sábado, 15 de setembro de 2012

FRAGMENTO DE FRAUTA





FRAGMENTO DE FRAUTA

Rogel Samuel


            Há três sucessivas etapas na Frauta de barro de Bacellar. A primeira do minimalismo pós-moderno objetos de bolso mini-sonetos lenço canivete. A segunda do espaço devaneio ruas de uma certa época da cidade de Manaus, rua da Conceição, bairro do Céu. E a terceira do espaço endócrino da poética que se cria e sai das entranhas anteriores, poética barro, matéria da imaginação "imaginada", função do real: viagem.
O primeiro momento faz sentir o que é antecipado, apresentado, nas "variações sobre um prólogo", onde se abrem a proposição, a arqueologia e a caixa-preta dessa frauta, dessa poética da frauta, do barro dessa arte memorial, do jogo, da "inscrição no muro", do cavalo capenga a cabra o velho soldado a casa solarenga o monturo em rebuliço que são denúncias inscritas escritas a carvão nos muros, dos temas ali recomeçados, da canção saída da crise da redondilha: "É o tema recomeçado / na minha vária canção". Verídico é o fato de Luiz Bacellar ter encontrado um pedaço de flauta de barro num saco de viagem, antes da viagem em que mergulhou.
            O livro se constrói desde seu começo na geografia do corpo - "sempre com ar de magia / sai o canto do cantor"; o poeta, que estava no prólogo nu, veste-se de natureza, na materialidade dos sonhos, e se vê num "plátano, sobre a prata / da água tranqüila do lago, / se debruça só por vê-lo". Real, excessivamente material (de pedra são as vestes), materialidade sóbria, perfeita, substancial, modos de sua moda, modelos. Bacellar impõe modelo à poética, à literatura, com o livro, a elegância completa do grande "cumulus"escuro: O corpo, o prefácio > a roupa os bolsos o preparo o vestir-se os objetos > as ruas as casas as lendas as falas os relatos os mitos os personagens os fatos os números > a viagem os mestres -: tudo atravessado por mistérios numéricos de que se vale o poeta para transformar a simples cidade de Manaus em burgo medieval com cavalaria, heráldica. Laus Deo.
            Dos Dez sonetos de bolso sai a imagem imaginada pós-moderna minimal do que é o metro do método e a mágica reinvenção da poesia, a magia que tira o mundo-espetáculo de suas prestidigitações imagísticas,  visão suspeita e suspensa de grandes provocações ("pequena múmia de fumo / na sua branca mortalha"), limites da vida e da morte, o concreto, o artesão, ativo, duradouro, modificador, inventor assombroso ("torpedo de tinta"). Incerteza ("cápsula de incêndios").
            E, quando, ao sair da raiz da rua, canta a Balada da rua da Conceição (hoje rua Isabel) o faz no devaneio do percorrer das instabilidades pós-industriais na sua facilidade de reinventar tudo e toda a cidade dos seus temas ("Eu vi um dia um cavalo", "habita nossos sobrados") da grande Dúvida,

                                   (Mas será mesmo que existe
                                   essa rua na cidade?
                                   ou é rua da Conceição
                                   no velho Cais da Saudade?)

            O fato das coisas mais simples se desandarem dramáticas, espetaculares, mágicas, do mais sutil ao mais rural estilo fenomenológico, oscila entre o conceito e a imagem surpresa, imprevista, entre os dois planos do chão e da solidão, num estranhamento criador de mundo da mão da palavra feliz. Fotopoemas são de uma metafísica urbana do instante transfigurante,  reflexos das garrafas estilhaçadas e das letras enferrujadas, que etiquetam o nome, o sobrenome dos becos, dialeticamente traçados no alargamento de uma cidade em interna ruína (mas inteiro espetáculo), nos axiomas da decadência da economia da borracha no Amazonas, cidade que guarda o externo esplendor dos velhos e áureos momentos que Bacellar nunca cantou ("nunca escrevi um poema sobre o Teatro Amazonas", "nunca escrevi um poema de amor" - disse-me ele, em entrevista).  Mas, nas árvores, cansadas, as epifanias, as trilhas, as colhidas, os duendes, os enforcados, os relatos, os obstáculos, o saber, as caras, o antes, as obsessões citadinas, a onisciência, os pássaros e papagaios de papel, a Neca, a verdade certeira, a prudência, a vigilâncias, o risco, o dragão, a vida cartesiana: fatos acumulados em "lírios" e "peitinhos", "rosa menina", que levam a marca de saias levantadas da imensa tradição de uma sociedade fossilizada no Século Dezenove. A razão humana abandona para sempre esses versos de finados, de fraque, de orações  pressurosas, de sepulturas e beatas cobertas, "de cera e de fogo", em que se constitui o livro de Luiz Bacellar. Podemos dizer que, fora de suas páginas, a cidade de Manaus nem mesmo existe.
            Por isso a pedagogia do livro se tece na cooperação de seus "sonhos provincianos", de seus "arcanos" esotéricos, obras primas da arte, da  poética, elevando a vida cotidiana a uma representação nunca vista.
            O livro, que parece terminar na rampa da praia do mercado, aí não termina. A partir de então os textos tecem um saber poético aprofundado,  numa "viagem", transgredindo Manaus para todas as partes do mundo.
            Aí aparece o arcano 7, que é o triunfo. O número 7 representa o poder mágico, em toda a sua força. Segundo Samael Aun Weor , o Santo Sete é o Sanctum Regnum da magia sexual, o Íntimo Serviço de todas as forças elementais da natureza, onde  recebe no Arcano VII a espada flamejante. Em nome da verdade,  a espada flamígera dos grandes hierofantes é puro sêmen transmutado. Este é o resultado em que nos transformamos em Deuses terrivelmente divinos.
Toda a obra de Bacellar se realiza no Grande Arcano. A estrela de sete pontas faz parte inseparável do seu verso. As sete serpentes da alquimia se relacionam com os sete planetas e as sete grandes realizações cósmicas. O acróstico das sete letras e das sete palavras simboliza toda a Grande Obra. Pois os mistérios do Arcano VII são terrivelmente divinos.

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