A
LEMBRANÇA DE VALQUÍRIA
(novas
páginas do antigo diário)
Rogel
Samuel
Palavras. Palavras entrecortadas. Curiosa angústia.
Eu ponho tudo
em jogo, eu não estou com ela. Que faço aqui? Novo grupo de policiais acaba de
chegar, as imediações estão um campo de guerra, um campo selvagem. Quando a
porta se abriu, nós nos precipitamos pela saída dos
fundos. Eu ainda pensei que a porta resistiria, mas
cedeu de uma vez, uma invasão começou. Depois começa a lavrar o
incêndio. Armários despencam aos tiros, granadas, rebentam estrondos.
"Sim, fui uma juventude agredida", disse Val, anos
depois. O silêncio aquece o inverno longo. Você coloca sua marca, a
marca de seus dedos em tudo o que faz. Você traz no corpo o seu sinal.
Na estação, o garoto olha para trás, e
corria, assustadíssimo. A fome passa. Estou bem disposto, a viagem de trem me
reanima, a vida volta a seus trilhos, volta ao natural. Sinto-me de novo
participante, cidadão, digo que isso é passageiro. Não
sei dar linearidade a esta narrativa, ela vai-se desenrolando de dentro – a sua
ordem é
desordem
assim, parece impossível,
fico diante do que sai de minhas lembranças, fico impotente, como sob flashes
atordoantes. Os olhos dela me chegam, me abraçam. Às vezes, penso que é ela
quem me reencontra, seu fantasma comigo - a minha morte - um salto
surpreendente. Eu tenho de usar de muita habilidade para prosseguir o tema
doloroso, o tema fundamental, o propósito verbal de minha existência devastada,
não mais estando disposto à lastimação solitária de origem.
Minha
lembrança. Recebo minha lembrança no seio de sua
vacuidade.
A emancipação desaparece, por momentos. Mas nada pode ser dito. Vivo disto.
Sobrevivo disto. Vivi com o principal de meus dias de paz. «Quem colhe o mel
dos deuses», diz a voz, «não mais se cura». Sei que amanha acordo
melhor. Bela sensação de claridade, de espaço, daquele espaço
em
que passamos nossos corpos e nos estabelecemos - quero abraçar este espaço -
rematar o real nele contido - recortá-lo para o recriar. Hei de contar, de
cantar a mais bela canção de amor aqui, mais bela que alguém já pode viver.
Val
me
telefonou dizendo que Ricardo... Mas isso resiste à clareza de uma narração, de uma
explicação, tenho de avançar a palmo. Com teimosia, mas com cautela. Estou
perdido. Melhor seria se eu pudesse
logo contar
certos detalhes, tornar seguro o caminho. A situação está na reta final. Mas
não, não há mais ninguém, senão você, vem você, você prossegue, sim. Todos se
colocaram na ausência. Sinto-me ainda na ilha, mergulho para esquecer, deixar
para trás o som de suas praias, sempre nos meus ouvidos. Não, devo clamar,
duvidar. Naquele tempo vivia numa ilha. Lá estava Val, também.
Tínhamos uma casa na ilha. O principal de mim estava lá. Eu
amava ou não tinha outra escolha. Ali era um ser todo dissolvido - um ser
úmido, onde os sentimentos mais estranhos assustavam, assaltavam, chegavam com
seu trânsito nervoso, a violentação de suas multiplicidades - de não sei quantos
desagradáveis motivos nervosos difíceis de aturar.
* *
*
A tarde ia desaparecendo. Um calor brando,
silencioso. Valquíria aparece. Jovem. Máxima. Ela aparece jovem. Reencontro a
Valquíria adolescente na Valquíria de hoje. Estou decididamente envolvido na
sua substância material. Desde sempre nos envolvemos, nos identificamos. Ela
vive, dança no meu ser, à vontade. Tento compreender isso,
tento a resposta. Sua voz vem de longe, do tempo. Sua voz.
Quando se convive, durante toda uma vida, mesmo com intervalos, com essa voz,
nunca se pode sobreviver sem ela. Pessoa que se ama sempre. Estou sempre
prestes a procurá-la, de novo. Por isso nunca a liberto. Sempre fui a ela,
onde ela estiver. Seu timbre sempre adquire o som de um fundo que conheço mas
não sei dizer de onde. Agora é o tom do amor desfeito. Refaço. Tento. Nós
corremos paralelos, juntos, nos unimos em tempos sucessivos. Eu sempre. Tenho-a
em meus braços? Ou ela me domina? Agora, como depois. Como sempre antes de
sempre, depois, depois de depois. Nós nos deitávamos, era a comunhão, ela tão
presente, como se fosse ela o mais sólido e absurdo elo da vida. Sem ela, vivo
em abstrato. Se opacifica. Eu sou agora Val. Ela cheira a floresta. Nós sempre
corremos em vias paralelas, nos unimos no tempo. O bom contato de seu corpo, de
sua materialidade, de seu cheiro de mato moreno, de seu calor algo que eu podia
beber o insaciável. Estrada. Depois a estrada. As palmeiras, eucaliptos, rubor
essencial que sempre a eterniza. E eu sei que posso ficar até o sangue correr
de meus dedos, aqui, a falar e a repetir sobre ela, interminável, inesgotável,
solitariamente.
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