Só um Deus nos pode salvar
Numa famosa conferência em 1955, em Munique, Sobre a questão da técnica
O interesse desse modo de ser é como são as coisas, como funcionam e como nos podem ser úteis. Não é o milagre de que as coisas são, confrontadas com o nada. Separamo-nos do mundo natural para entrar profundamente no mundo artificial. Perdemos a relação orgânica com as coisas, as plantas, os animais, as montanhas e com os próprios seres humanos. Tudo se transforma em instrumento para alguma finalidade. Não vemos o ser humano, como pessoa, portadora de um propósito, mas a sua força de trabalho, seja física, seja intelectual, que pode ser explorada.
Se algo pode ser feito, será feito sem qualquer justificação ética. Se podemos desintegrar o átomo, não há por que não fazê-lo e construir uma bomba atômica. Se podemos lançá-la sobre Hiroshima e Nagasáki, quem o impedirá? Se posso manipular o código genético, não há limite moral ou ético que o possa coibir. E fazemos as experiências que acharmos interessantes e úteis para o mercado e para certa qualidade de vida.
Heidegger nos adverte que esta tecno-ciência criou em nós um dispositivo (Gestell), um modo de ver que considera tudo como coisa ao nosso dispor. Colonizou todos os espaços e subjugou todos os saberes. Transformou-se num motor, que se acelerou de tal forma que já não sabemos como pará-lo. Tornamo-nos reféns dele. Ele nos dita o que fazer ou deixar de fazer.
Neste ponto Heidegger aponta o altíssimo risco que corremos como natureza e como espécie. A tecno-ciência afetou as bases que sustentam a vida e criou tanta força destrutiva que nos pode exterminar a todos. Os meios já foram construídos, e estão aí à nossa disposição. Quem segurará a mão para não deslanchar um armagedon natural e humano? Essa é a questão magna que nos deveria ocupar como pessoas e como humanidade, e menos o crescimento e as taxas de juros.
A resposta tentada por Heidegger é uma Kehre, uma ”Volta”, que signfica uma revira-Volta. Este é o propósito final de todo o seu pensamento, como o revelou numa carta a Karl Jaspers: ser um zelador de museu que tira a poeira sobre os objetos para que se deixem ver. Como filósofo se propunha (pena que usa uma linguagem terrivelmente complicada) remover o que encobre o habitual e o cotidiano da vida. Pela sofisticação técnico-científica ele ficou esquecido, abstrato ou enrijecido. Ao fazer isso, o que se revela então? Nada senão aquilo que nos rodeia e que constitui o nosso ser-no-mundo-com-os outros e com a paisagem, com o azul do céu, com a chuva e com o sol. É deixar ver as coisas assim como são; elas não nos oprimem mas estão, tranquilas, conosco em casa. Foi buscar inspiração para esse modo de ser nos pré-socráticos, particularmente em Heráclito, que viviam o pensamento originário antes de se transformar com Platão e Aristóteles em metafísica, base da tecno-ciência.
Mas suspeita que seja tarde demais. Estamos tão próximos do abismo que não temos como voltar. Na sua última entrevista ao Spiegel de 1976, publicada post-mortem, diz Heidegger: “Só um Deus nos pode salvar”. A questão filosófica sobre o destino de nossa cultura se transformou numa questão teológica. Deus vai intervir? Vai permitir a autodestruição da espécie?
Como teólogo cristão, direi como São Paulo: ”A esperança não nos engana” (Rm 5,5), porque “Deus é o soberano amante da vida” (Sb 11,26). Não sei como. Apenas espero.
*Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é também escritor —
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