GOULD
Rogel Samuel
Ouço, obsessivamente
ouço, e repetidas vezes, o Concerto nº 1 BWV 1052 de Bach com Gleen Gould. Ele
o tocou pela primeira vez em Toronto, 1955, e a partir de então, também, por
mais de 30 vezes, repetiu a obra. A gravação, que ouço, é a de 1957, Mono,
Columbia Symphony Orchestra. E Bernstein. Também possuo outra, da Internet, em
MP3, de que nada sei porque nada é dito, cujo tempo me parece um pouco mais
rápido, e as «loucuras» de Gleen Gould mais radicais, como as «invenções»,
«modificações», caminhando da lucidez, da precisão clássica/barroca para a
variação jazzística, nas suas ondulações sonoras, intermináveis e
recalcitrantes. A gravação da Internet desse Concerto obsessor deve ser a mesma
e está, entretanto, incompleta, faltando alguns minutos do segundo movimento, o
«Adágio».
Gould fez sucesso obstinado com este concerto.
Em Leningrado, diz Otto Friedrich, seu biógrafo, lugares extras foram
colocados no palco, 1.300 assentos foram vendidos, 1.000 ingressos de lugares
em pé (!), e mesmo policiais tiveram de ser convocados para conter a multidão,
que se comprimia do lado de fora, sem poder entrar. Até os músicos da orquestra
que não foram convocados se acotovelavam na coxia para ovacionar o pianista.
Rebentaram as palmas. Explodiram vivas. Lançaram-se flores. Ele ficou
assustado: «Foi opressivo e amedrontador», disse, depois.
Ele parecia criança quando esteve
pela primeira vez com Leonard Bernstein. Existe aquela famosa foto sua com o
maestro americano: Gould belo menino, em transe, os cabelos cobrindo os olhos,
e Bernstein de cabeça baixa, sério. «Ele realmente fez coisas maravilhosas no
Concerto em Ré de Brahms», disse. Mais tarde, em gravação que tenho, dádiva do
pianista americano Christopher Schindler, o criticou o maestro em público, pois
o pianista forçou leitura lentíssima do Concerto de Brahms com a Filarmônica de
Nova Iorque. Mas, depois de ouvir várias vezes, começamos a sentir que é assim mesmo, naquele tempo
lento, que o grande Concerto deve ser ouvido. Na época, Gould foi duramente
criticado. Disseram justamente até que ele atrasou o tempo porque não era capaz
de superar as dificuldades técnicas de execução. A crítica bateu feio nele e
ele sentiu a pancada. Parece que ficou ferido. Por outras razões abandonou o
palco. Criticavam os seus trejeitos malucos ao piano, as suas contorções,
caretas e tudo mais. Falavam de sua vida
sexual, se seria ou não homossexual, da sua indumentária horrorosa, dos seus
medos e fobias, das doenças imaginárias. Gould tinha dos concertos uma idéia
pejorativa, dizia daquilo uma competição, exibicionismo, aparição moralmente
má. Do tipo: «Devo decorar esta frase elegantemente para o concerto». O
pianista no palco ia participar de um show que era uma luta por uma espécie de
prêmio mundano, cheio de desafios, disputas, rivalidades, tão longe da
transcendência em que mergulhava – a música uma espécie de religião, meditação,
êxtase e orgasmo. Não, nada de exibição de virtuose. Mesmo com orquestra, ele é
um «solista», em meditação. A orquestra, um acompanhamento. Ali não emerge o
ego de um virtuose. O concerto não deveria ser uma batalha entre o piano e a
orquestra [apud Michael Stegemann], um espetáculo de arena. Gould rejeitava a
idéia do psicanalista Stevens de que os virtuoses educam a sensibilidade do
público. Ele foi «o último puritano», se referindo a si próprio tomava
emprestado o título da novela de George Santayana. «Esta era a visão da arte
como instrumento de salvação, e dos artistas como seus advogados missionários»,
disse Stegemann. Arte como educação espiritual e meditação. Elevação mística.
Tal Ragas orientais.
Enfim recolheu-se à solidão dos mosteiros, digo, estúdios, à sua casa,
aos seus passeios de carro, às suas noites solitárias, em que importunava os
amigos com longos telefonemas, durante horas, em que ele freneticamente falava
sem parar.
O tempo lento do Concerto de Brahms me lembra a gravação, lentíssima, de
Celibidache da Sinfonia Novo Mundo de Dvorak. Dura 113 minutos. É magistral.
Celibidache velho, velhíssimo, rege, pesadamente sentado na cadeira, economiza
gestos, mas poderoso, e sua música aparece como uma despedida, adeus. Ele,
antes tão exuberante, dramático, que pulava e bailava no pódio, agora sentado,
poupa-se, transformando a Novo Mundo em sua transcendência para a nova vida, a
morte.
Pois Gould era realmente,
absolutamente louco. Louco como só os gênios o podem ser.
Ele teve dificuldades em gravar com orquestra.
Disse: «...meu problema com orquestra é econômico... com orquestra, seja
o que for que você tenha de fazer, só dispõe da orquestra no estúdio por um
limitado número de horas... se tiver sorte pode fazer duas ou três gravações...
mas quando estou numa sessão solo posso fazer nove ou dez gravações»
diferentes, para escolher uma, a melhor.
Ele somente teve dois mestres: Alberto Guerrero e sua mãe, Florence.
«Tudo o que há para saber sobre piano pode ser ensinado em menos de meia hora»,
dizia.
Sim, dizia. Ele.
* * *
Antes do Concerto de Brahms, a fala de Bernstein para o público é a
seguinte, resumida: «Eu estava com medo de que o Sr. Gould estivesse no piano
agora... eu não costumo falar antes de concerto... mas vocês vão ouvir uma
performance nada ortodoxa do Concerto de Brahms... eu não posso dizer que
concordo com a concepção do sr. Gould... uma questão interessante é: por que eu
vou reger assim?... é porque o sr. Gould é um artista tão valioso e sério, que
tudo que ele concebe é interessante suficientemente para ser ouvido. Mas uma
questão continua: Quem num concerto é o patrão? O solista ou o maestro? A
resposta é... algumas vezes um, outras vezes outro... depende das pessoas
envolvidas.. entretanto... eles têm de trabalhar juntos... de convencer um ao
outro pelo carisma, pelo charme ou por um pacto para atingir uma performance
unificada... mas essa é a primeira vez que eu me submeto à vontade de um
solista para fazer algo completamente incompatível e esta é a última vez que
acompanho o sr. Gould...».
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