PELO TELEFONE
A leitura do poema "Imitação da água" imortalizou o crítico José Guilherme Merquior, e está publicada hoje num livro intitulado "A razão do poema" (que tenho, mas não encontro: meus livros, em fila dupla, tripla, às vezes deitados, inacessíveis, desorganizados...). Eu conheci Merquior: tinha cara de menino quando proferiu palestra sobre estética na nossa Faculdade. Jogaram uma bomba. Anos depois, estive com ele, num Congresso, no Fundão. Morreu prematuramente, Merquior. Culto, mas, como escreveu sobre tudo e todos, ficou meio desacreditado no meio acadêmico. Não se pode ao mesmo tempo escrever livros sobre Marx, Hegel, Freud, a escola de Frankfurt e a literatura brasileira. Seja como for, Merquior era um gênio, mal aproveitado, mas era. Poderia ter deixado obra imorredoura, isso poderia. Tinha talento para isso. "Imitação da água" é um poema-irmão de "Paisagem pelo telefone":
PAISAGEM PELO TELEFONE
Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,
sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,
a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,
Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,
sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangadas, que são velas
mais brancas porque salinas,
que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,
mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.
Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,
fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,
e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria
que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,
sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes mais acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.
Longe de mim imitar Merquior. Sou apenas um cronista domingueiro. E nasci no Amazonas, mas meu sangue é nordestino. Sangue de minha mãe, Pernambuco, Sobral. Minha avó conheceu cangaceiros. Mas, qual é o sentido de "paisagem"? Que voyeurismo se faz pelo telefone? E que lugar mais apropriado para amar, do que uma praia nordestina no "prumo" do meio-dia? O amor é noturno? Não aqui: no poema tudo é branco, branca luz, praia velas salinas - mas não é o branco hospitalar, mas do sol sobre a cal, sobre a água cristalina, da sala de luz invadida pelo sol de duzentas janelas, do mar, das velas estendidas, "seis estrofes mais acima" - a amada brilha como deusa, como Beatriz na "Comédia" de Dante ela brilha, ela se veste de luz. E é lá (no Nordeste) que o Amor move o sol e as outras estrelas. Sexo pelo telefone.
Aqui o que vem é a voz. Da voz vem a paisagem, a sala, a praia, os muros caiados. É voz mineral, na essência do calor. A luz não do sol, mas das vogais abertas, dos cristais da voz, da voz cristalina, da fala nordestina, salina, fala ao sol estendida, voz nua, fescenina. Cabral, aparentemente sempre ácido, árido, cheio de pontas, agulhas e cabras, também sabe, também abre o leque de um erotismo visual, paisagístico, masculino. A água é feminina, e brilha sob a luz. O telefone não. É masculino. Pois há um personagem da Glória Peres, tio da Jade, que disse que o homem se apaixona através dos olhos, e a mulher através dos ouvidos. Sabedoria árabe. Eu diria aqui: Pelo telefone, que ouvindo vê a amada toda nua, ou só de sua nudez e brilho vestida. O erotismo visual nascendo da audição. É tudo João Cabral.
Um comentário:
De Cabral a João que importa, vale o homem no poema.
Boia no céu...
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