LIBERDADE DE IMPRENSA
Um telegrama do Recife para O País de ontem dá-nos, por um consta, a notícia de que “o governadorvai nomear uma comissão, para regulamentar a lei da questura na parte relativa à imprensa”.Infelizmente essa notícia não nos pode merecer a qualificação de grata. Se os regulamentos são atosdo poder executivo destinados a dar execução às deliberações do legislativo, a providência do honradogovernador de Pernambuco, atestado aliás de suas boas intenções, outro resultado não nos pode trazer,curialmente, além do de robustecer, nas mãos da polícia pernambucana, a arma desastrosa, de que elase serviu, para suspender ali a Gazeta da Tarde. Um ilustre representante daquele Estado na Câmarados Senadores declarou, com efeito, que o questor procedera de conformidade com a lei estadual de 14de novembro de 1891. Legem habemus, disse o nosso senador: temos lei positiva. Mas, se existe essa autoridade, o mesmo vínculo jurídico, por que ela obriga a polícia, prende igualmente a administraçãodo Estado. O que a comissão nomeada, portanto, poderá fazer, é determinar, mais ou menos liberal,mais ou menos restritivamente, os casos confiados à discrição da questura no uso da faculdade, que olegislador provincial lhe outorgou, de amordaçar a imprensa. Essa faculdade subsistirá, pois, reduzida,ou ampliada, pelo regulamento; mas subsistirá. E na subsistência dela é que está o inconveniente, o errocriminoso dos poderes locais, a tirania intolerável.Não se procure exculpar, ou atenuar o atentado legislativo com o atraso da legislatura federal emorganizar o regímen da imprensa, resguardando-a por meio de medidas protetoras. A não ser quanto ànecessidade, que nos parece urgente, de estabelecer sanções penais eficazes contra o uso do anonimato,que avilta a publicidade entre nós, que a Constituição peremptoriamente aboliu, mas que os maushábitos do nosso jornalismo continuam a explorar, os direitos da palavra escrita, entre nós, encontramna lei fundamental e no código a mais completa defesa legal. Mas não há valos, constitucionais, oulegislativos, que o arbítrio não vingue de um salto, quando os governos são da natureza elástica eresvaladia desses, a que aludiu, com eloqüente indignação, o senador Drummond*: “governos semconsciência, cujos atos se revestem dos mais deploráveis excessos.”A assembléia pernambucana, que adotou a lei, já agora famosa, de 14 de novembro de 1891, nãopodia ignorar que a Constituição da República, entre os direitos por cuja inviolabilidade se compromete inclui, art. 72, § 12, a mais plena liberdade de imprensa, com esta declaração iniludível como a luz dosol:“Em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento, pela imprensa, ou pela tribuna, semdependência de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma quea lei determinar.”Mas, ainda quando as legislaturas provinciais não tivessem a obrigação, que nos parece indisputável,de trazer de cor e argumentado, como cartilha de primeiras letras, o pacto federal, lá estava a própriaconstituição de Pernambuco, promulgada em 17 de junho de 1891, a qual se dignou de consagrar ipsislitteris, no art. 129, §6º, a garantia constitucional, que o código político da União prescrevera nos maiscategóricos termos, como se uma cláusula da Constituição federal perdesse, ou ganhasse, alguma coisaem ser, ou não, reproduzida nas leis dos Estados.Os autores da medida legislativa, que, em Pernambuco, ferropeou a imprensa ao grilhão dasuperintendência policial, necessariamente conheciam como as palmas de suas mãos a Constituição daRepública e a Constituição dos Estados. Todavia, com o mais indesculpável desembaraço, decretarama censura, que uma e outra condenam, sob o pretexto velho, cediço e indecente entre homens livres, deimpedir que a publicidade “perturbe a ordem pública, ou excite ódios e paixões populares”. Com aaplicação desta fórmula, policialmente entendida, não há, no Rio de Janeiro, um só periódico, desde o Jornal do Brasil até o Jornal do Commercio, desde a Cidade do Rio até O País, desde a Gazeta deNotícias até o Álbum, desde a Revista Ilustrada até a própria Revista do Instituto dos Advogados, que escapasse à mão férrea da vigilância policial, às surpresas do seu zelo. Do círculo draconiano nãosabemos se o próprio Diário Oficial se livraria, certas manhãs, quando estampa certos atos, ou exibecertas apologias do poder executivo. Dêem-nos uma lei de censura, por moderada que seja, e nós nos comprometemos a fechar a porta a todos os jornais, ou fazer de todos eles meras serventias do Governo. A Constituição proibiu a censura irrestritamente, racialmente, inflexivelmente. Toda lei preventiva contra os excessos da imprensa, toda lei de tutela à publicidade, toda lei de inspeção policial sobre osjornais é, por conseqüência, usurpatória e tirânica. Se o jornalismo se apasquina, o Código Penal proporciona aos ofendidos, particulares, ou funcionários públicos, os meios de responsabilizar osverrineiros. Ainda quando os polemistas da oposição comparem os ministros ao cavalo de Tróia, os governadores ao animal truculento do Apocalipse, o presidente da República a Tamerlão, ou ao Anticristo,não se encontra, graças a Deus, na legislação deste país, desforço contra a gravidade dos foliculários, anão ser na interferência repressiva dos tribunais. Não se pode obstar ao uso do direito: pune-se a infração cometida.Se o espírito jurídico estivesse menos atrofiado no Brasil, entre os depositários da autoridade, o questor, em Pernambuco, ter-se-ia abstido cautamente do emprego de um recurso, cuja falsa legalidadenão o absolve; porque essa legalidade dilacera a lei das leis, a Constituição federal, a que administradores,magistrados e legisladores estão indistintamente subordinados. Se o governador se penetrar de uma solicitude refletida pelas instituições republicanas, em vez de instituir comissões, para envernizarem o abuso legislativo da fiscalização policial sobre a imprensa, chamará a questura ao regímen daConstituição, escoimará os seus atos de severidades inúteis, de responsabilidades odiosas, promovendo,pelos meios regulares, a revogação de uma lei, que desonra as instituições democráticas, e, se para alguma coisa se pudesse invocar, seria para documento da incompetência, com que as legislaturaslocais se excedem muitas vezes no exercício de suas prerrogativas.
São incríveis as anomalias, que, neste sentido, registra a história da federação entre nós. Alguns dos exemplos dessa epidemia de extravagâncias transpõem o domínio da anedota, e irrompem francamente pelo reino da galhofa. Não vimos porventura corpo legislativo e governador, de mãos dadas, num dos mais florescentes Estados do Norte, votarem, sancionarem, e publicarem uma lei, aprovando um tratado internacional celebrado pelo governo da União? Provavelmente duvidam. E com tanto mais razão, quanto, até hoje,não vimos divulgado o fato na imprensa fluminense. Mas eis aqui, no seu teor verbo ad verbum, omonumento, que possuímos em avulso, edição oficial, com as armas da República:
“Lei nº 11, de 30 de setembro de 1892. Aprova o Tratado de Navegação no Rio Javari de 10 de outubro de 1891. Eduardo Gonçalves Ribeiro, bacharel em matemática e ciências físicas, capitão do estado-maior de1ª classe e governador do Amazonas, etc.Faço saber a todos os seus habitantes que o congresso dos representantes do Estado do Amazonas decretou e eu sancionei a seguinte lei: Art. 1º — Fica aprovado o tratado internacional de comércio e navegação do rio Javari e seus afluentes, celebrado pelo governo federal, com a república do Peru, em 10 de outubro de 1891. Art. 2º — Revogam-se as disposições em contrário. Mando, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da presente lei pertencer,que a cumpram e façam cumprir fielmente.O secretário do Estado a mande imprimir, publicar e correr.Palácio do Governo do Amazonas, 30 de setembro de 1892. — EDUARDO G. RIBEIRO, JOÃO DEALBUQUERQUE SEREJO.”
Aí têm. Se há noção, que um caloiro de direito não possa ignorar, sem atrair sobre sua cabeça todas as bombas da faculdade, é a de que os tratados são atos da soberania nacional, para com os quais os Estados, como os indivíduos, como os municípios, como tudo o que vive sob as leis do país, não têmoutra relação, a não ser a da obediência. Todas as constituições federais do mundo conferem esse poderexclusivamente às autoridades da União. A nossa fá-lo na linguagem mais terminante, art. 34, § 12, eart. 48, § 16. Nem neste ponto as constituições escritas outra coisa fazem que declarar um simples rudimento de senso comum. O Brasil, todavia, oferece-nos o fenômeno de um congresso provincialinteiro, mais um governador, titulado em ciências, oficial graduado no exército, que discutem, aprovame promulgam convenções estipuladas pelo governo federal com países estrangeiros. Pode imaginar-se prova mais humilhante de que, em matéria constitucional, somos ainda quaseanalfabetos? Aos Estados mais ilustres nas letras e no espírito político impõe-se o dever de assumirema vanguarda na reforma desses despropósitos, cujo valor formidável, como argumentos contra a federação,nas mãos de seus adversários, deve meter medo aos que a criaram, e desejam consolidá-la. As antigasprovíncias necessitam de justificar a transformação federativa, por que passaram no pressuposto da suaidoneidade para um sistema, cuja primeira condição é a cultura do sentimento constitucionalista emtodos os membros, em todos os órgãos, em todos os centros de ação desse composto de autonomiaslimitadas.Na discussão deste incidente o senador Catunda aventurou uma proposição terrível. “Os Estadosgravitam para a servidão”, disse ele, excetuando apenas o grande Estado mineiro. A exceção, injusta nasua unidade, aberta pelo honrado representante do Ceará, imprime cor ainda mais sombria ao seupessimismo. Divergimos um pouco de S. Ex.ª A servidão ainda não é o centro da gravitação universalno Brasil. Há Estados, grandes e pequenos, que tendem para a fruição real de seus direitos. O embaraço a que esse impulso regenerativo se desenvolva nessas zonas, e se amplie a outras, está na falta deentranhas das facções locais, na luta selvagem delas, em cada Estado, pela interferência do governofederal a benefício dos grupos que porfiam na briga pelo poder.Quando as divergências locais compreenderem o seu interesse comum em vedar à soberania federal,como território inviolável, a administração dos Estados, cessará esse parlamentarismo híbrido, peloqual o presidente da República domina o congresso, e, com ele, a alternativa das reações geográficas,em que cada parcialidade provincial recebe o preço, ou o castigo, do seu comportamento para com osumo eleitor dos governos estaduais.“Não correm longe os tempos”, disse o ilustre senador Drummond, “em que S. Ex.ª, à frente de umjornal de oposição, viu em perigo a própria vida, pelo fato de haver enfrentado com a junta governativade Pernambuco e profligado os abusos desse governo, altamente prejudicial aos interesses públicos. Asua tipografia foi cercada, inúmeras vezes, de capangas assalariados, foram vãs as suas reclamações, eapenas deve a conservação da vida à prudente altivez, com que recebeu as provocações freqüentes deexaltados partidários, alguns dos quais ligados pelo parentesco aos mesmos depositários do governo.”Demasias desta gravidade hão de provocar a reprovação geral, toda vez que se recordarem. Mas asvítimas dessas façanhas, por isso mesmo que lhes experimentaram a crueza, lhes sentiram o horror,lhes verberaram a indignidade, estão obrigadas a ser os mais ardentes promotores de costumesadministrativos, que contrastem com esses, e eduquem a política em sentimentos opostos. Os opressoresde ontem, oprimidos hoje, hão de aproveitar a primeira monção favorável, para tornar a oprimir. Edeste modo as parcialidades viverão perpetuamente fora da lei, esmagando, ou esmagadas.Sentimos não poder juntar os nossos encômios aos dos digno senador Pernambuco em relação àquestura do seu Estado. Se ele “tem sabido cumprir sempre o seu dever” desta vez, ao menos, não osoube. O questor satisfaria, sim, ao seu dever, deixando entregue ao sono dos arquivos esse instrumentoinconstitucional, cujo contacto polui as mãos que o menearem. O governador não ficou inscrito no roldos déspotas, simplesmente porque um antagonista lho chamasse. Mas merecerá esse epíteto, se usurparaos tribunais a função de reprimir os insultadores que o ultrajarem, seja qual for a lei, que, contra aConstituição, lhe der essa licença.A redação da folha violentada seguiu, em nosso fraco entender, o menos aconselhável dos rumos,na direção que deu à sua defesa. Apelar para a imprensa é acreditar ainda na acústica da publicidade,numa época em que quase todos os seus ecos expiraram. Provocar a tribuna do congresso é dedilhar oteclado de um órgão quase surdo. A eloqüência política perdeu as suas ilusões. É uma artista numcenário deserto. Será quando muito Demóstenes ensaiando a voz impotente, ao borborinho do mar,para futuros triunfos. Os patriotas mais eminentes puseram a surdina à sua palavra, por não turvar orepouso à magistratura suprema da república, doente que convém envolver em pasta de algodão, paranão se lhe partir com algum abalo mais vivo o fio da vida.E, na hipótese, que poderia fazer o congresso? Levantar um requerimento, e expedi-lo ao Governo.Mas qual foi o mal, que já se curou com esta panacéia?Redator da Gazeta da Tarde, nosso caminho seria outro. A polícia pernambucana violou um dosdireitos, que a Constituição federal afiança. Nós recorreríamos aos tribunais federais, pelas açõescompetentes: procuraríamos segurar-nos no gozo da nossa propriedade, abrigando-a sob a manutençãojudicial, e, consumada a violência, processaríamos criminalmente a polícia violenta.Tentemos sempre a justiça: apesar de tudo, é talvez, onde ainda se possa encontrar o começo doremédio.
Jornal do Brasil, 19 de junho de 1893
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