segunda-feira, 8 de junho de 2015
Carta de Guia dos Casados
Carta de Guia dos Casados
D. FRANCISCO MANUEL DE MELO (Lisboa, 23 de Novembro de 1608 – Lisboa, Alcântara, 24 de Agosto ou 13 de Outubro de 1666)
Carta de Guia dos Casados
(...) Uma das coisas que mais assegurar podem a futura felicidade de casados é a proporção do casamento. A desigualdade no sangue, nas idades, na fazenda, causa contradição; a contradição, discórdia. E eis aqui os trabalhos por onde vêm. Perde-se a paz, e a vida é inferno.
Para satisfação dos pais convém muito a proporção do sangue para o proveito dos filhos, a da fazenda, para o gosto dos casados, a das idades. Não porém que seja preciso uma conformidade, de dia por dia, entre o marido, e mulher; mas que não seja excessiva a vantagem de um a outro. Deve ser esta vantagem, quando a haja, sempre a parte do marido, em tudo à mulher superior. E quando em tudo sejam iguais, essa é a suma felicidade do casamento.
Dizia um nosso grande cortesão, havia três castas de casamento no mundo: casamento de Deus, casamento do diabo, casamento da morte. De Deus, o do mancebo com a moça. Do diabo, o da velha com o mancebo. Da morte, o da moça com o velho.
Ele certo tinha razão porque os casados moços podem viver com alegria, as velhas casadas com moços vivem em perpétua discórdia; os velhos casados com as moças apressam a morte, ora pelas desconfianças, ora pelas demasias.
Mas porque estas coisas são muito gerais, e ainda os incapazes têm delas conhecimento que aos entendidos lhes sobeja, é tempo de passar a alguns mais particulares avisos.
Senhor, saiba V. M.cê que à sua alma se acrescenta outra alma de novo; à sua obrigação se junta outra obrigação. Assim devem crescer seus cuidados, e seus respeitos. E da mesma sorte que, se a um homem que possuísse uma herdade, a qual cultivasse, lhe fosse deixada outra de novo, para o mesmo efeito este tal homem, sem diminuir em sua alegria, era força que na diligência se avantajasse, por abranger com seu trabalho a ambas aquelas suas fazendas; nem mais nem menos deve o casado multiplicar o tento, e a fadiga (sem que por isso se entristeça), por não faltar ao novo cargo que tomou, e lhe entregaram, com a mulher que lhe deram; não para que a arriscasse, e perdesse (e a si mesmo com ela), mas para que com maior cómodo e descanso pudesse passar com ela a vida.
(...) Provemos a ver se será possível dar alguma regra ao amor; ao amor, que soe ser a principal causa de fazer os casados mal-casados, umas vezes porque falta, e outras porque sobeja. Armemos-lhe, se quer, as redes; caia ele se quiser; e o mais certo será que voe, e fuja delas, porque quiçá por isso o pintaram com asas.
Ame-se a mulher, mas de tal sorte que se não perca por ela seu marido. Aquele amor cego fique para as damas, e para as mulheres o amor com vista. Ou cure os olhos que tem, ou os peça emprestados ao entendimento desses que lhe sobejam. (...)
Saiba-se, e tema-se, que também há Narcisos do amor alheio, como de seu próprio.
(...) Há alguns, Senhor N., de tão pouco juízo, que fazem ostentação de seu próprio cativeiro. Igual afronta é a um casado saber-se que o manda a sua mulher, que saber-se é ela de seu marido escrava, e não companheira.
Este foro, esta prerrogativa, de que cada um é bem que use, logo ao princípio convém que se concerte. O marido tenha as vezes de Sol em sua casa, a mulher, as da Lua. Alumie com a luz que ele lhe der, e tenha também alguma claridade. A ele sustente o poder, a ela a estimação. Ela teme a ele, e ele faça que todos a temam a ela, serão ambos obedecidos.
Dissera eu que as mulheres são como as pedras preciosas, cujo valor cresce, ou mingua, segundo a estimação que delas fazemos.
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