A
VIDA TEM POUCOS PRAZERES
Rogel
Samuel
Sim, poucos prazeres tem a vida. Um é
degustar o chá da tarde na companhia da Doutora X na Confeitaria Colombo. Pena
que a Doutora seja mulher tão difícil, e ocupada. Iria eu todas as tardes lá, à
Colombo, se pudesse ela ir comigo. Não pelo que ali se come: um frugal chá
preto, com “torrada Petrópolis”. Chá com leite, à moda indiana e nepalesa. Mas
pela conversa amena, os olhares vagos, a decoração da casa. Pelo que aquela
Confeitaria Colombo é, desde 1894, com seus salões “art nouveau”, os grandes
espelhos belgas, as vitrines e molduras de jacarandá, as bancadas de mármore
italiano, o mobiliário. O chá servido em porcelana branca, com o logotipo
brasonado “CC” e friso dourado. Os talheres antigos, há poucos anos ainda de
prata. Tudo do que gosto, do luxo antigo, do ar aristocrático, do lugar onde,
em 1920, houve um banquete para o Rei Alberto, da Bélgica, e em 1968 para a
rainha Elizabeth II, da Inglaterra. Lugar freqüentado por Bilac, cujos poemas
da “Tarde” me fazem sonhar. Ali estiveram Getúlio e Juscelino; Lacerda e Negrão
de Lima, este tão elegante governador. E eu espero que meu querido Presidente
Lula, um dia, venha ali tomar o seu chá das cinco, agora que está sete quilos
mais magro, ele que deve ser, no futuro, reconhecido como o melhor presidente
do Brasil. Sim, amo aquele lugar à moda antiga, amo aqueles salões de um
requinte de luxo do passado, do decadente passado, o que me lembra Manaus, o
que acende minhas ascendências, meu orgulho de brasileiro meio índio, pois todo
índio é orgulhoso, altivo e nobre; da aristocracia indígena do Amazonas, onde
os índios eram cavalheiros nobres. Sim, a vida tem poucas delícias, o paraíso
não é aqui. Não. Mas na Colombo ainda estamos em paz, apesar da péssima
acústica daquele enorme espaço. É muito barato. Gasto pouco mais de dez reais,
e estou como um lorde, ou como um velho amazonense da Manaus da época de meu
avô Maurice, ainda que não vestindo a casaca, o colete e o chapéu. Se quiser
gastar e almoçar, peço o “Filet Mignon à Duchesse”, quem sabe o “Paillard Duque
de Windsor”, ou os “Mignonnettes à Dijon”. Também existe o “Filet de frango à
Cordon Bleu”. O “Peru à Bilac” tem úmidas fatias de peito de peru, acompanhadas
por deliciosa farofa de frutas e risoto ao champagne. Como sobremesa podemos
ter a “Bavaroise de Damasco”, a “Charlotte”, a “Pêra Belle Hélène”, ou umas
“Gaufrettes”. Sou um ser deslocado, ali, à moda parnasiana, vivo naquele mundo
construído e selado por um outro lado e modo, e, se tivesse talento lingüístico,
pela imaginação poética, gostaria transformar o simples chá da Colombo numa
especial página, como aquelas saídas da pena de Proust. Porque a Confeitaria
ainda ostenta o seu deslumbramento, os seus múltiplos reflexos, as
quinquilharias de seus espelhos de cristal, as suas janelas e bandeiras das
portas transformadas em lúcidas placas de prata rutilante numa edificação de
dois andares, de procedimento art-nouveau,
cingida de finos gradis torneados em convulsionadas e violentas volutas de
gavinhas elegantes de efeminado contorno, travestidas, descomedidas, decoradas
pela curva da escadaria de mármore, torta e enfática, escura e em pleno gozo
das réplicas vilas européias, de um poder surdo e solipsista, ágil e terrível,
que se expressa nas paredes de estuque e pinturas com irisações de um falso
ouro esverdeado e escuro, na entrançadura de seus ritmos de galhadas e
folhagens de uma vegetação alucinada e japonesa subindo por aquelas formas até
o teto multirefletido nos visotados espelhos e luminosos lustres, e nas flores
estilizadas de modo a evocar a lembrança de algum exótico prazer. Por isso amo
aquele lugar e os que ainda nos restam, poucos, como o Bar Luiz e o Lamas.
Talvez seja a idade. Talvez a insanidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário