domingo, 5 de maio de 2013
Benedito Nunes, leitor de Guimarães Rosa
Coletânea do crítico paraense, morto em 2011, reúne cinco décadas de reflexões sobre a obra do autor de ‘Grande sertão: veredas’, onde encontrou as condições para seu melhor trabalho como intérprete, articulando literatura e filosofia
Por Jaime Ginzburg
Em “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa, o protagonista Riobaldo afirma: “Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso”. Ao elaborar imagens do passado, Riobaldo fala sobre sua vida de jagunço. Entre fantasmagorias transitam Diadorim, Hermógenes, Otacília, Joca Ramiro e a figura do diabo, na rua, no meio do redemunho. Enquanto relata sua trajetória, Riobaldo comenta o ato de narrar. O leitor, acompanhando o percurso do personagem, encontra questionamentos sobre as condições em que a narração é desenvolvida: “Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância”.
A observação sobre o ato de falar “falso” acentua a necessidade de refletir sobre a linguagem empregada no romance. Em seus estudos sobre a obra de Guimarães Rosa, Benedito Nunes (1929-2011) demonstrou imensa capacidade de pensar sobre a narração. O livro “A Rosa o que é de Rosa” permite avaliar o alcance dessa capacidade.
“Não se pode contar tudo”, explica Nunes, “nunca se vai diretamente ao vivido”. No artigo que dá título ao livro, publicado originalmente em 1969, o crítico é firme em sua posição de que a perspectiva do romance de Rosa “está longe de ser puramente realista”. Ao mostrar a fragilidade do trabalho crítico de João Gaspar Simões, Nunes se distancia da leitura do crítico português, pautada pelo realismo, e opta por examinar o que chama de “região ética” de “Grande sertão”. As reflexões sobre realismo e narração são construídas de modo consistente, propondo uma leitura do romance que valoriza a pluralidade temporal e a complexidade do ato de narrar.
Tempo e linguagem
A contribuição de Benedito Nunes à história das ideias no Brasil é extraordinária. Seu reconhecimento, embora consolidado, ainda está aquém da qualidade de seus livros. Duas características de Nunes saltam aos olhos de seus leitores dedicados: a independência intelectual, que se expressa na sua originalidade crítica, e a ultrapassagem dos limites disciplinares universitários, com um movimento firme e seguro entre diversas áreas de conhecimento. Os interlocutores mais constantes de Nunes são filósofos e críticos literários. No entanto, em razão da clareza didática e da coerência conceitual, seus livros podem beneficiar leitores envolvidos com outras áreas.
O lançamento de “A Rosa o que é de Rosa” constitui uma celebração de cinco décadas de trabalhos sérios de alto nível, e um privilégio para os que lecionam e estudam ciências humanas. O livro expressa um vínculo múltiplo e sempre estimulante entre Rosa e Nunes. Nunca antes desta edição, porém, esse vínculo mostrou sua força com a intensidade justa. Em dois artigos, Nunes relata um encontro com Rosa, em fevereiro de 1967, em um gabinete do Itamaraty, no Rio de Janeiro. O escritor pediu então que o crítico lesse e comentasse “Aletria e hermenêutica” (que Rosa incluiu como prefácio no livro “Tutameia”, publicado no mesmo ano). Além disso, falou ao pensador paraense sobre a presença da filosofia em sua ficção. Esses artigos foram escritos em perspectiva melancólica, dando visibilidade ao cruzamento que se estabeleceu em Nunes entre o impacto afetivo do encontro com Rosa e a percepção minuciosa que o crítico teve da produção do escritor mineiro.
Em Rosa, Nunes encontrou as condições para seu melhor trabalho como intérprete. O crítico, ao longo de sua produção, sustentou questões que reaparecem, de modo reiterado, em diversos textos. É possível destacar alguns tópicos: a definição do conceito de tempo, e as abordagens (linguísticas, estéticas, metafísicas) pelas quais seria possível representar a temporalidade; o papel da linguagem, incluindo suas relações com o mito e a realidade; as formas do ato de narrar, considerando as implicações da ruptura com o realismo na literatura.
Nunes desenvolveu reflexões teóricas sobre esses tópicos em textos notáveis, incluídos em volumes como “A clave do poético” (2010), “No tempo do niilismo” (1993), “A filosofia contemporânea” (1991) e “Crivo de papel” (1998). Nos ensaios de “A Rosa o que é de Rosa”, há trabalhos em que a interpretação sobre o escritor dialoga com essas reflexões. A erudição rara e a determinação em confrontar desafios fundamentam esse volume. É sempre bom aprender com Nunes, não apenas com os resultados de suas pesquisas, mas também com o movimento de seu pensamento.
A idoneidade intelectual de Nunes pode ser verificada em razão de seu discernimento. Além de registrar lealdade a pensadores que admira, ele confronta diretamente aqueles que, em sua opinião, não fizeram trabalhos adequados. Isso fica claro nas notas sobre o crítico João Gaspar Simões e, em especial, em seu estudo da tradução francesa de Rosa.
Nunes faz parte de um reduzido conjunto de críticos literários em que os passos do percurso de estudo são esclarecidos e demonstrados constantemente. Isso demonstra sua generosidade intelectual e abertura ao diálogo. Longe de verdades absolutas, Nunes evidencia que sua interpretação é uma construção.
Cabe acompanhar, por exemplo, as continuidades e mudanças em suas abordagens do romance de Rosa. Entre o texto “Primeira notícia sobre ‘Grande sertão: veredas’”, de 1957, e a conferência “De ‘Sagarana’ a ‘Grande sertão: veredas’”, de 1996, os critérios de leitura e a avaliação da qualidade do livro se modificam. Como ele diz, explicitamente, o romance não surgiu etiquetado “dentro de uma vitrina de teoria literária”. Foi o movimento de leituras interpretativas, em sua multiplicidade, que levou seu valor a ser reconhecido.
A continuada atuação de Nunes no campo da filosofia abriu horizontes reflexivos que qualificam os debates sobre literatura. Ele descreveu a sua própria atividade como “hibridismo crítico”, em “Meu caminho na crítica”, de 2005. “A Rosa o que é de Rosa” permite observar sua capacidade exemplar de articulação entre literatura e filosofia, sem reduções ou esquematismos. Nesse sentido, Nunes, intérprete de pensadores como Wittgenstein e Walter Benjamin, é uma referência indispensável para críticos contemporâneos que valorizam essa articulação.
Talvez o ponto alto do volume esteja na reflexão sobre o narrador em “Grande sertão: veredas”, pois dentro dela são elaboradas anotações sobre tempo e linguagem, que integram elementos examinados ao longo do livro. Ao observar que a narração pode ser interpretada como uma necessidade, Nunes propõe uma chave de leitura potente. Riobaldo, de acordo com suas considerações sobre o ato de narrar, estaria colocando a narração em suspeita, pois o relato “trama e destrama, descontinua a história, interrompida, salteada, reticente”. O crítico propõe que o tempo é central no romance, e que a oralidade se articula com o alto nível reflexivo da prosa. O estudo do narrador é apresentado como desafio de leitura, para o qual convergem questões sobre forma e temas no romance.
Livro traz textos raros
A qualidade do volume é acentuada pelo prefácio brilhante escrito pelo professor João Adolfo Hansen. Além de valorizar os trabalhos de Benedito Nunes, o texto se sustenta como um ensaio independente. A recusa do realismo, a convicção de que literatura não é documento, o componente arbitrário do simbólico, e a ausência de sentido pré-determinado para a vida são alguns dos elementos elaborados pelo crítico. O trabalho de Hansen dialoga de modo preciso com as contribuições de Nunes.
Leitores que acompanham a trajetória de Nunes vão reencontrar trabalhos integrados aos volumes “O dorso do tigre” (1969) e “Crivo de papel”. O volume surpreende ao acolher textos pouco conhecidos, ou de difícil acesso, como “Primeira notícia sobre ‘Grande sertão: veredas’” e “A Rosa o que é de Rosa”. A leitura atenta do volume motiva releituras renovadas de “O tempo na narrativa”, “A filosofia contemporânea” e “Introdução à filosofia da arte”, entre outras obras do crítico.
O livro confirma a qualidade de reflexões de Nunes, anteriormente publicadas, sobre arte e conhecimento, mimese, filosofias da existência e o pensamento de Wittgenstein. Para além disso, o volume nos beneficia com um reencontro necessário com um pensador que, ao morrer em 2011, deixou caminhos abertos. Estamos em tempos em que sentimos com força o peso dessa perda.
Jaime Ginzburg é professor associado de literatura brasileira na USP. Publicou, entre outros trabalhos, “Crítica em tempos de violência” (2012) e “Literatura, violência e melancolia” (2013)
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