XXVII
NOSSA CASINHA
HUMBERTO DE CAMPOS - "MEMÓRIAS"
EM Une vie, de Maupassant, Jeanne, condessa de Lamare,
perdidos o pai, a mãe e o esposo, e abandonada pelo filho, entrega-se a um
bizarro exercício de memória. Toma os calendários, as folhinhas relativas aos
últimos vinte anos da sua vida, e põe-se a restaurar dia a dia todos os
acontecimentos daquele período feliz ou tormentoso. Econsegue, dessa maneira,
povoar de fatos, e de figuras, todas as horas que, antes dessa ressurreição
pela saudade, lhe pareciam tristes e vazias.
No esforço, que agora faço, para realização do mesmo milagre, não
deixa de ser curioso que eu, que me recordo de tanto fato insignificante, de
tanto episódio miúdo, não tenha lembrança, embora a mais leve, do dia em que
nos mudamos para a casa que minha mãe mandou construir em Parnaíba, à Rua do
Pará, ao lado daquela em que nos instalamos em 1894. Ao reconstituir esse
período e esses acontecimentos, já me vejo residindo aí. Duas ou três
ocorrências ligeiras, dois ou três quadros no meio de outros que se apagaram,
eis o que me resta. À memória faltam recordações para encher a moldura dos
dias.
A casa obedece, mais ou menos, à disposição da que lhe fica ao
lado, e em que havíamos residido. Três altas janelas de frente, e, à esquerda
de quem a examina da rua, uma grande porta, por onde se entra para um alpendre
largo e todo fechado de rótulas. Para esse alpendre, dá a porta da sala de
visitas, a que correspondem as três janelas da rua. Atrás da sala, e
comunicando-se com ela por duas portas, um grande quarto destinado às minhas
tias e à minha irmã mais velha. Esse quarto possui, ainda, uma porta lateral
para o alpendre de que se faz a sala de jantar, e outra, mais, para o quarto de
minha mãe, que se comunica, por sua vez, com a sala de jantar. Na “puxada”, um
quarto grande, que é a despensa, dando para um corredor aberto. Em seguida, a
cozinha, com fogão e forno de barro, para lenha. Atrás da casa, o banheiro, e
um quarto pequeno, que eu transformei em pombal, mas foi reduzido, depois que
os gatos e as mucuras me comeram os pombos, em... restaurant de
Ezequiel. Próximo ao banheiro, um poço de tijolo, de uma dezena de metros de
profundidade. Ao lado da casa, à esquerda de quem entra, um largo pedaço de
quintal arenoso, em que fizemos o jardim. E em seguimento, para os fundos, o
quintal de sessenta ou setenta metros, todo cercado de troncos de carnaúba
rachada ao meio.
À chegada do primeiro inverno cuidou minha mãe de encher de
plantas o seu pequeno retiro. Comprando uma dúzia de cocos com casca, foram
estes cortados no lado superior para facilitar a germinação. Abertas as covas,
fundas de mais de meio metro, punha-se dentro de cada uma um coco e, sobre
este, um punhado de sal.
– Para que serve o sal, em cima do coco? – indago.
– É por causa dos besouros – explica-me o caboclo que nos ajuda na
plantação. – Osal afugenta o besouro, quando ele entra na terra para roer o
coco.
Não obstante essas precauções, apenas cinco ou seis coqueiros nasceram.
Mas outros cocos foram plantados, e vingaram. Evingaram as laranjeiras, os
limoeiros, as ateiras, os mamoeiros. Um muricizeiro estendeu os galhos junto ao
alpendre, em frente ao corredor da despensa, dando agasalho às galinhas. Um
jasmineiro miúdo derramou-se no jardim, estrelando a areia. Um casa-cedo
rebentou em cálices amarelos. Um resedá modesto perfuma a brisa. Eas roseiras
lutaram para viver. Eu próprio puxava a água do poço profundo, em um balde de
zinco, auxiliado por um carretel estridente. Eminha mãe, e minhas irmãs, na
alegria humilde de possuírem o seu teto, davam de beber às plantas amigas.
Nessa casinha, com intervalo apenas de alguns meses, passei a minha meninice,
dos nove aos treze anos, e, mais tarde, a adolescência, dos quinze aos
dezesseis. Do seu quintal subiram os meus papagaios de papel. Entre as suas
moitas rasteiras armei as minhas arapucas cheirando a mato verde. Nas suas
cercas irregulares pendurei os meus alçapões traiçoeiros. Aí escrevi o meu
primeiro conto e me nasceu a primeira ambição literária. Testemunha quieta dos
meus desastres iniciais, das lágrimas da minha mãe e do milagre da nossa
pobreza corajosa, foi à sua sombra que decorreram as nossas noites de vigília e
os nossos dias de esperança.
Nessa casa humilde e clara teve o navio da minha alma o seu
estaleiro... Desse porto abrigado partiu três vezes o meu barco atrevido e
frágil para afrontar as iras do oceano trovejante. Da primeira, voltei
desiludido, apavorado com a tormenta que rugia lá fora. Da segunda, regressei,
as velas rotas, o leme partido, para reparar os estragos da tempestade, mas com
o pensamento de fazer-me ao largo, outra vez. Da terceira, enfim, apanhado
pelos ventos oceânicos e pelo capricho das correntes marítimas, fui arrastado
para tão longe que, decerto, nunca mais voltarei...
E para quê? Para que voltar se se não balançam mais na mesma
enseada os barcos amigos que dançavam ao sol nas mesmas águas? Voltar para quê,
se minha irmã já não existe, se não existem o tio e uma das tias que moravam
conosco, se o coração de minha mãe esmorece coberto de luto, se tudo, em suma,
seria, aí, para mim, fonte de saudades, ninho de tristezas, e amargo motivo
para evocações dolorosas?
Envelhece, pois, sem que me vejas mais, casa que eu vi nascer, em
cujas paredes eu próprio marcava, com um traço de carvão na argila clara, os
progressos do meu crescimento. Um dia ruirás, e serás poeira. Um dia eu
morrerei, e minha carne se transformará em pó. E as minhas cinzas se reunirão às
tuas, e dormirão juntas, consoladas, no seio materno e silencioso da terra...
Nenhum comentário:
Postar um comentário