, os pássaros e
papagaios de papel, a Neca, a verdade certeira, a prudência, a vigilâncias, o
risco, o dragão, a vida cartesiana: fatos acumulados em "lírios" e
"peitinhos", "rosa menina", que levam a marca de saias levantadas
da imensa tradição de uma sociedade fossilizada no Século Dezenove. A razão
humana abandona para sempre esses versos de finados, de fraque, de orações pressurosas, de sepulturas e beatas cobertas,
"de cera e de fogo", em que se constitui o livro de Luiz Bacellar.
Podemos dizer que, fora de suas páginas, a cidade de Manaus nem mesmo existe.
Por isso a pedagogia do livro se
tece na cooperação de seus "sonhos provincianos", de seus
"arcanos" esotéricos, obras primas da arte, da poética, elevando a vida cotidiana a uma
representação nunca vista.
O livro, que parece terminar na
rampa da praia do mercado, aí não termina. A partir de então os textos tecem um
saber poético aprofundado, numa
"viagem", transgredindo Manaus para todas as partes do mundo.
Aí aparece o arcano 7, que é o
triunfo. O número 7 representa o poder mágico, em toda a sua força. Segundo Samael Aun Weor , o Santo Sete é o Sanctum Regnum da
magia sexual, o Íntimo Serviço de todas as forças elementais da natureza, onde recebe no Arcano VII
a espada flamejante. Em nome da verdade,
a espada flamígera dos grandes hierofantes é puro sêmen transmutado.
Este é o resultado em que nos transformamos em Deuses terrivelmente divinos.
Toda a obra de Bacellar se realiza no Grande Arcano. A estrela de sete
pontas faz parte inseparável do seu verso. As sete serpentes da alquimia se
relacionam com os sete planetas e as sete grandes realizações cósmicas. O
acróstico das sete letras e das sete palavras simboliza toda a Grande Obra.
Pois os mistérios do Arcano VII são terrivelmente divinos.
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