O CHARME DO PAPEL
Rogel
Samuel
Sim,
depois de alguns anos vivendo só da Internet, este cronista voltava a ter
coluna em jornal de papel. No «Correio do Sul». De Minas.
No começo, mantive coluna diária em
jornal. Era jovem, tinha energia de escrita, vontade de trabalho. Ainda hoje
releio com receio os poucos recortes que restaram, que se salvaram da mudança
da amiga que os guardava. Foram defenestrados como lixo, se possível fosse
jogar lixo, papel velho, pela janela, como a palavra sugere. Destruídos os recortes,
certa vez passei uma semana em consulta aos velhos jornais da época que
sobreviveram à traça e tempo.
Naquela época heróica, nós nem
passávamos pelo chefe de redação. Íamos diretos ao linotipista. Aquele o tempo
do linotipo. Coisa de chumbo. Sempre à noite que vínhamos nós, originais no
bolso. Havia gente que escrevia diretamente no linotipo.
O trabalho no jornal entrava noite a
dentro. Os ruídos das impressoras eu os ouço até hoje, e o cheiro de tinta
ainda me impregnam os sentidos.
Em 1960, cometi tolice exemplar. Por
meio do diretor comercial, de nome Senna, sou convidado para ingressar no corpo
da redação da TV Rio. Não aceitei. O trabalho era noturno, sem hora para
terminar, e eu tinha aula pela manhã na Nacional de Filosofia da Universidade
do Brasil, onde me formei em letras. Naquele tempo parece que ali devia
trabalhar Walter Clark e o Bôni, ambos da Globo. Eles deviam ter a minha idade.
No pouco tempo que ali estive vi gente como Juscelino Kubstchek. Deixei de trabalhar na TV,
passei a lecionar no subúrbio. Opção idiota.
O ambiente de jornal era ótimo, naquele tempo. Não só se
discutia política, mas literatura. Foi lá que ouvi Hemetério Cabrinha, o poeta,
a recitar Castro Alves: «Era um sonho dantesco... o tombadilho». Sim, ele era
dramático, principalmente quando entoava o seu «Falando a meu coveiro», um dos
seus mais belos poemas:
É aqui
neste lugar, ao pé deste cipreste,
junto a
este mausoléu. Pega uma enxada, cava
sete palmas de chão! Anda depressa, grava
no teu semblante mudo o riso que escondeste!
Abre o meu leito
eterno... O meu lugar é este! sete palmas de chão! Anda depressa, grava
no teu semblante mudo o riso que escondeste!
Quero nele abafar minha paixão escrava!
Quero enterrar-me logo... a vida já me agrava...
Depressa! A minha dor de dores se reveste!
Alarga-a mais um pouco, afasta mais a areia!
Ela, assim como está, torna-se muito feia, profunda-a mais... trabalha! Este dinheiro é teu!
Que é isso? Um crânio aí? Dá-mo, quero beijá-lo.
Limpa-lhe bem o pó! Dá cá, quero estudá-lo
Como alguém algum dia há de estudar o meu!
Sim, ele era dramático. Dantesco e
shakespeariano. Voz forte, gestualidade grandiosa, tensa, teatralidade
assustadora, densa. Olhos ensandecidos de poética.
Aquela era a época das polêmicas.
Polemizávamos em versos (!) com o poeta Benjamim Sanches. Assinando Calixto
Diniz. Sanches, uma ocasião, respondeu assim: «Cá li isto que você escreveu...»
Ele era autor de «Argila» (1953), um livro cor de barro. Certa vez, encontrei a
edição quase inteira, esquecida, não vendida, mofando, morrendo num canto do
chão de velha e empoeirada livraria. Sanches era melhor contista. Escrevia bem.
Não mereceu ficar esquecido. Sua poesia é como em «Transe»:
Em
êxtase fitava o céu molhado,
Umedecidos
por um cinza brando
E o
sangue nas artérias congelado,
As
lágrimas no rosto vão rolando.
No
espaço um olhar vívido cravado,
O
pensamento no ar gesticulando,
Do meu
céu ao inferno, condenado,
Eu
andei sem saber se estava andando.
Quando
saio daquele sobressalto,
Como
quem sonha mesmo quando acorda,
Tenho
minha alma presa lá no alto,
Vendo o
meu corpo nesta lassidão,
Sob o
peso das dores que transborda,
Um
monstro se arrastando pelo chão.
("Argila",
pág. 95, Manaus, 1957).
2 comentários:
QUE COISA LINDA!
Tudo! do trabalho no jornal, das escolhas que a vida nos impõe como se fôssemos sábios, e dos poemas.
UM espetáculo!
Abraços
Mirze
OBRIGADO!!!!!!!!!!!
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